quarta-feira, 14 de setembro de 2022

" APENAS MEMÓRIAS ..."


Perguntaram-me se eu estava a ouvir música ... não estava, agora já estou.  
Richard Clayderman num CD que ganhei de presente da minha mãe no recuado Natal de 2001, toca na aparelhagem ao meu lado ...
São temas imortais, transversais aos tempos e às vidas ... melodias calmas, dolentes, embaladoras, como gosto de ouvir quando escrevo.
Temas doces, preguiçosos, envolventes ... como o dia lá fora, indefinido entre o sol e a chuva que de quando em vez despenca convicta, quando uma nuvem mais decidida se atreve.

Estou triste, profundamente triste ... não sei porquê.  As lágrimas estão mesmo aqui por detrás dos olhos húmidos ... Incompreensivelmente, talvez.
Nada motiva ou justifica este meu estado de alma.  Nenhum tormento me inquieta, nenhuma preocupação ou angústia acrescida me toma, nesta tarde beirando o Outono.  Talvez seja apenas este recolhimento que ele sempre me traz, este abandono estranho, esta sensação de perda, de ausência ... de lugares vazios ...
Fiz a caminhada, aproveitando a promessa de que não choveria entretanto.  A mata estava totalmente vazia de gente. Não cruzei uma só pessoa pelas veredas silenciosas.  Apenas os pássaros continuavam as rotinas  habituais.  Os patos nos tanques, uma ou outra borboleta esquiva, um ou outro animal residente, que mais se pressentia do que se avistava, eram os sinais de vida ... além do gorgolejar da ribeira, agora com o caudal bem mais abundante depois da intempérie dos últimos dias.
Adoro a mata exactamente assim.  A Natureza e eu, num solilóquio abençoado ! 

Mas eu dizia que experimento um misto de sentimentos tão herméticos que os não sei explicar, um desconforto interior, um coração espremidinho dentro do peito, onde parece não caber ... pesado, que só ele ... e uma saudade também, não concretizada, sem rosto ou nome.
Mas uma saudade que dói.  Objectivamente dói, como se fosse um espinho impiedoso a enterrar-se, cada vez mais fundo. Acho que se conseguisse chorar, as comportas deixariam escorrer esta avalanche que me tira o ar, e um almejado alívio atenuaria esta angústia que me maltrata.

"Viajo" pelos anos que foram, pelas pessoas que passaram, pelos sonhos que se sonharam, pelos projectos que se desenharam, pela esperança que iluminava os caminhos da vida ... 
"Viajo" pelos rabiscos que fui escrevendo na junção de letras que formavam palavras, construíam vontades, decidiam rumos, faziam escolhas, arquitectavam ideias ...
"Viajo" pela trilha que ficou para trás ... Vejo-me e vejo todos os que, de esquinas e travessas se me juntaram no percurso, me enriqueceram a marcha, me desvendaram paisagens que eu nem sabia que existiam ... Todos os que me engrossaram a súmula dos dias.  
Estiveram comigo uns tempos, percorreram comigo pedaços da existência, dividimos estórias das nossas histórias ... e depois, porque é assim que sempre é, foram ficando parados na sombra protectora das árvores  da estrada, foram saindo para caminhos alternativos, de mansinho, sem aviso ou alarde foram-me deixando aos poucos mais sozinha, no cumprimento do destinado ...
E foram vozes, rostos, corações que partiram e se diluíram na distância.  Foram momentos, instantes saboreados, trocados, divididos, guardados ... Foram coisas tão incríveis e irrepetíveis que até nem sei se foram reais de verdade !

E depois, como tudo é efémero, tudo é precário, tudo verga sempre sob o peso inelutável do tempo ou pelo cansaço da rota, fica-nos apenas o buraco vazio cravado no coração, os braços órfãos das ramadas  de flores que havíamos colhido ... e um horizonte cada vez mais curto em que as cores do arco-íris, de tão esbatidas, já não iluminam ...

... e memórias ... apenas memórias ...

Anamar

Sem comentários: