quinta-feira, 1 de setembro de 2022

" É SEMPRE ASSIM..."



Setembro chega e uma ténue película de nostalgia parece agarrar-se a tudo que me rodeia.
O sol perdeu a virilidade dos meses anteriores, brilha morno e adocicado e o Outono já espreita no virar de mais alguns dias.
É a época do ano em que uma sonolência mansa parece descer sobre a Terra, em que mais experimento uma solidão corrosiva, mas disfarçada.  O ano lectivo acena, a mexida entusiasta dos que irão começar, anuncia-se.  As férias inevitavelmente terminaram e já não teria a mesma graça assistir-se ao esvaziar dos areais ... Tudo isso ficará aguardando novo ano, novo Verão, novos sonhos e projectos.

Sinto-me mais do que em qualquer outro momento, na rectaguarda da vida.  Como se já só assistisse a um jogo, da arqui-bancada, sem grandes sobressaltos, euforias ou aplausos. Sem participação ou interveniência ... pouco mais que atenta mas irrelevante espectadora ...
É como se, duma esquina qualquer eu ficasse apenas acenando aos meus netos que demandam as escolas, os livros, os amigos ... a Vida !  Vendo-os ir com os rostos esperançosos, com a alegria rodopiando-lhes os olhos, com o gargalhar da juventude inundando-lhes os corações ...
E é estranho ... como se eu estivesse sobrando num filme a desenrolar-se, como se eu já não pertencesse bem a este acto, da peça que se vai desfocando em distanciamento ...

Énya toca ao meu lado.  Quem mais tão bem traduziria o que sinto ?... a mesma nostalgia ...

O meu ano sempre se partia por Setembro.  Não se dividia pelo fim de Dezembro ou pelo começo de Janeiro. Não ! O ano era agora que começava à séria.  Era agora que a urgência, a afobação, os preparativos inadiáveis e meticulosamente calculados, se faziam.  Era agora que o "frisson" do recomeço fervilhava dentro de mim.  Era agora, tal como as crianças demandam a busca dos novos materiais, os livros, os cadernos, os estojos, os lápis e as canetas, que também eu recomeçava tudo, outra vez, quase com o "cheiro" a tinta fresca retocando-me os miolos e a ponta inquieta dos dedos !...
E esse borbulhar intempestuoso e imparável era isso mesmo ... o borbulhar da Vida a chamar-me à equipa, novamente ... com tanto tempo diante de mim, parecia ... e uma estrada tão longa quanto o afastamento do horizonte, lá longe ...

Tudo isto flui como doença crónica, no sangue.  Como aquelas maleitas que volta e meia despertam duma letargia roçando o eterno. 
E por mais que eu pense o coração adormecido, lá vira a folha do calendário, e lá vem Setembro a sorrir, desmentindo a insensibilidade e o esquecimento acreditado ... Como se pudesse !...

Os livros ainda repousam silenciosamente nas prateleiras, quase a tocarem-me.  As canetas secas ainda estão nos estojos de fechinho corrido, dentro da pasta que já se encarquilhou um pouco, como velha desocupada e desleixada ... dormindo a um canto.
Pareço ter um respeito inviolável, um respeito religioso que sacraliza tudo o que foi e que ainda paira por aqui ... 
Porquê ? - pergunto-me.  Porque não dou um fim ou destino a tudo isto, por desnecessário ?
Não sei.  Sei que adio, sei que recuso, como se cometesse um crime qualquer, como se recusasse fechar a última porta de um lugar que me foi caro e imprescindível ... como se com isso cortasse amarras a um cais distante, deixando o barco à deriva ...
Como se com tudo, eu perdesse o norte e o rumo, orfanizasse um pouco, esvaziasse, como se uma onda me varresse a alma ... e fosse ...

E foi apenas ontem ...

Anamar

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