sábado, 3 de setembro de 2022

" AS CORUJAS INVISÍVEIS DO CREPÚSCULO ..."



 "Quando o tempo que está pela frente fica menor do que o que já passou", aplica-se direitinho ao avanço do ano.  Setembro abriu o último quarto de 2022, dará o cartão vermelho a um Verão que eu sinto não ter passado mas sim voado, e já nos deixa espreitar lá ao fundo mais um Natal a avizinhar-se ...
"Daqui a pouco é Natal" já se ouve dizer por aí, nas bocas de quem percebe objectivamente a celeridade do tempo.

Hoje um amigo escrevia, com notória nostalgia, sobre a partida de tantos habitantes da sua aldeia, pessoas e animais, com quem conviveu na já dezena e meia de anos em que por ali se radicou, referindo exactamente como os dias se fazem apesar dos lugares vagos, como acaba instalando-se alguma indiferença e distanciamento inevitáveis, impostos pela implacabilidade da vida que sempre continua e bem assim, como o esquecimento vai dominando os que por cá vão continuando ... 
É assim.  Todos o sabemos !

Há pouco chegou-me ainda às mãos um artigo dentro da mesma temática, o envelhecimento, cujo autor é o historiador Leandro Karnal, o qual foi republicado pela jornalista brasileira Maya Santana no seu espaço online "50 e mais - Vida adulta inteligente", do qual vou retirar alguns excertos, porque o achei, de facto, fabuloso. 
"Quando o tempo que está pela frente fica menor do que o que já passou" foi o título aposto a esta publicação, substituindo o original "as corujas invisíveis do crepúsculo", para que fosse mais explícito o tema da abordagem do escrito, uma profunda reflexão sobre o nosso caminhar para o fim da vida :

" Há maneiras bonitas de descrever o processo.  A metáfora poética da geada dos anos clareando os cabelos, por exemplo.
Como todo o conceito incómodo, o envelhecimento apresenta denominações diversas , desde o suave "melhor idade" até ao cruel "zona do desmanche".  Rubem Alves sugeria o lirismo de "pessoas com o crepúsculo no olhar".
O Outono não é um raio num céu azul ... Há sintomas prévios.  A primeira vez que nos chamam de "tio" é um alerta.  A percepção acelera-se quando alguém nos cede o lugar no metro lotado, ainda que com o sorriso generoso de um bom escoteiro ...Por fim o elogio que mata o último botão da nossa fantasia de juventude finda, é disparado : "Você está muito bem para a sua idade "... Pronto !  Chegámos lá : à região obscura do Cabo da Boa Esperança ".  Carimbamos o passaporte para a terra sem volta. O que está pela frente fica menor que o que passou.
Uma mulher de 30 anos olha com docilidade e insinua : " Você gosta de mulheres mais jovens ?"
O Dom Juan cinquentão estremece.  Em breve surge o primeiro refluxo após um pouco mais de álcool à noite.  As letras teimam em diminuir diante das retinas cansadas.  Incorporamos palavras complexas ao vocabulário : presbiopia, estatinas, colonoscopia ... A nossa casa fica cada vez mais confortável e a rua mais desafiadora.  A "nécessaire" de remédios aumenta a cada ano.
Há pessoas optimistas e pessimistas.  As duas posturas envelhecerão.  Lutar contra o tempo é como rebelar-se contra a lei da gravidade.  Angustiar-se com a idade é temer a chegada do fim do dia ou das fases da lua.  Não existe maneira indolor de viver o processo, mas há coisas objectivas a considerar.

Hegel notou que a coruja de Minerva levanta voo apenas com as sombras da noite.  Esta era a análise tradicional para indicar que a ave símbolo da reflexão e ponderação ( dedicada à deusa da sabedoria Minerva ) consegue subir no instante do declínio da luz.
A sabedoria nunca é alcançada cedo e nem sempre a tempo.  Não existem garantias, mas a tradição ensina que podemos melhorar com o tempo.  A diminuição dos movimentos rápidos dos anos do vigor máximo colaboram nesta conclusão. O carro vai mais devagar e a paisagem é mais clara, ainda que com óculos.
É uma idade de sinceridade.  Crianças, velhos e bêbados têm um compromisso maior com a verdade.  Nem sempre ficamos pacientes, mas cresce a autenticidade.  A idade madura abre os olhos para as coisas essenciais.  Idade do fim ?  Há controvérsias.  Para muitos é o momento de começar a fazer o que realmente gostam.
Quando o mundo não precisa mais ser conquistado, ele pode ser fruído.  Há mais tempo para isto.  Os ritmos podem ser respeitados.  Há vagas em estacionamentos e filas preferenciais.  De quando em vez, surgem netos, um estágio superior de paternidade e maternidade.  Alguns possuem mais dinheiro na maturidade do que na juventude.  Perdemos a obsessão com o julgamento alheio.  Quase sempre saímos do jogo da sedução.  As cabeças não se voltam assim que entramos.  Como muitos perceberam, aumenta a nossa invisibilidade para o mundo.
Na infância, eu achava que o "Homem Invisível" dos programas da televisão, poderia fazer quase tudo.  Os seres crepusculares podem !!!

As corujas voam mais livres no fim !!! "

Há os optimistas e os pessimistas, é dito no texto.
Há os que dizem "eu nem penso nisso", "eu convivo muito bem com o passar dos anos" ... E também os que garantem ":  eu orgulho-me de cada ruga do meu rosto, é um sinal de vida vivida, e isso é muito bom !"
Esta última afirmação normalmente sai de bocas femininas e perdoem-me se sou leviana na conclusão de que se trata duma profunda hipocrisia, uma espécie de tentativa de se escamotear o lugar onde dói mais ...
Costumamos perseguir bons cremes, boas marcas, bons resultados, plásticas e outras alternâncias ... certo ?...

Eu não me orgulho nem um pouco de sentir que o envelhecimento me confere prerrogativas.  Reconheço que talvez seja mais cómodo, mais fácil, sentir-me livre de alguns espartilhos cansativos que a sociedade impõe ao longo da vida, agora no declínio desta.  A vida profissional, a vida familiar, a vida social ditam regras impiedosas, quase sempre rígidas.  Os exemplos que devemos dar aos filhos, aos colegas, à sociedade duma forma geral são normalmente castradores de tão impositivos.  E não devemos/podemos afastar-nos dum impoluto desempenho ao longo dos anos. e isto é brutalmente cansativo e desgastante !
"Idade é estatuto", ouvimos dizer, como sinal de libertação.
"Para as crianças e para os velhos ninguém olha", dizia a minha mãe quando por vezes eu lhe exigia esta ou aquela postura mais severa e gravosa já no fim da vida.
Hoje, já me permito, também eu, transgredir um pouco.  Já me "borrifo" para o que pensam, acham ou mesmo dizem ...
Vivo mais descontraidamente, porque na verdade não tenho satisfações a dar, sou totalmente anárquica nas horas das refeições, nas horas da dormida, a pouco ou nada me submeto a terceiros ... pauto-me pelo meu calendário interior, tão só !  Faço quase sempre apenas o que me dá "na gana", e isso é de facto uma mais-valia neste timing da vida.
Depois, já não sou mãe, sou avó, e isso confere-me o "doce" da coisa.  Raramente tenho que opinar, menos ainda decidir e a responsabilidade dos acontecimentos nessa matéria, não onera sobre mim.
Giro o meu dinheiro e consequentemente as minhas "loucuras"...

Esta, a vertente agradável neste deslizar rampa abaixo...

O meu pai que partiu com 90 anos e se deslocava já há alguns com uma canadiana num braço, manteve a sua possível autonomia e independência até bem tarde.
Morando nos arrabaldes, quase todos os dias ia dar o seu passeio até à Baixa da capital, tomar o seu chocolate quente na pastelaria Suiça e frequentemente bater uma sorna nos confortáveis sofás do Montepio Geral, de que era cliente.
Olhando a sua visível e óbvia limitação motora, era frequente darem-lhe o "tal lugar" no comboio que utilizava.  Pois bem, lembro até hoje a sua exasperação pelo facto, sendo mesmo frequente recusar a gentileza ...
O meu pai nunca aceitou que envelhecia a olhos vistos, coitado ...
A minha mãe que também partiu com uma longevidade invejável, 97 anos, tinha um desgosto profundo ao constatar o evidente declínio que os anos lhe foram somando.
Extremamente autónoma quase até morrer, independente, dona da sua vontade ( quase sempre indomável ) e da sua mente que apenas no fim a atraiçoou, apresentou inevitavelmente, limitações físicas crescentes com o transcurso do tempo.  O prazo de validade da "máquina" foi-se aproximando do fim ... e ela bem o sabia.
Penso que quando ficou numa cadeira de rodas, dependente de terceiros, foi  finalmente  obrigada  a enfrentar o inegável, e  de  mansinho  foi  desistindo  de  viver.  Sempre  sob  protesto !
" A vida tudo dá e tudo leva" era a máxima que não cansava de repetir.  Olhava as suas fotos antigas e percebia-se claramente o profundo desgosto com que dizia : "desta Margarida já não existe nada!..."
A minha mãe também conviveu muito mal com o crepúsculo da vida !

E eu ?
Teria que ser obviamente semelhante aos meus pais, no abordar deste sensível tema.
Convivo pessimamente com a ideia da morte.  Todos os dias, posso garantir, que em algum momento esse tema aflora o meu espírito ... por isto ou por aquilo. Às vezes sem um nexo de causalidade aparente.  Ou porque mais um dia passou e menos um dia faltará, ou porque estando só em casa, num prédio sem barulhos ou movimentos tudo parece na maior solidão, ou porque constato que para subir a um banco devo colocar um outro intermediamente ... se não, já lá não vou ... , ou porque o ouvido vai dando sinais quando nos diálogos dos programas que assisto na televisão, metade é adivinhado e só metade percebido, ou porque, apesar de intervencionada cirurgicamente às cataratas e à miopia, pareço continuar a ver outra vez pior ... ou porque a rua ( como também se diz no texto ) , é lugar pouco fiável, bastando ver os trambolhões já dados só porque a maldita sandália embicou num desnível de meio centímetro ... ou porque já morreram não sei quantos colegas de sempre, e este e aquela estão com doenças sem horizonte possível, ou porque ... ou porque ...
Também eu olho as fotos de há dez, quinze anos ... e olho-me hoje.  E não aceito, e não quero e recuso este "el dourado" de vantagens, de compensações, de contrapartidas que o envelhecimento promete trazer.
Queria continuar a sentir-me a mulher inteira que eu era, queria continuar a poder sonhar todos os sonhos do mundo sem restrições ou limites, queria ter forças e vontade para cometer iguais loucuras, e acreditar nelas com igual verdade e veemência ... queria poder continuar a jogar o jogo da sedução ... ainda que eu saiba quão utópica sou ... quando os pés me pesam na terra embora as asas me levem acima dos píncaros ensolarados das escarpas, pelos céus rumo ao infinito da liberdade dos sonhos ...

Queria ser condor e não coruja ... ainda que estas voem mais livres no fim !!!...





Anamar

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