terça-feira, 25 de julho de 2023

" O DAY AFTER ... "


O dia seguinte é o pior dia !
Acordar e perceber que nada daquilo foi um sonho mau, foi apenas um pesadelo que nos assombrou a noite, e que tudo o que julgámos ser verdade, o era de facto, e não se tratou simplesmente dum daqueles sustos que se desfaz em nada, quando finalmente abrimos os olhos e consciencializamos que um novo dia começou ... é alguma coisa duma dureza e duma crueldade sem tamanho !
Quando o torpor do sono nos abandona, e somos chamados a raciocinar, a reagir ... a voltar a viver com a realidade que nos cai em cima, aí sim, as forças objectivamente faltam e uma vontade louca de retroceder no tempo, toma conta do nosso espírito.

Depois duma noite de sono pesado induzido por uma droga qualquer tomada para que os olhos começassem a fechar, na renitência de se manterem abertos, acordei realmente vazia.  Vazia de esperança, vazia de vontade, vazia de vida. 
Fiquei quieta naquele limbo irreal duma realidade nova para lá daquela porta do quarto.  O silêncio era total, nem o Jonas nem o Chico vieram miar-me à cama, com uma precisão matemática, parecendo terem um qualquer relógio biológico, certo ao minuto.
Todos os dias eu vociferava irritada, por não haver uma margenzinha de tolerância para a dorminhoca da casa.  Mas o horário da insulina era religiosamente respeitado ...

Hoje não havia insulina a ministrar, ontem também já não, e amanhã e depois e depois e depois ... e nunca mais será necessário fazê-lo, porque, de quem a recebia, já nada resta ...

Revi tudo outra vez.  Fiz rewind das últimas horas da minha vida, das nossas vidas.  
O Chico foi internado na madrugada de domingo, em hipoglicémia declarada.  Aceitou entrar na caixa transportadora, ainda os primeiros raios de sol não haviam despertado.
O Jonas, em cima da minha cama desfeita, acompanhou com o olhar, na penumbra do quarto, as voltas anormais a essa hora do dia ... mas nem se mexeu, resolveu ficar, talvez já sem entender.
Ao transpor a porta e aceder à escada onde o Chico, sempre que podia gostava de ir, escutei os seus miados baixinhos e doloridos.
Um mau pressentimento assolou-me ... Voltaria o Chico a transpor aquele umbral, de regresso à sua casa ?
Mas segui, decidida, enfrentando o que viesse, o que estivesse pra chegar.  Afinal, sem comer há vinte e quatro horas e numa prostração total em que nem os olhos abria, não poderia continuar.  
A noite fora vencida, apesar de haver momentos em que julguei que ele ia desistir.
Eu, nauseada, com vontade de vomitar, só ansiava conseguir vencer a estrada e chegar rapidamente às urgências.  O percurso fez-se em silêncio.  O Chico não reclamava, sequer reagia .
Depois da observação prévia, foi-me comunicado ser preciso colher sangue, urina para análises, e fazer uma ecografia abdominal para observação de órgãos vitais associados obviamente à patologia diabética instalada.

Uma longa e ansiosa espera na sala onde ninguém mais estava, num hospital vazio e sonolento àquela hora, aguardando a saída dos primeiros resultados, parecia não terminar nunca.
Finalmente o Chico voltou a ser trazido para junto de mim, mas já com um colar isabelino no pescoço e as patas anteriores enfaixadas para a fixação de cateter com acesso.  
O médico anunciou que já viria falar comigo.
Sem posição e logicamente impaciente e em desconforto, o Chico procurava aninhar-se para deitar a cabeça na mantinha que cobria a transportadora.  Eu metia os dedos por entre as grades da porta e falava-lhe  baixinho ...  "É a  dona ... está  aqui  a  dona.  Não  tenhas  medo !"...
Finalmente chegou o veredito: o Chico tinha as análises totalmente alteradas. Uma glucose a menos de metade do normal, potássio mais do dobro, creatinina e toda uma série de parâmetros descontrolados.  Eu já nem ouvia as explicações do médico, só retive "tem que ficar internado, tem que ficar internado, tem que ficar internado ..."- uma espécie de ribombar de trovão nos meus ouvidos.
"Vamos tentar estabilizá-lo ; através do soro vamos fazer-lhe um choque de glucose, imediatamente. Dos resultados do estudo ecográfico ainda não há notícias.  É a médica ecografista que os fornece e provavelmente só amanhã".

Regressei a casa.  Do trajecto lembro pouco. Sentia-me um zombie. Uma sensação de frio, de solidão e de medo tolhiam-me.  Mas vim e cheguei a casa.
Comi uma torrada e um café e fui caminhar.  Precisava esvaziar a cabeça, se pudesse, deixar de pensar.
O que sentiria o Chico por lá ?
Notícias mais concretas, tê-las-ia ontem, segunda-feira, pela hora de almoço.

A noite foi de "apagão", pois a anterior tinha sido em claro, e aguardei ansiosa as informações que a médica me daria.
Por volta das duas da tarde, o telefone tocou e lembro-me de ouvir a médica dizer : "Venho dar-lhe notícias do seu príncipe.  Conseguimos estabilizá-lo e já trouxemos a glicose e o potássio a valores normais ( não sei se outros valores foram referidos ), mas não tenho boas notícias a dar-lhe.  O estudo ecográfico mostra um pâncreas alterado, o que indicia uma pancreatite e os rins, sobretudo um deles ( também já não sei qual ), mostrando sinais de falência.
Isto indica termos um animal numa situação muito grave que terá que ficar em internamento por tempo indeterminado e carecendo de vigilância permanente e sem qualquer qualidade de vida.  Não esqueçamos que tudo isto é potenciado pela diabetes de que sofre.
Portanto, de acordo com a equipa médica, deixamos e acatamos inteiramente o que venha a decidir !"

Sentia-me perdida, como se uma violenta paulada me tivesse atingido em cheio.  Uma decisão hedionda que me cabia agora tomar. 
Não podia ser egoísta e permitir que o meu companheiro de tantos anos continuasse limitado e a sofrer. Afinal eu defendo a eutanásia, e tenho esperança que também para o ser humano, lá haveremos de chegar.
Mas decidir, dizer "é agora", retirem-lhe o último sopro de vida, chegou a hora para o Chico ... é duma violência atroz, que infelizmente muitos de nós já experimentámos.  Eu própria já passei por vários destes momentos, e lembro cada um deles como a ante-câmara dos horrores ...

Mas havia que seguir adiante.  Voltei ao hospital e resolvi.  
Por ele, por mim, por todos nós que com ele privámos e que tanto o amámos, que com o maior amor e carinho possíveis, chegara mesmo a hora ...
Embrulhado numa mantinha, o Chico esteve no meu cólo, numa sala privada, alguns minutos só nossos.  Falei-lhe bem baixinho, falei-lhe do Jonas, da Teresa que o adorava, disse-lhe como a nossa casa, agora lá longe, ficaria vazia, triste e escura ... pedi-lhe que me perdoasse, disse-lhe como o amei, registei-lhe o olhar em meia dúzia de fotografias que farão parte do meu espólio enquanto viver ...
E deixei-o ir ... 
Será que me sentiu até ao fim ?  Será que confiou que eu o protegeria ... ou terá sentido que o traí ?

E hoje ... bom, hoje é o "day after", o tal dia dos horrores. O tal dia em que nem acredito ... o tal dia em que o espaço é demais, o vazio se instalou e a luz se apagou...
É tudo isto o que eu sinto, sem empolamentos, sem preocupação de medida ou proporcionalidade, sem receio que me achem exagerada, tonta ou piegas ...
Afinal, foi "alguém" muito meu que me deixou e partiu ...

Mas juro que ainda há pouco o vi passar por aqui ... 

Anamar

segunda-feira, 24 de julho de 2023

" MAIS UMA LUZ LÁ POR CIMA ... "



                                                                2012  -  24 Julho 2023


Primeiro são os olhos.  Sempre primeiro são os olhos e a ternura que passavam ao olhar-me. 
Até ao fim ...
Depois, as mãos.  As mãos são sábias.  Não precisam de voz p'ra exprimir o que sentem. As mãos ou as patas, tanto faz.  E era assim ... ele não saciava nunca a ânsia de um afago, quando nos puxava pelo braço, uma e outra vez. 
Era uma festa, e outra, e mais outra ... porque não sabia dizer "mais"... não aceitava que eu lhe dissesse "chega" ... e ronronava deliciado...
Finalmente vem o cheiro, o nosso cheiro que sempre buscam nos nossos lugares, nas nossas coisas, nos espaços que deixámos vazios ...
O cheiro que nos identifica, o cheiro que nos deixava ao roçar-se ... no cumprimento, na marca ... na saudação, e também na ternura e no reconhecimento .

Vazio está tudo agora.  Profundamente vazio ... pesado de vazio ...
Já não me vens esperar à porta, sempre com ar de aceitação e alegria, mesmo quando eu havia dito "a dona já vem ... espera só um bocadinho !"... e esse bocadinho tinha sido uma semana, dez dias ...
Não importava.  Eu já estava de novo, para passares pelas brasas chegadinho ao meu corpo, quando dividíamos o enfado da televisão.
Já não corres atrás da vassoura, ou me pedes água no poliban.  As gotinhas, uma a uma, eram um fascínio para um gato brincalhão ... 
E os teus passeios à escada, quando a porta se abria e a tua curiosidade te convidava à liberdade do lado de fora, também já não vão mais repetir-se...
Estou aqui a pensar se te despediste do Jonas, que agora anda meio perdido à tua procura, por certo sem perceber grande coisa. 
Da Teresa, que te adorava, sei que não te despediste.  Afinal, não houve tempo.  Ela passará a olhar-te, por cada noite, lá longe, na estrelinha ... a mais brilhante que o céu agora tiver !...
A Teresa, afinal, já vai coleccionando algumas "estrelinhas" lá por cima ... infelizmente ...
A esta hora, com o calor da tarde, estarias aqui no cantinho da secretária, deitado preguiçosamente, bem relaxado no sono profundo que fazias com gosto.  Eu, no computador, escrevia, ouvia música, ou simplesmente vagueava por aí ...
Percebia-se claramente que já sonhavas, e só contemporizavas em abrir um olho e arrebitares as orelhas, quando o teu nome era proferido bem mais alto ... "Chico, oh Chico" ... e era assim todos os dias ! 
Olho para lá e não te encontro. Só o tal vazio pesado e um silêncio tonitruante que me trespassa a alma ! 

Os teus ritmos, as rotinas, tudo aquilo que nos desenha a vida, todos os sinais, as memórias ... o que fizemos, dissemos, com que marcámos as nossas existências e as de todos os que se cruzaram connosco, são de facto o que fica, sempre ficará, e constroem as nossas histórias ... Até um dia ...

Partilhámos um pedaço delas, Chico.  As nossas estradas são feitas de parcelas, de pedaços indeléveis, pelo bem e pelo mal.  Acompanhámo-nos, dividimo-nos, "dialogámos" ... até chorei contigo, algumas vezes, em marés mais alterosas. 
Eras o meu gato XXL ... como eu dizia e como o eras, no princípio, antes da maldita doença te devastar.
Hoje, pelas quatro da tarde, no meu cólo adormeceste rumo a outra dimensão.  E eu fiquei mais pobre, muito mais pobre, porque um imenso pedaço de mim, do meu coração e da minha alma, também foi contigo.
Contei-te uma história. Falei-te do Jonas, da Teresa ... de mim ... e sussurrei-te que era injusto deixares-me por aqui ... tremenda deslealdade ... nem parece teu, Chico !!
  
Um dia talvez nos encontremos.  Acredito que vocês todos, os que foram adiante, hão-de esperar pelos que ficaram um pouco para trás.  Até é uma ideia esperançosa que me agrada e ajuda, nesta hora em que tudo é triste e escuro à minha volta ...
Havemos de fazer uma grande festa e eu prometo-te levar os "baguinhos" gulosos com que te aliciava quando queria que viesses atrás de mim ...  

Adeus Chico, obrigada por teres iluminado o meu caminho.  Sem ti, nunca nada mais vai ser igual !
Onde estarás agora ?  Será que nos vês daí donde estás ?  Já estou cheia de saudades ...
Descansa em paz !

Anamar

quinta-feira, 13 de julho de 2023

" AS PROFUNDEZAS DO NOSSO EU ..."

 


O ser humano é de facto uma máquina extremamente complexa.  Não me refiro, obviamente aos seus contornos físicos mas sim à impenetrabilidade da sua mente, da sua psique, daquele "mundo" hermético e inacessível que é o seu eu interior ... onde o alcance, o conhecimento e consequentemente a compreensão e descodificação, de tão impenetráveis, eu diria serem uma impossibilidade, mesmo para os especialistas entendidos na matéria, independentemente de disporem ao dia de hoje de infinitas ferramentas e metodologias desafiadoras, testadas e largamente ensaiadas.

De facto, o "eu" interior de cada um é um universo tão avassalador e escuro, que até à própria compreensão escapa.

Não sou estudada nessa área, não tenho conhecimentos seguros no domínio científico que me confiram qualquer grau de conhecimento ou autoridade que me permitam pronunciar a propósito.
Só tenho a informação do que vou lendo, associada a uma curiosidade pessoal, preocupação e interesse de pesquisa de auto-conhecimento, um interesse profundo em analisar procurando entender, em mergulhar sempre mais fundo para explicar determinados padrões comportamentais que reconheço em mim.  Um interesse genuíno e legítimo de "me" auto-conhecer, afinal ... 

Ao longo da vida, quase sempre me impressiono por exemplo, com inexplicáveis posturas de recorrência, aparentemente incoerentes e indutoras até de sofrimento repetido, mas que assumo teimosamente, como se houvesse um qualquer determinismo de vida que me comanda e contra o qual eu não tenho capacidade de enfrentamento.  
Apesar de as identificar, é como se no meu "computador" mental existisse impressa uma matriz emocional condicionante do meu comportamento ... um registo algoz que me pressiona, me empurra, dele eu fosse refém ... ele sim, com ascendente sobre a minha mente e a minha vontade, contra o qual eu perco a capacidade decisória, a força interior e o livre arbítrio ... 
Duma  forma absurda e ridícula ... como se eu fosse refém ou marioneta desse "mundo" das profundezas !...

Porque razão se repetem recorrentemente os mesmos erros, como se os perseguíssemos?
Porque razão agarramos os mesmos paradigmas posturais, fazemos as mesmas escolhas desastrosas, como se cultivássemos um masoquismo estranho e doentio do sofrimento ?!  Sabendo-os não obstante, erráticos !...

Exemplifico :  Porque razão, no meu percurso afectivo, o perfil de homem e ligação que sempre persegui e onde me refugio gratificantemente, corresponde a uma personalidade que já demonstrou não me fazer feliz?!
Contrariamente, duma forma racional, o perfil que teria toda a potencialidade para me trazer estabilidade e paz, é desprezado por mim.  Sempre !
E como tal, já se imagina o resultado prático das coisas.

O mesmo se passa com uma das minhas filhas. Parece ter uma tendência mórbida para o insucesso emocional e afectivo.  Busca, busca e não chega a lado nenhum, ou seja, privilegia escolhas que, à partida, ela já sabe só servirem para lhe encrencar a vida.
Reflecte, analisa, percebe claramente onde erra o caminho, não consegue afastar-se o suficiente para, usando de algum pragmatismo e frieza de cabeça, corrigir a mão e enveredar por outro trilho.
Desperdiça sempre, o que ( pelo menos do ponto de vista analítico de quem não está directamente envolvido ), lhe valeria a pena em detrimento de uma realidade cujo filme já conhece, que já visualizou vezes demais, que sabe sobejamente, a fará infeliz.  
Mas a atracção do abismo parece ser mais forte que tudo, e é manifestamente "suicida" ...

A mim, de certa forma isso foi explicado por uma psicóloga em consultas de psicoterapia.  Passo a expor :
Fui filha de um pai idoso.  Quando nasci o meu pai tinha 48 anos.  Viajante de profissão, foi, ao longo da vida, uma figura distante, "fugidia", alguém que eu via de quinze em quinze dias, alguém que não estava fisicamente, desde que comecei a ter consciência da vida.  
Era portanto alguém que nunca estava no imediato, cuja segurança e protecção nunca poderiam por isso, serem providenciadas em tempo real.  
Vivendo com a minha mãe exclusivamente, a qual assumia toda a responsabilidade da minha educação, foi-me incutida a incerteza do meu pai viver até à minha independência e autonomia.  Hoje, com a longevidade do ser humano, esta ideia não faz muito sentido, mas estamos nos anos cinquenta ... Sempre pairou, portanto, a ameaça do afastamento forçado da figura paterna, que consequentemente nunca foi segura e certa.  O meu pai era a figura masculina que na minha vida, entrava, saía ... digamos que perpassava por ali, como um "homem em fuga"...
Pois bem, psicologicamente o ser humano regista, fixa o paradigma de "homem" e tenta repeti-lo para si, ao longo da vida.
Pareceria que eu deveria escolher para mim, exactamente o oposto deste perfil que me fazia sofrer, ou seja, homens que me estabilizassem, com quem eu contasse, que fossem certos e seguros, homens que pela sua postura "presente" sempre me equilibrassem por me reduzirem as angústias e as incertezas ... Mas não !  
Ao que parece, eu busco nas figuras masculinas a repetição do que tive ... ou seja, as minhas grandes relações, sempre foram homens com um elevado grau de impossibilidade, alguém não certo, não disponível, alguém com quem eu nunca poderia contar até à exaustão, alguém que verdadeiramente nunca fosse "meu" e com quem eu na verdade jamais contaria a cem por cento !...
Isto, em detrimento de tudo o que afinal tornaria tão mais simples a minha existência, a tornaria teoricamente mais gratificante e preenchedora, na minha vida emocional e afectiva !

Mas eu estou numa faixa etária em que apenas reflicto, analiso, concluo ... e verdadeiramente já não me molesto com nada disto.  Foi assim, teve que ser assim ... pelos vistos há explicação científica para as coisas ...
Agora, ver alguém nosso a destruir-se com uma "maldição" titânica, em que apesar de todos os esforços, destrinças e alertas, continua a deixar-se atolar em profundezas inóspitas e escuras, como se num pântano mergulhasse, é desesperante e destruidor !!!

Anamar

terça-feira, 11 de julho de 2023

" A VERDEIRA VIAGEM ... "

 


Regresso ao tema das viagens, talvez porque esteja confinada em casa com uma inesperada visita de Covid - Parte 2 ( vou chamar-lhe assim, porque sou reincidente na matéria ), o que me deixa angustiada e saturada ao mesmo tempo.  De facto, não estava  nos  meus  planos  ser  surpreendida,  mais  de  um ano  depois,  outra  vez  com  esta  "novidade" ...

Eu adoro estar em casa, aliás privilegio o tempo que aqui passo, como se num ninho estivesse.  Não fico de neura nem me apoquento. Ainda que pouca coisa faça ou desenvolva em termos de trabalho caseiro, ainda assim, o meu refúgio é lugar bem-quisto e repousante sempre.  Mas uma coisa é estar cá por opção, outra por obrigação ... Sempre assim é o ser humano !

Por isso, pensar na próxima ou próximas viagens ( porque destinos não me faltam e a imaginação sofre de ataques comichosos ... 😁😁 ), passíveis de se tornarem realidade futura, ou não passando de sonho sonhado, é uma panaceia que sinceramente aprecio e é muito do meu agrado.  É como se desta forma, como a ave que vai saltar do ninho e avalia do balanço do impulso, eu já fosse por aí fora rumo a novas paragens sem sair ainda do lugar ...
Ele há doidos p'ra tudo neste mundo ... 😁😁

Acontece que as viagens que faço, que tenho feito, que já só posso fazer, ficam por assim dizer, a anos-luz daquelas que adoraria fazer e jamais realizarei.  
Passo a explicar :  Sempre viajei, sozinha ou acompanhada, com uma rede por detrás, ou seja, espaldada numa agência, perante um programa ou projecto previamente proposto, que escolho e aceito.  Essa é a tipologia das viagens que se encaixam no espírito de viajante da minha geração.  Viagens seguras, previsíveis, vocacionadas para os sacramentais destinos turísticos, observando os lugares mais icónicos de cada país ou região, vendo o que toda a gente escolhe ver, visitando os paradeiros mais procurados e frequentados pelos forasteiros em cada país.
São por assim dizer, viagens sem surpresas, dimensionadas, calculadas sem sobressaltos, viagens "de carneirada" se em grupo, como costumo designá-las.  Talhadas por figurino prévio, vamos onde sempre vão, duma forma idêntica por cada grupo que a realiza.
Acredito que se a repetir, irei ver as mesmas coisas, não mais, irei escutar as mesmas histórias, ver os mesmos lugares, percorrer as mesmas avenidas, calcorrear os mesmos parques ...
Chamo-lhes viagens "plásticas", de fabrico em série, direccionadas para massas, talhadas para hordas de visitantes, mais ou menos interessados e disciplinados.  Têm pouca ou nenhuma emoção para quem tem um espírito inquieto e aventureiro como eu.  Curioso, também ...
São sem dúvida, viagens excelentes para acrescentar carimbos nos passaportes, como testemunhos de que já fomos àquele país.  E há pessoas que parecem pouco mais serem que apenas fãs deste coleccionismo ...
E desde que deixei de viajar só, a fasquia ainda desceu mais, porque aquela sensação gostosa de liberdade, de adrenalina, de auto-gestão que o facto de todas as escolhas e decisões se centrarem exclusivamente em mim, desapareceu, deixou de ser vivenciada.
Tenho saudades de, por exemplo, me ver em escala no aeroporto de Singapura ou Dubai, pelas quatro da manhã, sentada no chão a queimar o tempo observando com curiosidade toda aquela "fauna" que por ali circulava igualmente em trânsito, num aeroporto que nunca dorme ...
E como era interessante observar povos diferentes, hábitos diferentes, posturas diferentes ... ainda que fosse madrugada e o sono espreitasse há muito ...
Ou quando em Heathrow, igualmente no meio de uma viagem, também pela madrugada, o cansaço me levou a deitar nos bancos do aeroporto, cabeça na mochila, a passar pelas brasas, e por pouco não fiquei lá, tão profundamente peguei no sono ...
Ou quando em Bali ou em Zanzibar escolhia as opcionais que me interessavam e lá ia eu, só com o condutor do carro contratado, em busca da aventura de lugares exóticos, parques inóspitos, mercados fascinantes ...
Enfim, eram sensações preenchedoras, gratificantes, inesquecíveis ...

Mas tudo isso não representa a "verdadeira" viagem.  Porque essa, leva-nos ao âmago das gentes, leva-nos às vivências das terras, dos lugares, dos hábitos, das histórias, dos costumes ... das realidades outras, por esse mundo fora !...
E essa, nunca fiz na verdade, e também, nesta encarnação jamais farei ...
Nasci atrasada, fora de época, sempre vivi desenquadrada do possível, da correnteza, do que era ...
O meu espírito e mente de "mochileira" do destino, não podiam caber na geração em que nasci, nas épocas que atravessei ... não se compadeciam com as responsabilidades que desde cedo nos espartilhavam, num figurino familiar que se assemelhava a um qualquer determinismo da existência ... 
Invejo ... como invejo os jovens de hoje que desde os "erasmus" da vida, aos "inter-rails", aos intercâmbios temporários de países e famílias, se aventuram e partem, e experienciam e desvendam mundo fora novas realidades, novos rostos, novos gostos, novas vivências, sem peias ou grilhões que os prendam ... E tudo é um enriquecimento que não tem preço ou valor ... tudo é VIVER!
Como invejo estes cidadãos do mundo, neste mundo global em que as fronteiras não são mais baias ou limites, e as portas estão escancaradas ao sonho !!!...

Resta-me sonhar do sofá, resta-me "voar" pelas fotos, resta-me reescrever ou redesenhar o que nunca escrevi ou desenhei verdadeiramente além da imaginação, da vontade e do sonho ... e esse, felizmente é livre, independe de todos os condicionalismos que a realidade nos impõe, com que nos verga e coarta !!!...

Anamar

" SUR LE PONT D'AVIGNON ... "

 



Fui ... e até parece que fiquei... De facto, nunca mais aqui voltei. Uma desmotivação total tem-me afastado das "lides literárias".  Nada para dizer, nada para escrever, na verdade uma dispersão de sentimentos, uma mornidão de emoções, uma amálgama de questões reais e objectivas, dessas que não dá para fazer de conta que não existem, têm-me remetido a um desinteresse insalubre, cinzento e meio mórbido, silente e extenuante.
Quando as preocupações da vida nos sufocam, quando as angústias connosco e com os nossos avassalam o nosso espírito, é natural que não sobre muito "espaço emocional" para nos debruçarmos sobre até aquilo que nos era vital à existência ... neste caso, a escrita, ar que respiro, oxigénio determinante ...
Enfim, como diz assisadamente, para me confortar, alguém que talvez saiba do que fala ... "não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe ... e que depois da tempestade, virá o bom tempo " ...
Limito-me portanto a esperar, dando-lhe o benefício da dúvida !

E fui, como havia dito que iria.  Fui até ao sul de França, espantosamente país onde nunca aportara até então, concretamente Marselha, Avinhão, Aix-en-Provence, Roussillon, Les Beaus de Provence, Arles, Cassis e tudo o que por ali fica, guardando a teórica esperança de ser presenteada com o espectáculo característico e fantástico desta zona, por esta altura do ano : a floração das lavandas e das alfazemas, que dessa forma pintam de roxo os campos a perder de vista.
Em vão.  Havia de facto zonas de maior exposição solar onde elas já haviam aberto os olhos depois do longo sono invernal, mas o que eu teria adorado admirar, precisaria de mais umas três semanas para ocorrer.
Paciência !
De qualquer forma, viajei, saí do marasmo diário que é a vida repetida todos os dias, e pude usufruir de outras valências que realidades desconhecidas sempre nos proporcionam.  
Tratou-se de uma viagem em grupo, bem extenso por sinal, em que o mix de personalidades, em convivência diária por muitas e muitas horas, propiciam um enriquecimento pessoal, uma partilha de formas de estar, de sentir, um confronto de valores que nos livram do tédio, da má disposição, da saturação e até do enjoo ... 😁
Acresce que o grupo é constituído por amigos, todos eles alentejanos, e amigos dos amigos, porque sendo-o, amigos são !
Além da variedade de experiências abrangidas pelo programa, desde as belezas naturais, ao bucolismo das aldeias inseridas na paisagem, a arquitectura das cidades, o fascínio das catedrais e outros monumentos, a abordagem Histórica dos lugares e das pessoas, seus hábitos e tradições, tudo  enriqueceu a viagem.
Tocámos a rota dos pintores impressionistas dos fins do século XIX, início do século XX, em que Cézanne, Renoir,  Monet, ou Van Gogh cuja atribulada e rocambolesca vida, para mim terá sido o expoente máximo. 
Visitámos inclusive o atelier de trabalho de Cézanne em Aix-en-Provence, o qual permanece intocado, com todos os seus objectos de trabalho deixados por ali, quase sugerindo que o pintor saíu por instantes apenas ... 
O romantismo das cores, dos cheiros, dos silêncios, respirados nos ocres, amarelos e vermelhos sanguíneos fulgentes, dos sólos que habitaram, só poderia mesmo inspirá-los para as obras imortais que por cá deixaram.
Do passeio de barco ao recorte fascinante das "calanques de Marselha", zona pertencente ao Parque Nacional protegido desde 2012, à Ilha d' If, ilha prisão de deportados e criminosos, envolta romanticamente na história do seu prisioneiro mais famoso, o Conde de Monte Cristo ( onde se pôde visitar a cela em que cumpriu pena ), passando pelo bairro típico Le Panier em Marselha, onde a multiculturalidade e o tipicismo de vida muito particular de quem lá vive nos remete a outras realidades, ao espectáculo multimédia a ocorrer numa pedreira ancestral, em Baus de Provence, com uma dimensão esmagadora e fascinante, exactamente sobre as obras dos pintores marcantes do Impressionismo, como referi, até à  própria povoação de Baus, recortada e construída com o calcário extraído dessa pedreira e com características em tudo semelhantes à nossa Vila de Óbidos de que tanto gosto ... foram apenas alguns aspectos que retenho com bastante agrado.



 E depois, claro, com Avignon e o seu imponente Palais des Papes, e sobretudo com a sua ponte semi-destruída sobre o Rio Ródano, regressei aos bancos de escola em que na disciplina de francês se aprendia a trautear e a dançar de roda, a modinha infantil "Sur le pont d'Avignon on y danse ... on y danse ... tout en rond " ... 
E assim foi !...

Anamar

quinta-feira, 1 de junho de 2023

" INDO ... "



" Vou-me embora, vou partir ..." diz Vitorino, com o cantar da nossa terra em fundo ...
  Também eu hei-de ir e hei-de voltar ... com o vento...

As minhas viagens, a minha "arte" de navegar por aí fora, a minha ânsia de percorrer pedacinhos deste mundo como meus, não pertencendo embora a lugar nenhum, atormentam-me a cabeça como sezões que fossem e sempre voltassem exactamente a cada curva do tempo, feito um ar que preciso pra não morrer ... como uma necessidade louca de me soltar, ciclicamente, de ir e voltar, exactamente  na liberdade da aragem que corre ...

Não sei o porquê, não explico a razão, não passa por nada mais esta minha precisão, do que a ânsia imperiosa de sentir na alma a liberdade da gaivota que só respeita o balançar da correnteza ... faça-se ela na crista das ondas ou no topo das falésias invencíveis ...
É uma purga, uma libertação, um abrir de janela encerrada, um pedaço de pão para a boca, uma emoção de descoberta, incontida ...
É um reencontro de bocados de mim que se repõem nos lugares certos, para que não me faltem, neste coração errante ...

Já parti muitas vezes ... não posso queixar-me.  Já sonhei muitos sonhos de distância.  Já regressei com a alma plena das cores, dos cheiros, da luz, dos sons de outros chãos.  Já os perpetuei "ad eternum" e os guardo para sempre no recôndito da alma.
Já aconcheguei em mim os rostos dos meninos de S.Tomé, das crianças de Myanmar, os sorrisos tímidos das mulheres de Bali, ou do Vietnam, os silêncios das águas no Pantanal ou os os gritos da mata amazónica longínqua.
Já olhei perdidamente o luar sobre as águas infinitas, quando a lua ficou cheia e misteriosa, por tantos lugares do mundo ... e o silêncio mágico de destinos por aí espalhados se me impregna por debaixo da pele.
Já me empanturrei com os pôres e nasceres de sol inigualáveis duma África inexpugnável, e já me perdi nas terras sem limites ou horizontes, como se o mundo não acabasse nunca ...
E tantas, tantas outras memórias a alimentarem-me e a vitaminarem o meu espírito ...

"Viajar é olhar", alguém disse.  E essa frase é de facto o maior compromisso que podemos ter, quando a viagem começa a desenhar-se dentro de nós.
Primordialmemte, sem dúvida.  
Mas viajar também é "sentir", e estar desperto e disponível para absorver todas as sensações, emocionar-se com todas as vivências, desarmar-se perante todos os desafios, sem preconceitos, juízos pré-concebidos, ou "formatações" impostas .

As minhas viagens têm assumido roupagens diferentes ao longo dos tempos, ao longo da idade e da maturidade adquirida, embora eu considere, talvez desafiadoramente, esta não ser a nossa melhor companhia numa viagem.
Comecei a viajar ( pouco ) ainda com família constituída, no desenho tradicional dessas viagens.  Marido, filhas, recursos bem contabilizados, nada de exigências ou veleidades. Esse período já me encontrou com mais de quarenta anos, e mercê do que era, pouca gratificação tive nessas experiências.  Pouca fruição, pouco encanto ( porque a vida já não era então encantatória ), alguma decepção, algum tédio e pouca alegria ... 
Eram os tempos que eu vivia ...
A vida deu então uma volta de cento e oitenta graus e a realidade virou do avesso.
Depois de quatro viagens marcantes e inolvidáveis na minha vida que por razões estritamente particulares não vêm ao caso, comecei a viajar sozinha.  
Comecei a desafiar destinos pouco comuns, por isso emocionantes, carregados de aventura e adrenalina.  Viajava entregue a mim própria, sem verdadeiramente ter uma agência turística por detrás,  explorando, saboreando até à exaustão cada recanto, experimentando e sorvendo cada emoção disponibilizada, sem medos, sem peias ... atrevidamente entregue a mim mesma.
Nessas viagens eu voei ao infinito, eu derrubei fronteiras, eu deixei-me guiar apenas pelo sonho, pela vontade,  curiosidade  e  pelo  ímpeto incontido de olhar,  de  compreender  e  sentir ...
Tudo foram experiências inebriantes, tudo foram emoções indescritíveis ... livre, totalmente livre ! 
Foi o chamado "período da gaivota" em que as amarras e os compromissos eram inexistentes, em que não havia justificativas ou explicações para dar até a mim própria, em que a liberdade, a leveza, a alegria e uma felicidade desconhecidas me preenchiam e inebriavam.
Foram destinos irrepetíveis que abençoadamente persegui e ficaram na minha memória para todo o sempre !

Mas a vida seguiu adiante ... a vida sempre segue adiante ...
Com ela, os anos e algumas já objectivas e sentidas limitações inevitavelmente se vão instalando, e uma consciencialização de que pode sempre ser necessário algum apoio ou rede de segurança por trás, determinaram que as minhas viagens passassem a acontecer em figurinos de grupo, promovidos por agências turísticas.  Sem dúvida é mais prático, tudo se articula sem sobressaltos, mas ... para mim nada já é, como era.  
A  fase  de  "gaivota"  nunca  mais  retornou  ao  meu  imaginário  de  aventureira  livre  e  sonhadora !!!
Tudo passa, na verdade !

Nas minhas primeiras viagens, eu documentava todos os pormenores, ao ponto de, ainda hoje, visualizando as fotografias e os vídeos, eu consiga claramente "rever" o momento em que os fiz.  Consigo saber da luz, dos sons, dos cheiros e cores ... e até às vezes, claramente, o que emocionalmente eu experimentei na altura.  E é fantástico... acreditem !
Fazia-me acompanhar de duas máquinas fotográficas de topo, objectivas suplentes de diferentes alcances, e uma máquina de filmar Sony, também de muito boa qualidade.
Hoje, toda essa parafernália fica em casa, apesar de eu continuar a adorar fotografar e registar visualmente cada momento. Apenas transporto comigo um telemóvel com três câmaras, obviamente com alcance e capacidades insofismáveis ... e os olhos, os ouvidos e o nariz !
E chegam claramente para que eu faça uma cobertura absolutamente escorreita e de qualidade insuspeita, que registe aquilo que vivi ao longo da jornada ...
 
E ainda sou capaz de chegar ao aprumo de um amigo de há anos atrás ( que na altura me deixava incrédula e escandalizada ), que conhecia o mundo todo, viajando sempre sem colher uma única imagem do que visitava.  
Dizia o Paulo : "o que registamos na mente e no coração sempre é inalcançável pelos mais avançados e perfeitos dispositivos de audio-visuais.  O importante é OLHAR, olhar e VER !  Sempre !!!"

E não é que ele tinha total razão ??!!

Anamar

terça-feira, 30 de maio de 2023

" DA VIDA E DA MEMÓRIA "

 


O dia foi de sol e calor.  Ironicamente, na véspera, terça-feira 23 fizera um tempo agreste, com chuva e trovoada.  Um tempo de recolhimento, diria eu.
Mas a quarta-feira, cinco dias depois que a Emília nos deixara para sempre, a manhã era azul, florida, radiante de luz.  O tempo parecia querer despedir-se dignamente de alguém que fora embora cedo demais. 
O tempo parecia querer prestar as honras devidas a quem, injustamente acabara de nos deixar .

Era um "ser de luz"... Seja isso o que for, sempre assim a recordarei.  Uma mulher que partilhou a sua vida profissional comigo, colegas da mesma escola para mais de trinta anos, embora em áreas programáticas diferentes.  A Emília leccionava História, eu, Física e Química.
Foi uma mulher de conciliação, de concórdia, de humanidade, com uma bonomia estampada no rosto, sempre iluminado, sorridente, feliz. Tinha a doçura de um sorriso para todos, e com todos.
Uma postura que sempre manteve, de educação, de simplicidade, de verticalidade, de isenção, de competência, fez dela uma "senhora", pessoal e profissionalmente reconhecida pelos seus pares e por toda a comunidade  escolar.  
Sendo, como dizíamos, da geração dos professores mais antigos da escola, sempre foi uma figura de referência, uma personalidade consensual.

A Emília nasceu no Brasil, em S.Paulo há setenta e seis anos acabados de completar.  Tendo-se licenciado em História pela Universidade de Coimbra, passou, como professora Coordenadora da Casa da Cultura Portuguesa na Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza no nordeste do Brasil, um período da sua vida que sempre, pela forma como o referia, se pressentia ter sido muito feliz, saudoso, e realizado.  
Os colegas e amigos com quem privou então, também o referenciam como "tempos fantásticos, irrepetíveis, de memórias indefectíveis".
Por essas paragens a Emília deixou família e amigos ímpares, a quem uniam laços de cumplicidade,  afecto e uma ternura que transpareciam das suas palavras e recordações.
A cultura brasileira, os seus escritores, poetas e artistas sempre a acompanharam ao longo da vida; a vida social e política da sua terra, nunca foram ignoradas nem a elas foi estranha, em circunstância alguma.
Coimbra, sua referência de juventude, mas também Itália que conhecia profundamente de norte a sul e que amava de coração, Grécia, Turquia e tantos outros destinos que privilegiava nas viagens que realizava, foram marcos na sua vida. 

É fácil elogiar-se quem já partiu ... quem já não existe no nosso plano terreno.  Costuma dizer-se que toda a gente passa a ser de excelência, se já nos tiver deixado.  Infelizmente o ser humano tende a pautar-se dessa forma na avaliação dos que já não têm voz...
Em nada disso a Emília se enquadra.  Por mérito, valor, prestação de vida, partilha, sentido de justiça ... humanidade, mas também humildade, disponibilidade e amor ao seu semelhante, fizeram dela um ser GRANDE ... e por tudo isso é da mais elementar justiça e não mais, que eu aqui lhe devote o meu profundo reconhecimento, a minha gratidão e reitere o privilégio que tive, por ter sido merecedora da sua amizade em vida, e pelo legado deixado pela sua memória !...

Até sempre Emília !  Talvez por aí nos voltemos a cruzar.  Até lá, descansa em paz !!!

Anamar

domingo, 21 de maio de 2023

" É isto assim ... "

 


Nesta tarde insípida, em que o sol que foi brilhando sumiu por detrás de nuvens indefinidas e informes que encimam este céu que também já não é azul, uma outra vez estou sentada frente à janela de sempre.
Donde se avista o casario incaracterístico, também ele insípido como a tarde que se fez, donde se olham  pores de sol de belezas invulgares, donde as histórias da minha vida sempre desfilam ao sabor das memórias ... sinto nos últimos tempos uma estranheza para comigo mesma, que me desconhece frente aos meus próprios olhos.
Parece ter ficado muito lá para trás alguém que sendo eu, se perdeu numa curva de estrada dobrada, sem volta ou retrocesso.
Não sei de mim, não me encontro mais, sou um corpo sem invólucro conhecido.  De palpável sobrou apenas um desconforto imenso, como se eu ocupasse uma cápsula indevida, uma fatiota desajustada, vivesse um ar irrespirável...
Não me sei explicar.  Não me entendo mais, apenas arrasto um cansaço absurdo entediante e desinteressado.  Como se estivesse ébria, narcotizada, doentiamente sonolenta ... anestesiada mesmo, sem capacidade reactiva, sem alento ou vontade.

Pergunto-me se estarei doente, fisicamente falando, porque doenças da alma sempre as arrasto ao longo da vida.
Análises feitas, busca não sei bem do quê, sem vislumbre de coisa nenhuma. 
À minha volta, um emaranhado de situações exaurem-me as forças e a vontade, coartam-me as reacções.  Anseio pela hora do sono como de remédio milagroso para este fatigante mal estar crónico, este desinteresse generalizado pela vida, esta indiferença e imobilismo face a tudo o que me rodeia.
Em suma, estou farta de mim mesma ... e não consigo mexer uma única peça, neste xadrês doentio e sufocante ...

O Chico, companheiro de todas as horas há mais de década, adoeceu, também ele de maleita crónica que o acompanhará pelos tempos em que por aqui ainda andar.  Uma diabetes descontrolada e limitativa inviabilizou-lhe o que de mais precioso os gatos têm ... uma liberdade, uma agilidade motora, uma capacidade e uma alegria de vida inesgotáveis. Arrasta-se, mais do que anda. 
O Chico já não me espera à porta tentando esgueirar-se até à escada, já não "se mete" com a vassoura, desafio provocante que o atormentava irresistivelmente, já não se espreguiça ao sol junto às vidraças, porque simplesmente as não alcança.
Agora, o mundo do Chico é por certo mais imaginado do que real, e o seu horizonte feito das paredes que lhe confinam os espaços.  O Chico vive no chão, vive das nesgas de azul que cá debaixo se divisam olhando para cima, e com os raios de sol dançarinos que ousam atravessar os lugares onde passa o tempo deitado ...
O Chico é um simulacro de si próprio ! 
A escuridão debaixo da cama é guarida segura, e lá passa muito tempo do seu dia.

Num hospital, uma colega e amiga de toda a vida aguarda apenas exalar o último suspiro para finalmente ter alguma paz ... supomos nós. 
Também ela que sempre conheci como uma mulher lutadora, vertical, impoluta, de um trato humano fantástico com toda a gente, sempre sorridente e bem disposta, com um rosto aberto, fresco, amigo, soçobrou à doença maldita das últimas eras.  
E ela que sempre foi o que eu chamaria um "espírito de luz", seja lá isso também o que for, é não mais que um pequeno e frágil farrapo humano, vegetal, silente, morta em vida, à espera da compaixão do destino ou de quem distribui as horas, os minutos e os segundos a cumprir, para expiarmos as nossas faltas ... 
E é então que uma e outra vez se me coloca a problemática do acesso à morte medicamente assistida, e o direito de que todo o ser humano de posse das suas faculdades mentais deveria dispor para nestas situações limite, decidir do destino a cumprir pelo seu próprio corpo.
É duma violência atroz assistir-se a esta degradação arrastada, crescente e irreversível dum ser que já desistiu, que já se desenganou, que claramente conhece o seu próprio quadro clínico e que perfeitamente, enquanto ainda teve capacidade de observação e análise, soube o que escolheria se pudesse : partir em paz dum mundo de que se encontra totalmente desligada já, onde inclusive a sua dignidade como ser humano já sucumbiu sob a avalanche incontida dum tsunami impiedoso !
O acesso à expressão livre da sua vontade, de poder fazer do seu corpo o que legitimamente entender, é-lhe ainda vedado na sociedade hipócrita em que vivemos, em que falsos moralismos e pseudo-princípios religiosas, condicionam o livre arbítrio de cada um, ainda que de posse das suas faculdades mentais.
Acordo de noite e pressinto por perto a asa negra e monstruosa da morte, o seu peso rondando, e olhando o relógio, formulo o desejo de que o calvário que vive, pudesse ter terminado.
Este peso na mente e este sufoco no coração não me estão a fazer nenhum bem ...

Tudo isto é excessivamente doentio, tenebroso, esgotante.  Tudo é demasiado cinzento e obscuro, e tudo isto me confere um estado de espírito insalubre que estou a custar a gerir.

Na mata a vida é pujante.  O verde e o colorido das flores explode em cada canto.  As abelhas retornaram e azafamam-se na recolha dos pólens, as aves, de criações recentes, inebriam nos gorgeios aprimorados e as borboletas de variadas cores, volteiam pelos caminhos.
Tudo continua exactamente como tem que continuar, porque não há razão ou motivo para a Natureza estremecer por mais que o ser humano o faça.
Olho as árvores, algumas imponentes, altaneiras, de troncos atestando a sua já respeitável longevidade, que desafiam os céus, subindo mais e mais as suas copas e projectando-as por forma a que o sol as abrace.  Ali estão, a pé firme, porque o seu destino assim o determina.
Olho-as e penso ... o que são dez ou quinze anos no percurso de vida duma árvore ?
Quando eu por ali já não passar, quando os meus olhos já as não olharem, quando as veredas se esvaziarem da minha presença, eu, que conheço cada recanto daquela mata ... ainda assim elas ali continuarão, talvez com mais folhagem por cada ano, projectando mais sombras nos caminhos, talvez com mais ninhos nas ramagens por cada Primavera que se anuncia, talvez continuando a cantar a canção doce da brisa que sussurra ao passar. 
Os gatos da colónia ... outros gatos por certo, continuarão com vida mansa na segurança do abrigo.  Os patos ... outros patos, perpetuarão as gerações que ali nidificam.  Os cães de quem lá vai, continuarão a tomar banho nos tanques ... porque todos gostam, e não precisam sequer de se passarem a palavra ...
Tudo como tem que ser, porque não há nenhum motivo para que o não seja ...

Enfim, quem me ler perguntará do protagonismo que me confiro ... da importância que me atribuo, da soberba com que falo e da prosápia com que me coloco no mundo ... como se eu fosse  alguma  coisa mais  do  que  um  ínfimo  grão  da  poeira  daquelas  veredas  que  tanto  amo !!!

Anamar

Nota : Este post tem estado a ser escrito, sem finalização, já há tempo razoável !

terça-feira, 11 de abril de 2023

" VIDA "


Tenho pra mim que normalmente não dá bom resultado chafurdar no que a vida foi plantando lá para trás.  Fotos, escritos, papéis, pequenos objectos ... enfim, tudo o que teve significância e não tem mais, ou pelo menos não tem aquela que teve. 
Contudo, remexer em tudo isso não é mais do que uma incursão no tempo, que quase sempre nos deixa a perder por representar na maior parte das vezes, épocas já desfocadas, descontextualizadas, de memórias inquinadas, creio, pela distância e pela erosão que esse mesmo tempo nos foi deixando na alma e no coração.
Quando tento este exercício insano e desaconselhado, quase sempre me arrependo depois,  amargamente.  É como aquela velha constatação de compararmos o nosso estado de espírito antes e depois da ida a algum lugar que amámos.  À ida tudo é promissor, é como se fôssemos reencontrar tudo o que deixámos, exactamente nos lugares e no contexto em que deixámos ... para depois acabarmos  percebendo a dor da fraude sentida pelo tamanho do equívoco em que embarcámos ... por tontice, ingenuidade ou mesmo insensatez !...
E de nada valeu a pena ... de nada valeu o estrago e o amargor deixado, afinal !

A Páscoa passou. Ontem foi o domingo que encerra as celebrações.
Hoje na mata tudo continuava igual.  Os pássaros que elaboram verdadeiros e emocionantes concertos de cantoria, ou não estivéssemos numa Primavera generosa de dias bonitos, temperaturas elevadas e flores ... miríades de flores engalanando os arbustos em profusão ... não sabem que a Páscoa passou, não sabem que ontem foi Domingo de Páscoa, ou sequer que foi domingo ...
O que interessaria a um pássaro saber qual o dia que vivencia ?  A natureza, a vida, a sequência simples dos dias e das noites, o nascer e o por do sol, o dormir e o acordar, o instinto apenas, a orientá-lo no caminho da sobrevivência, é quanto basta.  Ele chega, cumpre o destinado e parte.  O seu desígnio biológico justifica-lhe a estadia ... não mais !
E nós ?  Nós "somos" ... hoje.  Amanhã já só dirão que "fomos"...
Também nós chegamos, cumprimos o destinado e partimos.  Partimos com a indiferença do Universo.  Partimos sob a pequenez, a insignificância e a irrelevância da nossa dimensão ... menos que um grão de areia no contexto da existência ... Partimos com o silêncio indiferente de tudo o que nos rodeou e não rodeia mais  ...
E vamos ainda "viver" por uns tempos ... se as memórias forem longas.  Depois, "fomos" apenas ...
Fomos aquele rosto imobilizado e gravado na película que ficou na moldura daquela mesa ... fomos aquele texto que escrevemos e ficou perdido no fundo da gaveta, aquelas palavras que expressámos, cujo eco também se vai esbatendo ... fomos o riso que talvez alguns ainda lembrem por uns tempos, o dichote e o humor sarcástico que nos acompanhava ... 
Depois fomos o que fizemos ... se fizemos alguma coisa que ficasse ...
Não mais !...

A Teresa olha longa e pesarosamente o Chico, que se arrasta, cujas patas não suportam o peso ou os movimentos do corpo.  O Chico que come deitado e que permanece deitado todo o tempo, ainda que olhe cá de baixo, do chão, o céu azul que a vidraça acima dele lhe desvenda.  O Chico que já só salta para os lugares que eram seus, em memória ... em desejo ... em sonhos ... porque de seu, o Chico vai tendo cada vez menos !
O Chico agora mia quando está só.  Não quer afastar-se de mim.  Não era hábito.  E esconde-se numa caixa que, como uma toca dissimulada e escura, o aninha.  O Jonas cheira-o insistentemente.  Será que a morte tem cheiro ?! Não sei.  Mas a sua presença por aqui, anuncia-se e assusta ...
A Teresa olha longa e pesarosamente e diz : " O Chico está quase a ir para a estrelinha "...

Hoje também, há cinco anos atrás a minha mãe buscou outra dimensão .  Mais uma estrelinha  que enfeitou o nosso firmamento.  Também de lá a Teresa garante dialogar com ela ...
Só que, lamentavelmente, somos crianças por tão pouco tempo nas nossas vidas !...

Partiu, partiu discretamente como sempre foi a sua vida, partiu sem queixume ou estardalhaço no silêncio íntimo dos seus dias ... partiu com a noção absoluta do descaso com que o ciclo da existência nos trata ... uma simples e anónima partícula da poeira em que se transformou ... matéria física que somos ... 
Não mais !

E cada dia que passa me faz mais falta, cada dia que passa lhe sinto mais e mais a ausência, cada dia que passa a minha orfandade se torna mais e mais absoluta e gigantesca !  
Cada dia que passa o silêncio que deixou me fere ensurdecedoramente ...  

E a vida é isto.  Viver é mais ou menos isto ...
Não mais !...

Anamar

sexta-feira, 24 de março de 2023

" SONHO BOM "

 


A Primavera entretanto chegou.  A Teresa já me vinha dizendo, nos seus convictos cinco anos, que ela "estava à porta".  Os dias ensolararam, sem dúvida as temperaturas subiram e já começamos a sacudir os casacos invernosos.
Ainda assim, friorenta como sou, o saco de água quente e o édredon continuam a ser meus amigos pela noite dentro.
Agora tenho quase todo o tempo também, a presença do Jonas que se aninha aos pés e até faz boa companhia, pois não é muito chato no desassossego.  Uma nova logística teve que ser criada em consequência do grave problema de saúde do Chico que, tal como eu vinha a suspeitar, está diabético.
Assim, alimentação distinta para cada um deles, a necessidade da areia estar em permanência disponível para que resolva as sucessivas urgências pela madrugada fora, implementaram um esquema algo complexo aqui em casa.
Põe comida, tira comida, acrescenta a água no bebedouro, dá insulina de doze em doze horas, a que se segue como importante que ele tenha comido quando o açúcar começa a baixar, para acautelar uma perigosa hipoglicémia ... são apenas pormenores que não podem / devem falhar na pacatez do dia a dia nesta casa.
Afastar-me daqui por excesso de horas, também não é muito possível, uma vez que só comem quando eu desenvolvo os consequentes episódios  que referi.
A ideia é controlar a doença, já que sendo uma patologia crónica, a diabetes dificilmente é passível de reversão.
Depois coloca-se outro filme de terror que é exactamente a quase impossibilidade de me afastar aqui de casa, por dias.  Desta feita, a garantia da administração da insulina tem que ser completamente assegurada, e se a D.Leonilde que é o meu "anjo da guarda" quando viajo, já que sempre assegurou a manutenção alimentar diária e bem assim a higiene dos bichos, não pode obviamente proceder à inoculação da mesma.  Não daria conta do recado, ou melhor, é o tipo de coisa que jamais eu lhe poderia solicitar.
Assim, se não quiser dar em doida e não me deprimir mais do que já estou, terei que inventar, não sei que solução para obviar ao problema.
E terei que o fazer duma forma bem resolvida, já que conviver com problemas de consciência intranquila, é uma questão fora do aceitável.  A minha cabeça tem que estar em paz e não arranjar soluções que venham a culpabilizar-me futuramente.

A Primavera chegou, como disse.  O sol, às vezes tímido, outras mais atrevido, faz sentir o seu calor e a luminosidade dos dias é um fascínio.
Na mata tudo floresce.  São as mimosas já bem engalanadas, são as azedas que alcatifam o chão, as pervincas que mesclam o seu azul com o amarelo daquelas ... são os folhados e outros delicados arbustos com pequenas florzinhas brancas como grinaldas ... são as chagas ... e é a passarada que numa fona, saltita de ramada em ramada, os melros, as rolas, os periquitos de colar, os pombos e os patos bravos que iniciam os processos de acasalamento ...  Voam, cantam, trinam e numa afobação imparável parecem ter pressa.  
O tempo climatérico, tipicamente primaveril onde nem sequer faltam os borrifos habituais de chuvinha mansa que volta e meia nos surpreende, renova, pinta, enfeita uma paisagem que aviva as cores, intensifica o brilho e renova a promessa de renascimento que assoma em qualquer canto.
A natureza sempre é um bálsamo para o coração, uma bênção para a mente e uma esperança que os dias vindouros generosamente levem para longe o cansaço, as agruras e o desalento.  Tudo volta a parecer auspicioso, possível de acontecer ... feliz !



Anamar

segunda-feira, 20 de março de 2023

" CURTAS ... "



Tanto me lembro da minha mãe ... a propósito de tudo e de nada ! Uma frase, um pensamento, um ditado, sim, porque a minha mãe era uma mulher de adágios.  Colocava-os nas ideias e nas frases, com toda a propriedade e como uma menina travessa, meio comprometida, como quem fez uma pirraça, ria e dizia a propósito :   " Vocês um dia vão lembrar-se muito de mim ! " 
E não é que me lembro mesmo ?!... Mais ... lembro o seu ar encabulado e dou por mim também a ser uma mulher de provérbios ...
Somos alentejanas, província de características muito próprias e particulares.  Com vivências únicas, acredito, com estares bem distintos, com sentires talvez diferentes ;  até na linguagem, além do sotaque e da  entoação cantada, se consegue pressentir essa singularidade.

Fisicamente reencontro no olhar que o espelho me devolve, a expressão dos olhos dela e tal como ela, nas últimas etapas da vida, as lágrimas se me soltam sem censura ou auto-controle.  Fácil, fácil, me emociono com qualquer coisa, sobretudo se forem coisas que não se explicam, só se vêem, sentem, percebem ... chegam e tomam-nos de assalto, do nada, num piscar de olhos.
É uma borboleta amarela que volteia à minha frente pela mata, como se me abrisse o caminho e me convidasse a segui-la ... é o olhar terno e desprotegido de um animal entregue ao seu destino, é o silêncio encantado duma vereda onde o sol faz negaças p'ra entrar ... é  o  chilreio, o  pipilar,  o  trinado e o  assobio  das  aves  que  demandam  poiso  nas  copas altaneiras, ou o grasnido das gaivotas que aqui  por  cima  bailam  na  aragem  que  corre ...
É o sol que se põe de novo, é o rasto do avião que risca o céu e conta histórias de lugares distantes ... é o  som  da  brisa  que  vai  e  que  vem,  ou o  som  do  ribeiro  que só vai,  já não vem ...
Enfim ... o coração parece ter-me subido aos olhos ou ao pé da boca, como soi dizer-se.  
Um inexplicável nó, pouco previsível e justificado aperta-me a garganta, a voz embarga-se e a emoção toma-me de jeito ... e pronto, lá vão as lágrimas que rolam rosto abaixo... tal como a ela ...
Estou frágil, sinto-me com as resistências tombadas, ameaço tombar junto com elas ...
E afasto-me de todos, isolo-me o quanto posso, fujo do convívio ... não tenho a mínima margem de capacidade, paciência ou sequer vontade para abrir a alma, para franquear o espírito, para escancarar o coração.  
Não vale a pena.  Cada ser humano tem só por si, cada vez mais nos tempos que correm, a difícil empreitada de gerir os seus próprios destinos, a tarefa hercúlea de desembaraçar o seu próprio novelo, tem o que chegue para se ocupar, afligir e enlouquecer com todas as pirraças e todas as jogadas do seu próprio tabuleiro de xadrês ... para que possa, nem por instantes desviar o seu próprio foco para as maleitas do vizinho.  As pessoas vivem perdidas nos seus redutos, já ninguém ouve ninguém ou é capaz de percepcionar a invernia que vai ali ao seu lado.
Não há partilha, não há entendimentos cúmplices, as linguagens são meras conversas de surdos ... E depois, não há tempo, obviamente não há tempo ... e também já nem adianta !
Fica um vazio tão doídamente grande quando a vida, o afastamento, o tempo ... as vicissitudes que nos atropelam, levam pessoas próximas a desconhecerem-se, a perderem-se pelas esquinas, a virarem páginas, a silenciarem tudo o que era, o que foi, a zerarem histórias, emoções, momentos, risos, afectos ... sentindo a total e absoluta incapacidade de reverter as vivências.
É como se, em vida, assistíssemos e vivêssemos infinitas e irreversíveis partidas.
Parece que a nossa vida é agora uma mera sobreposição de despedidas ... nada mais !  Nada já se recupera, porque nós mesmos já partimos do nosso caminho, faz tempo !

Dou por mim com uma saudade sem fim de realidades que foram.  Os tempos intermináveis da Covid foram insensíveis coveiros nas nossas existências.  Foi um pouco assim como o "day after" de
uma catástrofe acontecida, um terramoto, uma cheia, uma guerra ... em que a realidade que nos acolhia, num virar de página se descaracterizou completamente.  Os sítios já não são os mesmos, as pessoas já não estão lá, as rotinas dos momentos vividos esvaziaram de significado... Como se o mundo tivesse, num abrir e fechar de olhos, sofrido um varrimento inelutável e sem volta !
Foi como se tivéssemos desaprendido de viver, de falar, de estar.  Agora, aquilo que queremos parece ser apenas paz, silêncio, um canto para pousar a cabeça.  Tudo o mais é cansativo, não nos gratifica ou acrescenta ...

E pronto, este é o meu estado de espírito neste momento... uma espécie de marasmo, uma rotina entediante, uma coloração de cores mortas sem os tons quentes e provocadores dos momentos felizes ...
Um desinteressante e fastidioso desfolhar de horas, dias e meses ... cinzentão, chato e cansativo !...

Anamar

terça-feira, 7 de março de 2023

" NUNCA DIGA ..."




Do baú das memórias do Facebook, hoje, dia 4 de Março "saltou-me" uma dolorosa recordação de há dez anos atrás.  Nesse dia também cinzento e triste, partiu da minha vida uma amiga que partilhou comigo a sua, talvez por uns treze ou catorze anos.  Uma amiga muito especial, com quatro patas, olhar manso, doçura infinita ... companheira, mais que muitos, em momentos particularmente difíceis com que me cruzava então.
A Rita que me veio parar a casa de forma enviesada e inesperada, foi o animal que mais me marcou para todo o sempre.  Na realidade tratava-se de um gato, e chegou com a baralhação de sexo, provinda da residência universitária que a havia acolhido, onde, entregue exclusivamente a rapazes traquinas e irresponsáveis, era tida como um mero brinquedo para gáudio das suas brincadeiras e travessuras, quase sempre meio atoleimadas.  A Rita vivia apavorada, metida num roupeiro, seu reduto preferido de segurança, até que acabou vindo viver comigo.

E comigo ficou, fazendo companhia ao Óscar, outro bichano, esse mauzinho, que nunca nos poupava duma valente arranhadela ou dentada, quando muito bem lhe comprazia.  
Bem ao contrário, a Rita era o cúmulo da doçura, era a companhia sempre presente, era a partilha de amor sempre disponível.  Tinha a ternura de um bebé em forma de gato !
Contudo sempre tímida, medrosa, assustada, com as marcas deixadas de um início de vida problemático, ela que já havia sido encontrada no motor de um carro, em pleno Inverno.
Com um destino figuradamente pouco promissor, a Rita usufruiria finalmente duma existência em paz, quando veio viver em minha casa.
Talvez por tudo isso e pelas memórias pregressas, sempre foi um gato assustadiço, hesitante, inseguro. Só que também, duma humildade, duma dedicação, duma entrega sem limites a todos aqueles com quem vivia, demonstrando assim uma gratidão ainda maior, se possível, que a gratidão e o afecto incondicional e desinteressado que os bichos sempre dedicam a quem com eles convive.

Por tudo isto a Rita foi um marco afectivo e emocional indelével para todo o sempre na minha existência !
Partiu em 2013.  Acabaram de passar dez anos exactamente, quando pelas cinco da tarde desse 4 de Março ela se tornou mais uma estrelinha no meu firmamento ...

Estrelinhas que foram sírios nos nossos caminhos enquanto por aqui nos acompanharam ... estrelinhas que se tornaram memórias doces quando o destino delas se apropriou ...
Estrelinhas ... é assim que procuramos amenizar a dor da sua ausência.  É essa a imagem ternurenta com que respondemos às crianças quando interrogados sobre o significado da morte, da ausência, da partida dos seres que nos foram tão queridos e que nunca mais sairão das nossas histórias ...

Jurara não ter mais gatos.  Jurara atravessar a dor sofrida com uma incapacidade futura de voltar a ter outra Rita na minha vida.  Quase sempre juramos !  O vazio deixado mata-nos tanto por dentro, que parece secar qualquer futura possibilidade de nos darmos outra vez.  A ausência sentida no luto experimentado, remete-nos para uma negação que parece insuperável ...
"Acabando esta geração, não voltarei a ter mais gatos " - verbalizei há dias à veterinária, quando o Chico, aguardava a "sentença" que o esperava - uma diabetes crónica com valores de açúcar muitíssimo elevados, e obviamente uma previsão anunciada de um futuro ameaçadoramente precário, pela frente.
"Não diga isso !"  foi a resposta.

Neste momento, não sei.  Não sei se virei a ser capaz outra vez de reescrever uma nova história, não sei se serei capaz de iniciar mais um novo percurso ... de voltar a atravessar tudo aquilo que, nunca esquecido, já me ficou para trás, com todos os animais que me atravessaram a vida.
O Óscar, a Rita, o Gaspar, o Nico, a Dalila, a Nicas, a Concha ... por todos eles já chorei lágrimas de sangue, por todos eles o meu coração se espremeu de dor ... com todos eles, também eu morri um bocadinho por dentro ...


Anamar

sábado, 18 de fevereiro de 2023

" A SUIÇA SOBRE TRILHOS "


Branco ...
Branco é o que nos rodeia.  Branco e um cinzento azulado concedido pela vegetação sonolenta que trepa as encostas, totalmente salpicada pela neve que cai com intensidade significativa, a partir de determinada cota.
Aliás, cá em baixo, nos vales, planícies e margens dos cursos de água, a altitudes inferiores, a coloração de todo o contexto já assoma. De resto, tudo o mais é alvura, silêncio e paz e uma quietude que transforma toda a paisagem numa atmosfera onírica e mágica, quase irreal, desenhando esboços de inesquecíveis cartões de Natal.

A Suiça, donde regressei há poucos dias, tem todo um carisma muito particular. 
Paisagisticamente é um presépio a céu aberto, é uma história contada por entre montes e vales  com picos e desfiladeiros que se sucedem, com os cumes das montanhas desafiadoras em recorte, ostentando os seus gelos perpétuos, com os seus planaltos quase sempre acolhendo estâncias turísticas de desportos de Inverno, com os seus lagos serenos e adormecidos, com os seus cursos de água que serpenteiam em busca de caminho livre na direcção ao oceano lá longe ... porque de um país interior se trata.
A sua beleza natural não se descreve.  Não há retratos por mais bem pintados que o sejam, não há textos por mais fiéis e ricos na descrição, não há fotografias ou vídeos disputando os melhores ângulos, que consigam aproximar-se só, daquilo que os nossos olhos têm a felicidade de enxergar.  Porque o que se contempla, cheira, escuta e sente sempre fica a anos-luz para lá de todas as tentativas que fizemos na aproximação.  
Ancorada numa montanha feroz que sobe frequentemente a milhares de metros de altitude, os Alpes, a Suiça como o seu queijo ancestral que todos conhecemos, é perfurada pelos inúmeros túneis que atravessam a rocha.  Essa, a forma possível encontrada para obviar a mobilidade através do país.  Os túneis e os viadutos surpreendem,  levando sempre mais e mais além, qualquer viagem desejada por muito difícil que parecesse ser.
E a cada momento a surpresa de mais um túnel, a perplexidade de mais um viaduto altaneiro abrem passagem a mais um comboio, meio de comunicação privilegiado no país.
São transportes de alta qualidade, muito bem organizados, com o rigor e a eficácia tradicional desta terra, onde se tem a noção clara de se tratar de um país que efectivamente "funciona".  
Viajei em alguns comboios, nomeadamente destinados ao turismo, como o comboio de cremalheira que nos levou montanha acima até Jungfraujoch, 3571 metros, naquilo a que chamam o "topo da Europa", o Golden Pass, ou o mais icónico e inesquecível de todos eles, o comboio turístico de alta velocidade mais lento do mundo, o Glacier Express que nos transportou de Zermatt a St. Moritz durante mais de oito horas, num percurso de 300 quilómetros atravessando noventa e um túneis e duzentos e noventa e um viadutos num sobe e desce fascinante, atravessando de oeste para este o território suiço.
Esta "lagartinha vermelha" que serpenteava entre altitudes variáveis  ( 1804m a 670, a 2033, de novo a 585 para finalizar a uma altitude de 1775 m ), passou por pequenas aldeias e lugarejos encarrapitados nas encostas cobertas de neve, lugares míticos, preguiçosos, onde a presença humana parecia inexistente.  Apenas o fumo que subia das chaminés, a lenha empilhada em lugares protegidos e as torres das igrejinhas meticulosamente cuidadas, atestavam não serem lugares abandonados ...
Braços fora das janelas segurando as câmaras, na ânsia de se reterem os melhores e mais irrepetíveis momentos vividos, pesassem embora as temperaturas fortemente negativas que se sentiam ... tentavam guardar para todo o sempre o fascínio, a surpresa e o maravilhamento que nos tomavam ...
Cá dentro, total conforto numa carruagem climatizada e envidraçada, onde usufruímos de uma refeição como se numa mesa de restaurante tradicional estivéssemos. 
Nas subidas e descidas percebia-se a activação da cremalheira para que os metros de acentuada inclinação fossem vencidos. 
As estâncias de sky desvendavam os praticantes em actividade e os meios mecânicos e os teleféricos de apoio, em movimento.
A Garganta do Reno ( o maior rio da Suiça aqui nascido e com um curso de 375 Km neste país ),  não é mais do que um vale glaciar, um canyon com milhões de anos que se formou pela erosão das águas dos degelos glaciares, que rasgaram e esventraram as montanhas, com paredes rochosas de ambos os lados que podem atingir os quatrocentos metros de altura.  Trata-se de um acidente orográfico imponente, magnífico, esmagador, desfrutado em plenitude a partir do Glacier Express, que acompanha o leito do rio ora numa margem, ora na outra.
O Reno atravessa a Suiça, faz fronteira e atravessa a Alemanha, Países Baixos e desagua no Mar do Norte, a sul de Roterdão, após percorrer 1320 Km.

Durante esta inesquecível viagem poderia pensar-se que a paisagem que se estendia aos nossos olhos fosse monótona, fastidiosa, repetitiva ... Engano !  Foi sim de um êxtase absoluto, foi um prémio para os sentidos, uma gratificação para a alma! Foi um presente generoso de uma natureza que se impõe e se obriga a ser respeitada ! 

E era noite quando a estação de St.Moritz se anunciou.  Lá fora -10ºC nos aguardavam no dia que já havia descido.










Anamar