

No tempo da minha avó e antes da minha avó, ser mulher devia ser uma enormíssima "chatice"...
Nascidas para dar continuidade à espécie, ou seja, para procriar assegurando que a família instituída passasse adiante, as mulheres não tinham qualquer "espaço" social, teriam algum protagonismo familiar e nenhum papel individual, isto é, enquanto pessoas.
Tendo origem em famílias economicamente privilegiadas, as meninas dos espartilhos, culottes sob saias avantajadas, cabelos em papelotes, seios generosos (através dos decotes) e rostos de porcelana nacarada, "perdiam-se" pelos salões, ociosamente, rodeadas de aias que as cuidavam a tempo inteiro.
Abrilhantavam as festas, tocavam piano ou harpa, bordavam, recitavam poemas, falavam francês, não tinham vontade própria...e bocejavam muito, por certo...Eram "coquettes", falsamente púdicas, com sorrisos tímidos. Tinham "cheliques" e enrubesciam com um roçagar de hálito quente no pescoço, ou voz sussurrante ao ouvido...

Era frequente viverem romances tórridos clandestinos (normalmente tendo como alvo "alguém desaconselhado" pela família), carregados de "picante e adrenalina", com trocas de bilhetinhos à sucapa, com a conivência das camareiras de confiança. Tinham encontros fugidios pelo recôndito dos jardins, ou com a palha dos estábulos a servir de alcova. Sempre chegavam correndo em bicos de pés, ofegantes e afogueadas em ânsias de entrega e lascívia...
Morria-se de paixão olhando a lua cheia, ao trocarem-se juras eternas...e suspirava-se muito...languidamente!
Ou então, se se achavam desinteressantes a ponto de não cometerem loucuras, entregavam-se aos desgostos de amor. Os seus semblantes tornavam-se ausentes, carregados de uma tristeza pungente e queriam morrer tísicas, rostos de papel secos, recusando alimentos na busca de morte "libertadora"...
Mas, normalmente acabavam num casamento não escolhido, com maridos que pouco conheciam, envelhecendo azedas e desencantadas!
Era mais ou menos assim...
Sendo oriundas de famílias débeis economicamente, então nasciam para o trabalho de sol a sol, para criarem "pencas" de filhos (o planeamento familiar não existia, como sabemos), para "servir" o marido que seguramente as escolhera, para passarem privações e sofrerem a violência familiar, arrastada por uma vida triste, desinteressante e cheia de dificuldades.
Não se cuidavam nem eram cuidadas...Não apresentavam certamente rostos diáfanos, mas, curtidos pela dureza do sol e da vida, envelheciam prematuramente. Não tinham corpinhos esculpidos pelas cintas e espartilhos. Tinham por certo pernas com pêlos e "buços" generosos...
Lavavam-se em alguidares, porque as banheiras de "pezinhos" da época, não integravam o recheio das casas. Também não tinham banhos com sais nem espuma...mas deviam estar disponíveis sempre que o "senhor" se quisesse "servir" delas.
Era também mais ou menos assim...Contudo, mulheres!...


E a História foi-se fazendo...
A minha mãe, apesar de não ter sido senhora de salões e mordomias (antes uma mulher de trabalho), usou chapéu, estolas de "raposinhas", sapatos de tacão com presilha e botãozinho, a condizer com a mala respectiva, luvas, os seus "tailleurs"de fino talhe, as primeiras "permanentes" ou "mises en plis", os "plissados", os "chiffons"...as pregadeiras ou raminhos de flores nas golas dos casacos e ainda, já um perfuminho de qualidade.
Familiarmente, ao casar, ocupou o lugar central na família, como condutora e responsável máxima pela minha orientação e educação.
A mulher era então a "matrix"; estava em casa (poucas eram aquelas que começavam a esboçar "atrevimentos" profissionais), era detentora de "prendas domésticas", vivia em função da família, em prol da qual se anulava e fazia todos os sacrifícios.
Em sociedade, a proeminência feminina era escassa e resumia-se a alguns poucos casos isolados, de mulheres "estudadas", com cultura e consciência de direitos. O "feminismo", como movimento social de cariz político, intelectual e sexual iniciava os primeiros passos.

E a História continuou a fazer-se...
E para que não me torne excessivamente exaustiva, refiro apenas a sensação de "conforto" e felicidade que experimento quando, como mulher de hoje, transversal aos séculos XX e XXI, me sei objectivamente, como uma mescla de todas as mulheres que o foram, ou o foram sendo ao longo dos tempos.
Sou a que se cuida por gosto... a que exige ser cuidada porque acha que o merece; sou a "coquette" quando me dá gozo...a que escolhe o parceiro, porque o não concebe de outra forma; sou a frágil que morre de amor olhando a lua, mas também a que se impõe no local de trabalho; sou a que se arroga direitos de respeito, consideração e reconhecimento de méritos e profissionalismo...mas também a que chora de emoção ao escutar uma melodia, ou ao ver o sol a sumir no horizonte; sou a que escolheu ter os filhos que teve, quando os quis ter...a que escolhe vestir clássico ou "descascar-se" na praia; sou a que bebe um copo com um amigo, entre conversas e gargalhadas, sem horas, pela noite...e sou a que se "bate" contra as injustiças e descriminações de toda a ordem; sei bordar e falar francês, mas só o faço se me apetece...uso espartilhos e ligueiros, mas não porque tenha que ser assim...apenas porque gosto de lingerie...
Em suma...sou a que traça a vida que se vai fazendo HOJE...sou a que diz não ou sim, a que escolhe, no pleno uso do livre arbítrio da sua existência...

E posso dizer que ao contrário do "tempo da minha avó" e antes da minha avó...ser mulher é um espectáculo!!...

Anamar