Mãe, eu não quero crescer ... se crescer também é isto !...
Eu não quero deixar pelo caminho, quem me fez feliz ...
Eu não posso abandonar quem em mim confiou, apenas porque não pude fazer nada melhor !
Hoje eu estou morta por dentro, mãe ...
Hoje eu estou vazia, e vazia está esta casa, como vazia sinto a minha vida.
Amputada ... amputada de um pedaço de mim, de uma razão de eu viver, de eu sentir, de eu me preocupar, de eu me angustiar ... de eu me rir e me sentir acarinhada, protegida ...
Se se cresce com a dor, então eu não quero crescer !...
O Nico foi embora.
O Nico viveu as minhas dores e alegrias, há mais de uma década, na minha vida.
Lambeu-me muitas lágrimas em dias mais cinzentos, chorou baixinho comigo, deitado sobre os meus pés, vezes sem conta ... esperou-me longas horas tantas vezes, e ficou feliz, só porque me ouvia pisar o patamar de casa ... quando ainda ouvia!
Hoje, o Nico já não me sentia meter a chave na ranhura, e também me via já difusamente, porque os seus olhos se opacizaram há muito!
Mas sabia que eu chegava, e estava ali ... porque ainda tinha um coração ... doente e fraco, mas tinha !
E então havia uma razão para eu chegar a casa.
Com chuva, com vento ou com sol, o Nico, ainda há pouco saltava, quando me via pegar na trela.
Lembro o seu pequeno rabinho a abanar, o "coto" de alguns centímetros apenas, que a maldade humana lhe deixou, há muitos anos atrás, quando vagueava pelas ruas da nossa cidade, quando vivia da caridade dos que amam animais, e deles se compadecem ...
Lembro o seu corpo, uma chaga total, da sarna que o minava ...
Lembro as suas orelhas, com as pontas decepadas, novamente pela maldade do Homem ...
Lembro os dias em que então me esperava à porta de casa, porque me sabia doída, só de o ver, e esperava humildemente as migalhas que lhe levava ...
Lembro quando lhe dei guarida, ainda só na arrecadação, porque o meu pai não poderia sonhar, que existia um cão à minha guarda ...
Lembro o Nico de pelagem docemente castanha, que embranqueceu quase completamente, como nós também embranquecemos, porque a Vida não nos poupa ...
E lembro tantas doenças, tantos achaques, a sua saúde precária a deteriorar-se mais e mais ... e eu a acreditar que o Nico seria eterno ...
E eu a recusar simplesmente a ideia, do que seria aquela minha casa sem ele ! Ele não me faria isso !...
E hoje, mãe, eu que o tirei da rua, eu que o tirei do infortúnio, eu que de tudo fiz, podendo ou não, para o salvar do que eu sabia exactamente não haver salvação ... hoje mãe, levei-o ao cólo ( porque ele não conseguiu sequer ir pelo seu pé ), para a morte ...
Senti que o traía, mãe ... Sempre se sente isso, não é ?
Pedi-lhe perdão, abracei-o, envolvi-o, como uma mãe faz a um filho indefeso e confiante, cegamente confiante, como o são todos os animais em relação aos seus donos, as pessoas que mais amaram na vida, e que eles sim, nunca traíram ...
Beijei-o enquanto o "veneno letal" lhe subia nas veias ; dei-lhe o meu último calor, enquanto aos ouvidos endurecidos, lhe contava baixinho, como o amara, e como estava a morrer com ele, também aos poucos, naquela marquesa fria de hospital ...
E tive de o deixar ir, mãe ... Como foi isso possível ??!!
Dignidade e amor ... Toda a gente me fala disso ... mas o Nico era meu, era do pouco desta vida, que era realmente meu ... e o buraco que ficou, é no meu coração que reside !
Tive de abrir as mãos, e deixar o meu companheiro seguir o seu percurso ...
Mesmo sabendo que talvez fosse o melhor, para aquele ser em sofrimento atroz, foi um pedaço de mim que partiu, sem retorno !...
Disseste-me que ele me entenderia, que ele estava a sentir exactamente o que eu, impotentemente senti, naqueles minutos que nunca mais tinham fim ...
Lá, onde ele estiver agora ... ( porque aqui, eu sei exactamente onde ele está, e nunca deixará de estar ), pensas que terá podido perdoar-me ??!!
Mãe, eu não quero crescer ... se crescer é também isto !!!...
Anamar