sexta-feira, 9 de novembro de 2012

" LÁ, ONDE ELE ESTIVER ... "



Mãe,  eu  não  quero  crescer ... se  crescer  também  é  isto !...

Eu  não quero  deixar  pelo  caminho,  quem  me  fez  feliz ...
Eu  não  posso abandonar quem  em  mim  confiou, apenas porque  não  pude  fazer  nada  melhor !

Hoje  eu  estou  morta  por  dentro,  mãe ...
Hoje  eu  estou  vazia, e  vazia  está  esta  casa, como vazia  sinto  a  minha vida.
Amputada ... amputada  de  um  pedaço de  mim, de uma  razão de eu viver, de eu sentir, de  eu  me preocupar, de eu  me angustiar ... de  eu  me  rir  e  me  sentir  acarinhada,  protegida ...

Se se  cresce  com  a  dor, então  eu  não  quero  crescer !...

O  Nico  foi  embora.
O  Nico  viveu  as  minhas dores e alegrias, há  mais de uma década,  na  minha vida.
Lambeu-me  muitas lágrimas em dias mais cinzentos, chorou baixinho comigo, deitado sobre os meus pés, vezes sem  conta ... esperou-me  longas  horas  tantas  vezes, e  ficou  feliz,  só  porque  me  ouvia  pisar o patamar de casa ...  quando ainda ouvia!
Hoje, o Nico já  não me sentia  meter a chave  na  ranhura, e também  me via  já difusamente, porque os seus olhos  se  opacizaram  há  muito!
Mas  sabia  que  eu  chegava,  e  estava  ali ... porque ainda  tinha  um  coração ... doente e fraco,  mas tinha !

E então havia uma razão para eu chegar a casa.
Com chuva, com vento ou com sol, o Nico, ainda  há pouco saltava, quando  me  via  pegar  na  trela.
Lembro  o  seu  pequeno  rabinho a abanar, o "coto" de alguns  centímetros  apenas, que  a  maldade humana  lhe deixou, há  muitos anos atrás, quando vagueava  pelas  ruas da nossa cidade, quando vivia da caridade dos que amam animais, e deles se compadecem ...

Lembro o seu corpo,  uma  chaga  total, da sarna que o minava ...
Lembro  as  suas orelhas, com  as  pontas decepadas, novamente  pela  maldade do Homem ...

Lembro os dias em que então me esperava à porta de casa, porque me sabia doída, só de o ver, e esperava humildemente as migalhas que lhe levava ...
Lembro quando lhe dei guarida, ainda só na arrecadação, porque o meu pai não poderia sonhar, que existia um cão à minha guarda ...

Lembro o Nico de pelagem docemente castanha, que embranqueceu quase completamente, como nós também embranquecemos, porque a Vida não nos poupa ...
E lembro tantas doenças, tantos achaques, a sua saúde precária a deteriorar-se mais e mais ... e  eu  a  acreditar  que  o  Nico  seria  eterno ...
E eu a recusar simplesmente a ideia, do que seria aquela minha casa sem ele !  Ele não me faria isso !...

E hoje, mãe, eu que o tirei da rua, eu que o tirei do infortúnio, eu que de tudo fiz, podendo ou não, para o salvar  do  que  eu  sabia  exactamente   não  haver  salvação ... hoje   mãe,  levei-o  ao  cólo  ( porque ele não  conseguiu  sequer  ir  pelo  seu  pé ),  para  a  morte ...
Senti que o traía, mãe ...   Sempre se sente isso, não é ?
Pedi-lhe perdão, abracei-o, envolvi-o, como uma mãe faz a um filho indefeso e confiante, cegamente confiante, como o são todos os animais em relação aos seus donos, as pessoas que mais amaram na vida, e que eles sim, nunca traíram ...
Beijei-o enquanto o "veneno letal" lhe subia nas veias ;  dei-lhe o meu último calor, enquanto aos ouvidos endurecidos, lhe contava baixinho, como o amara, e como estava a morrer com ele, também aos poucos, naquela marquesa fria de hospital ...

E tive de o deixar ir, mãe ...  Como foi isso possível ??!!

Dignidade e amor ...  Toda a gente me fala disso ... mas o Nico era meu, era do pouco desta vida, que era realmente meu ... e o buraco que ficou, é no meu coração que reside !

Tive de abrir as mãos, e deixar o meu companheiro seguir o seu percurso  ...
Mesmo sabendo que talvez fosse o melhor, para aquele ser em sofrimento atroz, foi um pedaço de mim que partiu, sem retorno !...

Disseste-me que ele me entenderia, que ele estava a sentir exactamente o que eu, impotentemente senti, naqueles minutos que nunca mais tinham fim ...
Lá, onde ele estiver agora ... ( porque aqui, eu sei exactamente onde ele está, e nunca deixará de estar ), pensas que terá podido perdoar-me ??!!

Mãe, eu não quero crescer ... se crescer é também isto !!!...
  

Anamar

4 comentários:

Anónimo disse...

Amar é praticar a Eutanasia, para evitar sofrimento.

anamar disse...

Obrigada por ter comentado.

Obrigada pelas palavras de alento. Eu também penso isso, inclusive para o ser humano... mas é sempre terrífico, chegada a hora da decisão final!

Um abraço

Anamar

F Nando disse...

Mais uma prosa da tua vida que partilhas com um toque de saudade e de amor incondicional
Bjs

anamar disse...

É Fernando... e com o coração bem pequenininho aqui dentro do peito...

Quem passa por isto, sabe do que falo!

Obrigada pelo teu carinho

Anamar