quinta-feira, 22 de março de 2012

" CADA LOCAL, UMA MARCA "


Queria ser viajante do Mundo.  Sim, porque viajante dos sonhos, já sou há muito !

O meu pai foi viajante, viajante do burro à camioneta da carreira, da carruagem ao comboio que deitava fumo pela chaminé, e fazia "hu-hu" ... "pouca-terra" ... "pouca terra" ...
O meu pai foi viajante na época em que se faziam assaltos nas estradas, pelas madrugadas.  O cocheiro tinha que parar por emboscada, nessas estradas do Alentejo, que era ainda mais, de planícies sem fim.
E os pertences, sonegados.  Nada a fazer !

Hoje temos o Mundo todo aos nossos pés, com uma segurança quase total, com uma disponibilidade quase total, a oferecer-se em espanto, aos nossos olhos.
É um crime os nossos bolsos não o comportarem.  É um crime não se poder aterrar, para levantar a seguir, quase logo a seguir, de mala feita em perenidade ...
Porque o Mundo é imenso e os cantos e recantos, as cores e os cheiros, sempre estão lá à nossa espera ... e o tempo é curto.

O sol ou a chuva, os nevoeiros de golas altas ou a nudez dos corpos escaldantes, continuam nos mesmos lugares, à espera do nosso "flash" visual ;  porque as melhores fotografias são as que ficam nos olhos e na alma, e não as que se guardam nas gavetas, nos vídeos, nos DVDs, nas mesas das nossas salas, a quilómetros e quilómetros de distância.
Aquelas, espantosamente nunca perdem as cores, nunca esbatem os tons ;  os sorrisos nunca ficam amarelos, as neves nunca degelam nos picos, as flores nunca perdem o cheiro, nem sequer o mar silencia nas areias ;
as vacas nunca calam os chocalhos, nos picos dos Picos da Europa, nas pradarias junto aos lagos ... o gelado comido à ganância nas ruas de Estocolmo, também não derrete antes do tempo ...
O coração deixa fugir, vai deixando desgraçadamente fugir algumas / muitas coisas de então, mas se fizermos muita, muita força, conseguimos voltar a perscrutar, com nitidez bem aceitável e resolução razoável, muito do tanto que os dias tentam levar-nos, para o mundo das sombras.

E a viagem do viajante faz-se de novo com a sua cabeça, com a continuação do que sonhou e foi só interrompido, com a memória dos registos que nunca serão apagados, com a liberdade que lhe é facultada pelas avenidas, pelas praças, pelo silêncio das catedrais, pelo repicar dos sinos esse mundo afora, pelos rostos de gente que se cruzou e não mais o fará, na sua vida ...  Enfim, pela sua história escrita e largada avulsa, pedacinho a pedacinho, aqui e ali.

Mas para se ser viajante é preciso ganhar por inteiro a palavra liberdade, e perder por inteiro a palavra saudade.
Ganhar a liberdade, que a aventura, a ânsia da descoberta, a vontade do saber nos transmitem ...
Perder a saudade que acontece bater-nos, só pelo facto de que lá é lá, e cá é cá ... e sempre o nosso "chão", num chamamento silencioso, nos  acelera às vezes, as batidas do coração !

Já fiz algumas viagens, ou melhor ... já fui a alguns lugares,  desses longes que nos acenam.
Todos me ficaram !...
Todos têm uma marca, um rótulo, uma tatuagem.  Se pensar em todos eles, há seguramente uma palavra, uma frase, uma ideia, uma imagem que os traduz ...
Assim sem grandes esforços, sem exageros, poderei dizer que a todos, está associada alguma coisa que se salvou, que ficou, que impregnou e que passou tão para debaixo da pele, tão para dentro de mim, que tenho a certeza, sempre mas sempre ( a menos que a Vida me apanhe em alguma curva mais desonesta do caminho ), completará a minha memória, o recheio da minha sacola de viandante ...

Luanda é a argila vermelha, a "boca da fornalha" ... as acácias em flor.  Mas também traineiras, com pencas de gaivotas rodopiantes, sobre o peixe fresco, na baía.

Caldelas, mais atrás, em menina,  pais em lazer de termas, "recupera-me" do "baú", os brinquedos de madeira, com que se faziam as tardes no Hotel.
Recupera-me as vacas barrosãs em manada, pela estrada, em busca da fonte para se dessedentarem.  Recupera-me as latadas de sombra abençoada, para passeios intermináveis, o cântico gorgolejante dos regatos, e os "barquinhos", feitos não de papel ( como são os barquinhos dos meninos nos riachos ), mas tão simplesmente das folhas das hortênsias que ladeavam os caminhos, e que me emocionavam as "regatas" ...

Caraíbas sempre são sol imenso, mar turqueza, areia branca e fina, e uma vida espreguiçada a render, a render ...
São cheiros adocicados e mornos, na exuberãncia das cores de tudo o que existe.
Bob Marley  e o "reggae" ... corpos bamboleantes e suados em ritmo ininterrupto, os pores-de-sol de fogo, e o cheiro da "erva" pelo espaço, noite adiante.
E uma vida que parece  correr mansa, porque corre despreocupada. Hoje é o hoje ... amanhã se verá !...  A despreocupação de quem pouco tem, e por isso, pouco ... se perder.
"Devagar, devagarinho ... parado ..." o registo de quem não se afoba, senão para sobreviver.

A Europa civilizada faz-me aportar a Estocolmo, leva-me aos cumes dos "igloos", nas terras dos samis, na gelada Lapónia, junto de glaciares que não se mexem, e leva-me aos gelados divinais, a substituirem almoços de arenque ou salmão fumado, que não "desciam" de nenhuma forma ...
Também me transporta à imponência e grandiosidade da ancestral Praga, e na Ponte Carlos, o pedido de sorte a Santo Nepomuceno, padroeiro da cidade ( tocando-lhe a estátua ) ... ao relógio astronómico frente à casa dos cristais da Bavária, e à feira de "bric-a-brac" na pracinha.

A Europa civilizada leva-me ao mundo de outro mundo dos fiordes, entre falésias abruptas ... leva-me aos abetos, aos pinheiros das florestas de coníferas, montanha acima.
Mas também às pradarias salpicadas de boninas, de mirtilos, de framboesas, de musgos e líquenes ... de toda uma multicor flora selvagem, e à presença sentida por perto, dos ursos polares, dos alces, dos veados, do lobo e da raposa do Ártico, na Noruega inesquecível !...

A Europa civilizada encaminha-me de novo à irrepreensível e sonhadora Viena, numa Áustria de Danúbio a correr lânguido, de concertos ao ar livre, com Strauss a dançar dentro de nós ...
Aos "edelweisses" de Salzburg, desenhada contra os picos do Tirol, da música de todos os corações, com sonatas de Mozart a enfunarem-nos a alma ...

E Peste, vista do alto de Buda, na Budapeste que não me sai da memória !
A Budapeste das águas em que se espelha, das dez pontes que enleiam, por sobre o Danúbio, as duas margens, fazendo uma só cidade, um só povo, uma só maravilha !...

Copenhaga tem o rosto do almoço saboreado rés-vés ao canal, e o cosmopolitismo de uma cidade com uma profusão e uma miscigenação de gentes, de cores, de línguas ... uma promiscuidade de civilizações !...

O Brasil sabe a Rio, sabe a Baía de Todos os Santos, com Jorge Amado por ali ;  sabe ao bondinho do Cristo Redentor, amarinhando quase até ao céu ;  sabe à Rocinha, paredes meias com o luxo e com a assimetria da injustiça social.
Tal como Natal sabe a dunas de areias incertas, a águas esmeralda, a "buggies" correndo soltos, de cabelo ao vento ...

E Tailândia sabe a misticismo, a recolhimento de templos, com paz que não se explica mas se sente.
O despojamento, o voto de pobreza, a meditação dos monges nos locais sagrados, inóspitos, empoleirados, de que só se divisam as cúpulas douradas no meio da vegetação, fazem-nos reequacionar a Vida, os valores e os princípios ocidentais.
Nada a ver !...
Tailândia, "terra de homens livres", sempre me traz à memória o silêncio daquela madrugada sobre o rio Kok, a acender-se no fogo dos laranjas no nascer do sol, nas águas repentinamente iluminadas, com os trinados dos primeiros pássaros acabados de despertar, e a brisa fresca duma manhã que me colheu sonhadora e meio adormecida, na varanda do meu quarto, bem no alto do hotel ...

E Óbidos ... leva-me uma e mil vezes, ao chouriço, ao queijo e ao pão caseiro, frente a um tinto de excelência, com remate a ginginha, uma e outra vez ...  Como o Gerês me traz a Caniçada, a bordar as terras do Agrinho ... como a Estrela me traz a "Casa do Burro" e aquela lareira cutucada pela noite fora ... e Monsanto me traz uma noite de gelo, em cama aquecida por corpos ... e Marvão, claro, Marvão sempre será o castelo, as águias, o gato preto e a noite de breu ....  Sempre será a varanda sobre o telhado, o corpo semi-despido, numa madrugada ardente, de um Alentejo igualmente abrasador ...

E Geia, entre serras, sempre será lareira até horas perdidas, sempre será Piódão, e uma paz de descoberta e ausência de horas e pressas ... sempre será os jantares no João Brandão ...

Bali ... apenas a Ilha dos Deuses, a Ilha das Flores ... a Ilha dos Amores ...
Não se passa por Bali sem lá viver uma grande paixão ... diz a lenda ...  Será??!!

Bom, recuso continuar ...

Os mecanismos humanos são estranhos, herméticos, inexplicáveis !!!...

Por que será que cada local é um "rosto" e não outro, cada vivência uma determinada "marca" e não outra, cada sítio um cheiro, uma cor, o timbre de uma voz??!!...

São essas marcas indeléveis, que não me desgrudam dos olhos, do coração e da alma, que me fazem eterna viajante do Mundo, mesmo que não saia do meu canto de sempre, mesmo que só tenha os telhados e o casario sem expressão, frente à minha janela ... e apenas a minha gaivota voe tão longe e tão livre, como os sonhos e as memórias que me povoam !!!...

Anamar

Sem comentários: