quarta-feira, 4 de abril de 2012

" MEMÓRIAS DOS JARDINS SECRETOS "


As águas de Março fecharam o Inverno por cá, podemos dizer.

Como convém a qualquer tempo quaresmal, e como é de tradição, os dias nublaram, acinzentaram, ficaram aquele pardo enfarruscado, que pelo menos a mim, me deixa desasada.
Mas choveu alguma coisa ... bem menos que o necessário, neste ano estival, por demais .

Sexta-feira "é de lei", que em solidariedade religiosa, o tempo atmosférico sofra também a Paixão de Cristo.
Não sou católica, logo não cultivo os preceitos, hoje de "Ramos" *, na próxima semana, todos os devidos à Páscoa.
Já falei aqui das minhas memórias infantis ( porque se prendem efectivamente com a infância, as únicas que detenho com alguma relevância ), desta época festiva.
Época que me é perfeitamente incaracterística, nada comparável ao Natal, por exemplo.
Ainda assim, sempre quadras que espontâneamente refuto.

Vou tentar recuperar essas memórias remotas, para vo-las contar .


A Páscoa, pelos meus seis, sete, oito anos, era passada em casa dos meus avós, numa pequena vila do Alto Alentejo.
Lembro dias de brincadeiras, em interrupção escolar, lembro cerimónias religiosas, com alguma imponência, carregadas de significado, aquele significado que eu conhecia da Catequese.
Tudo muito solene, muito pesado, muito sofrido ...

Uma Paixão que objectivamente se iniciava na tarde de 5ª Feira Santa, com a visita pascal do pároco aos presos, na cadeia, para distribuição da Eucaristia, seguida, já na igreja, da cerimónia do "Lava-Pés".
O sacerdote lavava  o pé direito de doze homens, simbolizando o feito por Jesus, na Última Ceia.
Este gesto apelava ao espírito de "serviço", de caridade e de humildade face ao Seu semelhante.
Lá, no meu Alentejo, na minha Páscoa, os doze homens eram doze velhinhos do Asilo, o que tornava ainda mais comovedora esta cerimónia.

À noite, saía uma procissão ... procissão meio religiosa, meio pagã, constituída apenas por homens, os membros da Irmandade da Misericórdia.
Era realizada pelas ruas da vila, saindo da Igreja do Calvário  para a Igreja Matriz, onde decorreriam ao longo dos restantes dias da semana, todas as solenidades da Paixão e Ressurreição, com as Aleluias, no sábado pelo meio dia.
A curiosa procissão de 5ª Feira, era feita à luz de archotes transportados pelos homens vestidos com as opas da irmandade ( que incluíam capuzes pelas cabeças ), era feita em passo estugado, no silêncio profundo da escuridão das ruas, sendo batida continuamente uma "matraca" em madeira.
Pelo barulho que produzia, penso que só poderia ter o papel de espantar almas demoníacas, que vagueassem por ali.

"À boca pequena", como "soi dizer-se", esta procissão era chamada a "procissão dos bêbedos", porque se dizia que por debaixo das opas, à surrelfa, eram transportados garrafões da boa pinga, que ia molhando as goelas durante a caminhada, normalmente em tempo ainda frio de início de Primavera, mas em pleno Alentejo .

Outra particularidade, prendia-se com o facto da mesma ir parando nos diferentes "Passos" da Via Sacra, onde estavam preparadas umas pequenas camas, quase uns berços, com linhos e rendas antigas, totalmente enfeitadas com flores, pelas mãos das fiéis dessa rua.
O padre deitava por instantes na caminha, a imagem do Menino Jesus ou um Crucifixo que transportava, fazia umas rezas em latim, e a procissão continuava de "Passo" em "Passo", até ao destino.
Não sei o significado destes rituais.  Era muito criança, nunca mos explicaram, creio que a minha mãe também os não conhece.  Viveu-os meramente como rituais de toda uma vida, e não mais.
Lembro-me que se gerava quase um espírito de competição sobre o adorno das caminhas ... rsrsrs !
O ser humano "no seu melhor", sucumbindo ao pecado da Inveja !!! rsrsrs

6ª Feira Santa tinha como corolário das cerimónias, a procissão do "Enterro do Senhor", também à noite, com as imagens de S. João Baptista e da Virgem, totalmente cobertas com os mantos de luto.
A tradicional imagem de Cristo, ajoujado sob o peso da cruz, e com o rosto sangrante pela coroa de espinhos na fronte, percorria as ruas da vila.
Em determinados pontos do percurso, a procissão parava, os andores eram descidos dos ombros, e surgia a figura de uma mulher bíblica, Verónica, que soltando um cântico em latim, desenrolava e exibia lentamente, uma toalha, sudário ou Santo Rosto, em que o rosto de Cristo, em sofrimento lancinante, surgia estampado.
Diz a Bíblia, que Verónica era uma mulher do povo, uma lavadeira, infiltrada no meio dos soldados.
No percurso do Calvário, à passagem de Cristo, perante o seu sofrimento, rompeu as guardas, e enxugou-Lhe o rosto suado e ensanguentado.
A história de Verónica integra, aliás, a 6ª Estação da Via Sacra, de acordo com a Igreja Católica.


A voz daquela mulher era qualquer coisa do "outro mundo" ...
Ecoava num silêncio absoluto de verdadeiro e compungido velório.
O seu cântico, também chamado de "vos omnes", é o verso das lamentações de Jeremias Profeta 1:12 , e é uma profecia da Paixão de Cristo :  "O vos omnes" .... diz... " Não vos comove isto a todos vós que passais pelo caminho?  Atendei e vede, se há dor como a minha dor, que veio sobre mim, com que o Senhor me afligiu, no dia do furor da Sua ira ?"


No sábado pelo meio dia, os sinos de todas as igrejas da vila, repicavam.
Eram as "Aleluias" !!!

A minha recordação de então, é de mãos cheias de amêndoas atiradas à criançada, que na rua se degladiava para as apanhar ...
... nos tempos em que o "chão", pelos vistos, ainda era "sagrado", e a saúde  não corria riscos de maior ...

A minha recordação de então, prende-se a raminhos de alecrim nas lapelas dos casacos, a ovinhos da Páscoa em forma de pintainhos, que a tia velha, solteirona, sempre paciente para a pequenada - a tia Catarina - confeccionara, nos dias que haviam antecedido a Páscoa ( quando os tabuleiros e mais tabuleiros de bolos, para consumo interno e para oferecer a amigos, deixavam à beira de ruptura, a capacidade de cozedura do forno comunitário da vila ).


O domingo de Páscoa é, de toda a Semana Santa, o dia de maior solenidade para a Igreja Católica.
E porque Páscoa significa "passagem", e Cristo ressuscitou, vive-se a alegria do Seu triunfo sobre a morte.
Por definição é um dia de festividade.
Guardo bem nítido na minha memória, tratar-se de um domingo que se iniciava com um banho tomado num alguidar de "folha" ( em casa dos meus avós, à época, não existia casa de banho com banheira ), com a minha mãe a despejar água quente sobre mim.
Era um dia em que sempre estreava uma roupa nova, e em que assistia à missa ( que era sempre longa e cheia de cânticos ).
Na Igreja Matriz, adequadamente engalanada, os santos já não se encontravam cobertos como até aí, com os mantos roxos ( símbolo da tristeza, dor e penitência vividas ), mas tinham os andores decorados com flores da época, velas, muitas velas, e a talha dourada dos altares rejubilava em luz, e no colorido das jarras floridas, profusamente espalhadas.
Era dia de comunhão "obrigatória", e eu acreditava então, também renascer para qualquer coisa que não sabia, mas sentia ...

Esperava-me em casa o almoço de família, com família completa, à roda do ensopado de borrego, ou do borrego assado no forno, com batatas e salada ( porque já se podia comer carne de novo, terminada a abstinência imposta pela quaresma ), o arroz doce da praxe enfeitado caprichadamente com canela, pela avó , os bolos de folha, os folares, os bolos fintos, as queijadas e as merendeiras ...


De tarde saía às ruas, a última procissão, acompanhada já alegremente pela banda filarmónica e pelo estalar dos foguetes ;  filas de crentes com velas nas mãos, ladeando os andores, as mulheres na maioria com a cabeça coberta com véus e mantilhas, rezando terços ... e os anjinhos ... crianças vestidas a rigor, por vezes descalças, com coroas e asinhas a abanar, transportando pequenos cestos com pétalas de flores.
As janelas e sacadas ornamentavam-se de colchas de seda antigas - do rosa mais vivo, ao vermelho-cardeal, do amarelo-açafrão ao azul turquesa - ou mesmo colchas mais modestas, simplesmente de algodão ou de damasco pesado.
Nas esquinas das ruas por onde a procissão passava, o povo ajoelhava à passagem dos andores, e havia um misto de contrição e súplica, de promessa e fé, nos rostos que transmitiam recolhimento e emoção ...

Também fui anjinho nessa procissão, não sei exactamente com que idade.
Recordo a trabalheira quase intransponível que foi ( para duas ou três pessoas que ajudavam à minha preparação ), o prender as asas nas costas, com os tradicionais alfinetes de dama ... e a impaciência que isso me causava, pois não via a hora de seguir orgulhosamente à frente do andor de Nossa Senhora de ao Pé da Cruz ( o nome da mãe de Jesus, para as gentes daquela terra ) !

Bom, acho que fico por aqui.  Já me alonguei demasiado!...

Só que as memórias são como as conversas, e estas, como as cerejas ... Difícil acabá-las !...

No meio do aroma do alecrim, das glicínias e da flor da Páscoa ...
No meio do cheirinho aos coentros, ao borrego assado ... ou aos bolos acabados de cozer ...
No meio do cheiro do incenso ou da cera derretida das velas ... nos meus ouvidos ecoando com nitidez a campainha, a chamar os fiéis à comunhão ...
As gargalhadas da tia Catarina, a voz da avó a chamar para a mesa, ou tão simplesmente os chocalhos dos rebanhos pelos campos, com os balidos das ovelhas em pastoreio ...

... recordo que tudo isto foi Páscoa, tudo isto foi família, tudo isto foi Alentejo ... tudo isto fui eu ... há já tanto tempo, que quase esqueci !!!...






Anamar

* Este post foi escrito no passado dia 1 de Abril, Domingo de Ramos

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito interessante o teu relembrar, com tantos pormenores,essas coisas que eu também vivi, noutra zona do país.
Malmequer

anamar disse...

Olá Malmequer

As nossas memórias são de facto, o recheio das nossas vidas ... acredito cada vez mais!
Elas são o que vai ficando...Se calhar algum dia, são só o que teremos!!

Beijinhos de Boa Páscoa para ti e todos, e um, bem rechonchudo para a Juliana.

Anamar