terça-feira, 18 de dezembro de 2012

" CONTO DE NATAL "



Os campos há muito estavam brancos.
Este ano a neve viera bem mais cedo, em jeito dos tempos antigos, que os idosos diziam normais.
Os últimos brotos verdes, ficaram envolvidos no manto gélido, aguardando, em sono retemperador, que os primeiros raios de sol da Primavera, os acordassem, para os dias de céu azul.
As folhas perenes, das árvores, sempre arqueavam para o solo, ajoujadas sob o peso dos floquinhos que nelas haviam poisado.   Havia também as árvores esquálidas que se despiam totalmente, e apenas apontavam aos céus os seus ramos, em arquitecturas elaboradas ;  também essas esperavam o calor de retorno, para se recobrirem dos verdes mimosos, já que as últimas folhas que as haviam abandonado há pouco, se vestiam de castanhos, alaranjados, ocres e vermelhos.
Os azevinhos, arbustos bravios dos bosques, ostentavam orgulhosos as contrastantes bagas vermelhas.
Juntamente  com  os  musgos que trepavam pelos troncos ( como barbas em rostos encarquilhados de velhos ), haveriam de engalanar a Sagrada Família, que constituía o seu presépio.

Monique recolhera a sua vida àquela quinta, propriedade dos avós e depois dos pais, que há muito tinham partido.
Era a sua quinta de infância, onde em menina brincava, corria, apanhava as flores da Primavera com que a mãe lhe fazia grinaldas para o cabelo, o que a tornava uma princesa, no seu imaginário infantil.
Era a quinta por onde, como os seus amigos do bosque, espalhava alegria, vivia a liberdade de potro selvagem, apanhava os medronhos, as amoras e os mirtilos, para as tartes dos lanches.



Crescera, fizera os seus estudos em Paris, e por lá tentara radicar-se, por lá delineara a sua vida.
Sempre regressava em férias ou em alguma pausa de trabalho, para rever as pessoas ... mas sobretudo os sítios, os cheiros, as cores, os sons ... e a liberdade, com que o ar leve e desanuviado da montanha que ficava no horizonte, a presenteava.

Hoje, Monique vivia em definitivo ali, naquele seu chão !

Era Dezembro outra vez .
Lembrava os Natais em Paris, o réveillon, as luzes, os vidros das montras ricamente decoradas, embaciados do gelo que se fazia sentir ...
Lembrava o escuro da noite, as golas dos casacos a protegerem o rosto, as luvas nas mãos, e aquele "fuminho" a sair da boca, como as chaminés da aldeia distante, que também a essas horas, deveriam ter as lareiras a crepitar ...

A vida de Monique não correra feliz.  Tomou a decisão de ficar só ... mas não em Paris.
Regressaria à quinta, lá na Provença.  St. Remis esperava-a ... e perto, os seus campos também !
Resolvera começar de novo ... sozinha. !

Deixara Marcel em "Les Ombres", o "bistrô" junto ao Sena, onde se haviam conhecido, e onde mantinham o ritual de, sempre que possível ao fim do dia, quando ambos regressavam a casa, tomarem um café, um copo, um chá de jasmim ...
Monique fizera de tudo, para ficar com aquele homem na sua vida.
Simplesmente, Marcel vivia preso ao passado, um passado que não cortara, não cortaria nunca.
Um passado que o tornava refém, por valores, princípios, convicções, os quais não sabia gerir.  E essas amarras de consciência, são aqueles nós, que um homem por muito forte que seja, dificilmente consegue desatar.
Por isso, Monique decidiu partir.
E para partir e chegar a algum lugar, ela só tinha de facto, o seu chão, o seu céu, os seus campos, as cores de St. Remis, o calor da fogueira acesa naquela casa desabitada, para a acolher !

Naquele dia de fim de Novembro, Monique deixou Marcel  ao balcão, em "Les Ombres", envolto nas espirais do seu fumo de cigarro ( que sempre começam e caminham pelo espaço, sem nunca terem fim ).
Dali, ouvia-se ainda que abafado, o gorgolejar das águas do Sena, imparáveis.
A tarde estava a fechar.
O dia fora cinzento, escurecido, tão escurecido e angustiante quanto o peito de Monique estava.
As folhas das árvores, de um Outono instalado, espalhavam-se pelas alamedas, imóveis ;
coladas ao asfalto, pela chuva que tombara a espaços, ao longo do dia, pintavam o chão, com a doçura das cores da estação.  Não havia frio. Antes, havia uma mornidão húmida espalhada no ar.
Ao cruzar a porta, parou, para ainda olhar uma vez mais, longamente, a figura sossobrante, derrotada e impressionantemente cansada, que imóvel, se perdia em pensamentos distantes, na meia obscuridade do botequim ...
E saíu ...
Naquele exacto instante virara a sua página,  fechara o seu livro, acabara de ler o último episódio ...

E era Dezembro, de novo.
Haviam decorrido tantos anos desde aquele dia !...
O Natal aproximava-se uma outra vez.
Naquela quinta novamente com vida, todos os anos por essa altura, Monique carregava do bosque, braçadas de azevinhos, ramos de tuías, pinheiro e musgos dos troncos ... e com as velas,  as fitas e as luzes, enfeitava a sua sala, aconchegante.  Simples, mas de bom gosto ... aconchegante no mobiliário antigo, fiel às recordações, nos paninhos bordados sobre os móveis, nas cortininhas de rendas nas janelas, deixando ver os campos a perder de vista,  nas almofadas e mantinhas sobre os sofás.
A Sagrada Família, o seu presépio herdado dos avós, pousava sobre a lareira, que crepitava por todo o dia, até que Monique se recolhia.
Junto dela sempre estava o Rudi, seu fiel companheiro, sombra dos dias e noites, com quem conversava, e com quem caminhava longas horas, pelos campos, até ao rio, lá ao fundo ;
junto dela, sempre estavam os gatos ronceiros e ronronantes, que mais dormiam do que caçavam, apesar de andarem dentro e fora, circulando pela gateira que recortara na porta.


Depois do Natal, viria o Novo Ano ... mais um !
Monique já não se lembrava de uma forma nítida, como era sentir-se "família" de novo, como era sentir o aconchego e o conforto no coração, que o embalo de uns braços transmite, e como a cumplicidade do silêncio ( que apenas olha o vermelho do fogo e as faúlhas da lareira  a subirem no espaço )  pacifica a alma.
Desde que Marcel ficara em Paris e ela ficara "órfã" de afectos ... desde que  os seus dias criaram rotinas ... desde que apenas St. Remis era espectadora dos seus estados de alma, dos seus risos e das suas lágrimas, que Monique procurava apagar no seu  "calendário do coração ", esses dia pungentemente mais "agrestes" !

A noite chegou, as luzes acenderam-se coadas na penumbra da sala.
As chamas das velas, bruxuleantes, criavam sombras fantasmagóricas nas paredes.
Mais um ano ia virar.
Nessa noite, Monique sempre "cutucava" tempos sem fim, as brasas, sempre silenciava, ouvindo apenas os estalidos da lenha a arder, sempre colocava uma toalha alva ( bordada pelas mãos já trémulas da avó ) na pequena mesa junto à lareira, sempre trazia o seu vinho ( um bom vinho, fazia questão ), algumas vitualhas da quadra que se vivia, as passas dos desejos, e dois copos de pé alto, do serviço que vivia adormecido por todo o ano, no guarda-loiças das memórias.
A seu lado, Rudi dormia completamente espreguiçado na carpete de sisal que cobria  o chão, e os gatos, enroscados um no outro, saboreavam o calor próximo, do lume.
Às vezes passava temas de Natal na aparelhagem, baixinho, embaladoramente, embora preferisse outras tantas, o silêncio alto dos seus pensamentos que rodopiavam livres pela sala, transpunham paredes, janelas, distâncias, vontade e tempo, percorriam espaço, venciam eternidades ...

O relógio antigo, de chão, iniciou a sequência das doze badaladas da meia-noite.
Lá fora nevava abundantemente.  Sentia-se, pelo toque leve, nas vidraças.
Colocou um outro tronco na lareira, encheu os dois copos, com o vinho tinto que "respirava" há tempo, e cadenciadamente começou a comer uma a uma, as doze passas, acompanhando-as de um só desejo.
Era um desejo global, que envolvia os doze que pudesse pedir :  ainda poder ser feliz, na vida que lhe coubesse viver !...



Rudi ergueu a cabeça e arrebitou uma orelha, como que perscrutando o silêncio lá fora ;
os gatos também despertaram do sono profundo, e espreguiçaram-se com satisfação.
A argola de ferro ( agora emoldurada por uma coroa de Natal ), na porta da sala, bateu uma só pancada seca.
Monique foi abrir, como se sempre soubesse, que algum dia, aquele som iria ouvir-se ...
Na soleira da porta, recortada no breu da noite e no branco da neve, a figura de um homem, com o cabelo totalmente grisalho, segurava na mão, um vaso de "Estrelas do Natal", espantosamente rubras, contra o verde intenso das folhas ...

" Voltei " !... - disse Marcel .

Anamar

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