quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

" PÓS - NATAL "



Hoje que é o dia depois de ontem, não me apetece sair da cama.
Está sol e o ar é morno, disse-me a minha mãe pelo telefone, que repousa tão adormecido quanto eu, na cabeceira da cama.
Eu, durmo mas não durmo.
A minha noite foi um desfile de reprises sucessivas, como num cinema de sessões contínuas.

No café, as pessoas parecem ter sido deixadas de véspera.  Ocupam os mesmos lugares, têm as mesmas caras, não têm mais histórias para contar.
Apenas que foi Natal, e que hoje é o "day after" ... é o dia da descompressão.
E como sempre, as ressacas não são boas.
Eu estou como o balão do menino, que se lhe encostassem o bico de um alfinete, rebentaria.
Tenho os olhos húmidos, a tentarem trair-me a todo o momento.  Aliás, estou num esforço que só visto, para levantar diques, que parecem sacos de areia frente a enxurrada.  E ainda por cima, hoje o café está cheio ...
Tenho o peito amarfanhado.  Hoje, eu tenho a certeza que o coração é aqui que mora, e que é no coração, que as merdas todas calcam até esmagar, como um laço de fita que apertasse mais e mais no pescoço, até tirar o ar !...

Ontem, na minha praceta deserta, ao sair para o almoço do dia, em casa da minha filha, apenas os pombos eram os seres viventes por ali.
Os pombos e um homem que estava só, sentado num dos bancos vazios, com duas canadianas que colocara à frente e lhe serviam de apoio aos braços, e estes, à cabeça.
À cabeça, porque à tristeza, ou à dor, ou ao cansaço, ou à desilusão, ou ao desespero, ou tão só à solidão, não haveria suporte possível que lhe valesse ...

Hoje, bem frente à minha porta, estava outro homem desalentado, sentado, ou melhor, derrubado pelo Mundo que não se via, mas que eu sei, lhe caíra em cima !
Nem a cabeça ergueu, ou os olhos direccionou para a porta, quando esta bateu ... e bateu com força !
Ali, estava ele com ele só, tenho a certeza.  Ele e as pedras da calçada, para onde olhava, perdido !...

No café, espaço de todos os dias, tantas vidas que se percebem sem vida !
Pessoas sós, muito sós, claramente.
Há uma espécie de solidariedade estranha, em alguma tristeza que se denuncia nos cumprimentos, no calor do afecto discreto que passa através de sorrisos cúmplices.  Uma espécie de necessidade de nos dizermos que afinal estamos mergulhados simplesmente num panelão fervente, de múltiplos seres anónimos, mas que são nossos pares, nesta coisa que é fazer de conta que vivemos ...
Na verdade, seres que se partilham por momentos, que se tocam por instantes, que se cruzam por episódios, e que depois vão para o silêncio e para o frio, do frio das suas vidas !
No fundo, estrebuchamos todos lado a lado, sobrevivendo, sorrindo-nos sem nos conhecermos, dando-nos braços sem que o saibamos, iluminando rostos com um simples sorriso, despertando afectos, apenas porque o barco é o mesmo, e isso, mais ou menos todos o pressentimos, creio, aliviando-nos no "peso", porque dividido, é menor em cada um ...

E ninguém sabe nada de ninguém.
Apenas nos vemos, conhecemos rostos, adivinhamos almas, descodificamos corações, ou julgamos que o fazemos ... e depois, no fim de cada dia, não sobra mais nada, porque cada um viaja para o seu canto, para a sua realidade, para o seu Mundo de paredes tão altas que poucos as escalam, de muros tão inexpugnáveis, que apenas são afagados e quase nunca transpostos, de fossos fundos, sem pontes mesmo levadiças, que os atravessem ...

Sinto cada vez mais, que brinco por cada dia da minha vida, ao jogo do "toca e foge", compulsivamente.
As pessoas chegam-me, mesmo sem se anunciarem, mesmo sem serem pertença minha, ocupando um pedacinho do meu eu, tocando-me quase sempre só o corpo, porque a alma e o coração têm caminhos tão tortuosos e inalcançáveis, que poucos os conheceram ou conhecem, poucos os "calcorrearam".
E os que o fizeram, partiram há muito !...
Deixaram um sabor doce e doído, deixaram uma lágrima que não seca, deixaram o calor de uma carícia, deixaram a doçura de uma recordação ... e deixaram-me, afinal !!!...

E cada vez mais, os meus dias são dias "pós-Natal" ...
Cada vez mais são dias de "toca e foge", cada vez mais são apenas dias destas partilhas anónimas, com anónimos que me continuam anónimos, e sempre o continuarão !
Até porque cada vez mais, não vale a pena permitir que o não sejam, já que isso acarreta custos que não consigo pagar, com juros a perder de vista, e com taxas tão elevadas que me matam, me secam e destroem o que ainda possa valer a pena, dentro da pessoa que resta em mim !!!...

Anamar

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