Baixinho, muito baixinho, como se houvesse um pudor estranho, quase um temor incompreensível, pelo acto voluntário, mas reprovável, socialmente.
Entrei e havia esse rumor.
O que é facto, é que a mesa habitual estava desocupada, parecendo que, a ser verdade, ninguém ousasse tomar para si, "propriedade alheia".
Estranho !
Por que é a sociedade tão lesta a julgar, a valorar, a decidir ?...
"Ela não tinha direito a dispor do que era seu ? Ora essa ! Era o que faltava !" - pensava eu.
No entanto, nos outros dias, quando ela ocupava aquela mesa, olhando o vácuo, abafando os ruídos com música nos ouvidos, alheando-se do barulho ambiente ( uns dias, ensurdecedor, outros quase inexistente ), quando fingia enganar a solidão com um livro, cujas páginas nunca viravam ... ninguém sabia, se preocupava, ou sequer se interrogava, se aquela mulher estava em paz.
As pessoas sabiam lá !
Cada indivíduo é um mundo, e a sociedade actual é feita de mundos, cujas fronteiras se tocam, sem que exista no entanto, nenhum Tratado Schengen que permita a livre circulação de dores, mágoas, alegrias, dúvidas, solidões, de uns para outros ...
As células individuais abrem de manhã, por cada dia que começa, jorram pessoas, carregadas com a mochila dos destinos, muitas vezes insuportavelmente pesada ...
Se têm força, robustez, coragem para a carregarem ... nunca ninguém sabe, sequer suspeita !
Trocam-se sorrisos, palavras de circunstância, afloram-se as almas e os corações ...
Só se afloram ...
As pessoas não passam das franjas dos mesmos, não ultrapassam o limbo, a antecâmara, a "babugem" da correnteza ...
E todos somos irremediavelmente anónimos, irremediavelmente estranhos ( sempre estrangeiros em terra de ninguém ... ), irremediavelmente transparentes para sermos vistos ... irremediavelmente nada ... ou muito pouco !...
Neste café, onde a mesa "dela" continua vazia, lembro tantos rostos já, que sumiram, tantas deserções que deixaram lugares vagos, sombras, figuras já esbatidas, que seguiram "rumo" ...
E a realidade de todos os dias, perdura inalterável, insensível aos ritmos de vida ou de morte.
Depois dos Invernos vêm os Verões, voltam os Invernos ... E as histórias escrevem-se, desenham-se, na cadência de uma página por dia, inapelável, enjoativamente iguais, sem demais colorido, sem demais luz, sem demais esperança ou sonho ...
E assim será ...
... a menos que achemos que já vimos o filme todo, que a sessão terminou, a história foi contada, e são horas de acender as luzes e arrumar a sala ...
E isso, foi provavelmente o que ela achou !...
Aí .... lá vai ficar mais uma mesa vazia, naquele café, que parece adormecido nos tempos, há décadas e décadas ... há vidas e vidas !...
Anamar
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