quarta-feira, 17 de julho de 2013

" A JANELA "



A minha mãe tem noventa e dois anos.  Já aqui o referi algumas vezes. 
Sempre teve imensa actividade, doméstica, é certo, mas essa era a sua vida.
Eu costumava dizer que ela só estava feliz, quando chegava ao fim, e recomeçava.
Era o pó, as lavagens, os areados, os passados ... enfim, inventava onde não havia, limpava o limpo, via o que não existia, subia, descia  a  cadeiras, escadotes, para locais inacessíveis, e realizava-se, argumentando que "na sua casinha se podia entrar a qualquer hora, porque tinha tudo limpinho " ... como  se  isso  constituísse  uma  espécie  de  provas  prestadas,  documentos  exibidos ...
E era verdade !!...

Doméstica que era, ocupava assim os seus dias, fazia disso os seus horizontes, que complementava, nos anos idos, com rendas, ou bordados, com as notícias desportivas do seu clube de coração ( que acompanhava de perto ), e com alguma que outra novela brasileira, de preferência novelas de época ( históricas, com cariz social ou antropológico ...  Lembro a Gabriela, de Jorge Amado, lembro o Casarão, o Pantanal, a Escrava Isaura, a Tieta do Agreste ... ).

Além disso, "vivia" de perto, demasiado perto, a minha vida, a vida e as preocupações das netas e os seus percursos ... depois também  já, dos bisnetos.

Mas, claro, pela minha mãe, os anos passaram.
Foram indo, e limitando naturalmente as suas capacidades, foram-lhe retirando as possibilidades de resposta, à vontade que ainda manifestava de manter o ritmo, foram-na confinando a uma realidade progressivamente mais encurtada, a horizontes progressivamente mais estreitos ...  foram-na encurralando em casa, porque a mobilidade, obviamente se deteriorou.

Mas a sua cabeça recusou abrandar o ritmo.
Recusou aceitar a imagem degradada e depauperada, com que o transcurso do tempo, implacavelmente a presenteou !

E o  seu discurso, é inapelavelmente o mesmo.
Um discurso desanimado, triste, infeliz, com sabor a injustiça ... perante uma vida que a deixou viver até aos 92 anos !!!...
Um discurso de desencanto, objectivo, duramente realista, na verdade.
Palavras de quem já está a ver a vida do "outro lado", sem cosméticas ou ilusões.
Palavras conclusivas de quem já percorreu muito caminho, de quem tem o saber da experiência acumulada, sem utopias ou espectativas.
Visão de quem já não espera nada, além do acordar diariamente, desejando que não haja percalços acrescidos  à sua vida,  ora tão descolorida ...
Cansaço de quem já não reivindica, de quem foi compelida à acomodação, de quem, uma solidão de alma, tomou conta ...

Os principais e vitais sentidos, estão reduzidos.
A minha mãe ouve muito mal, vê muito mal, mexe-se mal ...
Estes factos, "marginalizaram-na" naturalmente, em relação à realidade em que se insere :  afastam-na, e remetem-na para um mundo interior, de muito silêncio e sombra.
Limitam-na a um espaço físico absolutamente restrito, levando-a a um natural desligar do que a rodeia, a uma postura depressiva e desistente, muitas vezes.

Incomoda-me, dói-me, mas dá-me sobretudo uma raiva incomensurável, deparar-me com aquela fortaleza que ela me habituou a considerar, aquela gigante perante a Vida, que ela sempre foi, aquele pilar que não abanava, menos ainda desmoronava ...  assim, amarga, triste, cansada ...  contudo tão absolutamente clarividente, realista e consciente !...

A Vida é de facto isto, e não mais !
Não tenhamos dúvidas, que todos, mas todos, a calcorreamos, dando os mesmos passos, atingindo os mesmos patamares, galgando as mesmas subidas, e descendo as mesmas encostas ; 
tendo as mesmas ilusões e os mesmos desígnios, ao caminharmos para metas que julgamos determinantes para a nossa felicidade, acreditando que atingidos estes e aqueles desideratos, chegaremos a estádios de realização pessoal, bem-estar e satisfação totais, que nos preencherão completa e gratificantemente ...

E depois ... não é exactamente nada disso !

A verdade crua e dura, é, como a minha mãe diz, uma ilusão, em que a Vida, que "tudo nos dá e tudo nos leva", nos faz acreditar, impiedosamente, indiferente ao nosso acordar penoso e dolorido, face à realidade, dia após dia, ao ritmo a que a esperança, a força e o acreditar, nos abandonam, também !...

E eu sei que tudo é claramente assim.
E por cada vez que volto de perto dela, mais e mais me amarguro e angustio, como se ela  simplesmente me acordasse, pegasse na mão, e me fizesse assomar a uma qualquer janela, através da qual eu assistisse ao desfilar de um filme de terror, a preto e branco ...

...bem longe da produção cor-de-rosa de que julgamos frequentemente ser protagonistas !!!...

Anamar

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