sexta-feira, 30 de agosto de 2013

" O PIGALLE "



O Pigalle está a morrer aos poucos.

Com uma existência de mais de cinquenta anos, este "dinossauro" da Amadora, tem ido dando sinais de que o seu tempo está no fim.
O seu espaço físico "demodé", não foi renovado, ou se algumas benfeitorias sofreu, foram desfavoráveis ao cativar de clientela.
Cheira-se no ar uma desaposta ao investimento, sente-se um clima de doença terminal, exactamente nessa fase ... terminal !

Como uma árvore das matas cerradas, de troncos alargados e recobertos de musgos perenes, que  nas intempéries dos Invernos, vão perdendo braços e folhas, assim este espaço tem ido sendo amputado, de valências que detinha.
Não que fosse um café que se impusesse, actualmente, nem pela qualidade do serviço, que se degradou ( pelo menos nos largos últimos anos ), nem pelo espaço físico em si, que nada de prazeiroso possui,  ou  sequer pela frequência.
À semelhança dele mesmo, a vetustez  dos "habitués", é a nota dominante.
É portanto e simplesmente, um café de tradição, transversal a gerações ... o rosto de uma cidade !...

É um café de silêncios. De silêncios interiores, e não exteriores.
Um café de gente que fala entre si, dos assuntos desagradáveis da vida, das suas dificuldades, das doenças suas, do futebol e do país ... porque esses são os temas privilegiados, pela faixa etária para que está vocacionado, e o frequenta.
Ou então, de gente que não fala, porque simplesmente se isola em mesas, que ao longo dos tempos se tornaram  quase  "reservas" de alguns utentes, ao ritmo do próprio café, e que lê, escreve, ou  se isola ouvindo música, e se afasta do que a cerca, por desinteresse.
Espantosamente existem clientes fiéis, dependendo da hora.
São resistentes, que aparecem por hábito, rotina, comodismo, ou porque os sapatos já os orientam no caminho, tenho a certeza.
Cumprimentam-se, cumprimentamo-nos, por vezes temos saudações mais ou menos cordiais, alguns diálogos curtos, nada que justifique um convite para partilha de mesa ... ou oferecem-se jornais ou revistas, depois de lidos ...

De resto, o tempo amodorra  por aqui, na escuridão das salas, já que  de espaço interior se trata, apenas iluminado por luz artificial ... e dorme-se, ou morre-se um bocadinho todos os dias ...

O Pigalle, o velho Pigalle dos bilhares, ponto de encontro da tertúlia amadorense, anos passados, local onde cadetes da Academia Militar se desfardavam às sextas-feiras, antes de iniciarem o rumo de regresso a casa, aos fins de semana,  local onde muitos jovens desta terra se encontraram, se conheceram, e onde iniciaram futuras relações familiares ...  o Pigalle, de pastelaria excelente e variada, dos serviços de casamento em sala própria ... foi-se "apagando" aos poucos.
Os bilhares desapareceram há muito, os empregados foram "sumindo", mesmo aqueles que eram rosto do café ...
As mesas deixaram de se cobrir com toalhas de pano, desapareceu o espaço inicialmente destinado a fumadores, os televisores ( três ), reduzem-se apenas a um, a funcionar.
O ar condicionado raramente é ligado, mesmo quando o calor torna incómoda a permanência, e hoje, por aviso afixado na sala, soube-se que a partir de amanhã, o serviço será em regime de pré-pagamento ao balcão, sendo os clientes a transportar a sua própria bandeja, para as mesas .
Já não há serviço de cozinha, porque a única empregada da copa, que garantia a confecção dos pratos, também saíu ...

Quase ninguém na sala ...
Vive-se um clima de morte anunciada.  Os empregados que restam ( dois, apenas ), exibem rostos fechados, penalizados, apreensivos ...
Não podem, obviamente,  falar de nada ... mas percebe-se ...

Tenho um aperto no peito.  As lágrimas assomam-me aos olhos.
Pode parecer que exagero.  "Estupidez" ... dirão alguns.
Mas sinto exactamente como se mais uma parte  de mim, se fosse,  no vórtice do Tempo, na injustiça da crise, nas dificuldades da Vida !
É como se um pouco da minha identidade se desmoronasse também, porque afinal, o Homem é uma súmula de tudo o que forma o seu edifício estrutural, em todas as vertentes da sua existência !...

O " gigante ", quiçá o café mais emblemático da Amadora, que atravessou épocas e gerações, que prestou o seu indiscutível serviço à cidade, com o carisma típico dos anos 50/60, não teve uma bóia de salvação que lhe deitassem, ao contrário de tantos outros espaços congéneres  ( lembro a Brasileira, a Versalhes,  o Califa, o Galeto, o Café Saudade ( Sintra ), o Martinho da Arcada, o Tavares Rico, o  Café Arcada ( Évora ), a Mexicana ) ... e claudicou de cansado, desistiu, e breve morrerá !...
É pena que as autarquias, que deviam estar atentas a estas situações, na obrigação de preservação do  património cultural dos Municípios,  património esse que não pode dispensar também, estes locais, não estejam atentas  a  encontrarem soluções de reversão , não apostem na reabilitação e na preservação dos mesmos, já que tudo isto é também, sem dúvida, a memória de um povo, o espólio de um País ...

Não sei por que venho aqui.
Creio que é por imobilismo, por encolher de ombros, acomodação ... espantosamente, alguma saudade já percepcionada ...
Acho injusto, que depois do Escudeiro ter fechado portas há já alguns anos ( e com ele, porque foi minha "segunda casa", como costumava dizer ... se  ter selado um grande pedaço de mim, e da minha história ), o Pigalle, "adoptado"  por mim, com alguma resistência inicial ... vá agora, despedir-se também, apagando-se mais um rosto identitário desta cidade, que aos poucos, está a perder a sua história, a alienar as suas memórias, a entristecer os seus mais velhos habitantes, aqueles a quem restará  tão só, olhar as  fotografias  a sépia ou a preto e branco, para recuperarem na mente e no coração, tantos recantos e locais, que foram ...

Apenas já só ... FORAM !!!...

Anamar

Sem comentários: