quarta-feira, 16 de outubro de 2013

" ESTE BARRO DE QUE EU SOU IMPERFEITAMENTE FEITA ..."



O dia pôs-se, com o sol  já depois de ter passado a linha do horizonte, a alaranjar ainda um céu escurecido, como ficam as salas, quando as chamas da lareira se abatem.
Tudo o resto passou a sombras, em negro esfíngico, contra esse fogo sem convicção.

"A viagem é o viajante, e vemos aquilo que somos" ... dizia sabiamente, Pessoa.

Tive um amigo que me dizia em tempos, eu ser severamente subjectiva naquilo que afirmo, a ponto de poder-se sempre duvidar do que "leio".
É verdade.  Se calhar como muita gente, uns mais, outros menos, reconheço em mim as qualidades do mágico.
Saco do pincel e da caixa das tintas, e o quadro não é o que lá está, mas o que vejo.  E o que vejo, é visto sempre com os olhos da alma e do coração, e os outros, pouco préstimo me têm.
Acho mesmo que se fosse cega, conseguiria inventar imagens e cenários inexistentes.  Bastaria voltar-me para dentro,  e espreitar pela fresta entreaberta.

Por isso é que normalmente sou outonal, sou castanha, ocre e vermelha, sem remédio ...

Por que será que tenho que falar recorrentemente do céu, do mar, dos bandos de pássaros, da chuva miudinha, ou do céu limpo ?
Por que preciso de sentir a terra entre os dedos, a brisa no cabelo, a maresia nas narinas ?
Por que falo só de sentir, de sentir, e morrer de sentir ?!...
Por que preciso viver embriagada por música, acalentada por sonhos, embalada por desejos ... empanturrar-me de emoções, de sentimentos, de quereres, tudo numa dimensão  de valer a pena ... suicida, improvável, onírica ... e depois morrer na sarjeta do cansaço, da dor ( também ela doentiamente avassaladora e mortal ),  de  um  sofrimento  incontido,  maior  que  eu,  que  ameaça  rebentar-me  o coração  a  qualquer  instante,  porque  não  cabe  nele,  e  o  dilacera ?!...

Tudo em mim é  excessivo, tudo em mim é gigante, tudo em mim tem dimensões de eternidade, tudo em mim é incontido, extravasante ... e contudo, frágil !...
E como avalanche incontrolável, que rompe portas e comportas, salta muros e arranca árvores, eu transbordo-me a cada momento, eu mato-me e reconstruo-me, eu apago-me e redesenho-me ...

Tão depresa vislumbro a plenitude da perfeição e do êxtase, como o meu horizonte se esvazia, e o nada cava um buraco frio e negro no meu ser ...

Como o mar, rebentando na areia, faz e desfaz, rodeia e contorna, traz e arrasta ... eu morro e renasço, eu caio e escalo, eu destruo e reergo ... eu chego e parto de mim, dia e noite !...

E é um cansaço ... esta viagem alucinada e louca de turbulência ... sem destino ou nexo, sem conserto ou arranjo !!!...

Anamar

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