quinta-feira, 31 de outubro de 2013

" ELE HÁ COISAS !... "



O sol resolveu aparecer.  Nunca o  S.Martinho nos falta ... e estamos quase lá.

Acordei, relancei os ohos pelo quarto.  Prateleiras plenas de livros, gavetas plenas de coisas.  As que prestam e as que já não.  As que ainda se justificam, e as que nem por isso.

Lembrei a arrecadação, transformada em depósito de antiguidades.  Antiguidades no mau sentido.
Desde uma arca cheia de papéis e cadernos, com os primeiros rabiscos das minhas filhas, os primeiros desenhos nos colégios, em classes infantis remotas, a livros escolares ultrapassados, a testes realizados  por elas  e  creio  mesmo  que  ainda  por  mim,  quando  aluna ( !!! ) ... tudo lá está com uma intenção meritória, em que acreditei piamente :  passar calmas tardes, a rever registo por registo, redacção por redacção, desenho por desenho ... ( dos tempos em que as pessoas eram maiores que as casas e as árvores, os sóis tinham olhos e boca, e junto às figuras se escrevia "mamã" e "papá", como legenda do desenhado ... )

As gaiolas ferrugentas, dos canários e periquitos, da época em que pretendi transformar uma varanda, em viveiro romântico de passarinhos, de todas as cores imaginárias, para que com os trinados e chilreios, me fizessem sonhar que o meu sétimo andar era um qualquer recanto de uma mata frondosa, onde talvez eu gostasse de viver ...  E para que as minhas filhas assistissem à nidificação, acasalamento e nascimento de mais canários e mais periquitos, e aprendessem a amar e a respeitar a Natureza, deslumbrando-se com os seus ciclos ... também lá estão ... sem préstimo !

A mala de porão, cheia até ao topo, de bonecos e peluches, que lhes atravessaram a infância, as loicinhas e os pin-pons, os legos, os alfabetos e os cubos com letras e números, motivadores das primeiras palavras e contas, que eu jurara abrir um dia, para os netos que viessem ...
E esses netos, já têm todos, de seis anos para cima, e o recheio da mala continua adormecido e inviolado ...

Também lá estão as colecções de borrachinhas, com as mais variadas e engraçadas formas, as cassetes de música dos doze, treze anos, cujos intérpretes já se perderam no tempo, não falando dos vinis de trinta e três rotações, com as canções de roda, da escolinha, que não voltaram a animar o gira-discos, também ele já ultrapassado ...

Os VHS de viagens, registando momentos felizes,  eventos familiares, do tempo em que ainda havia família no sentido estrito do termo, testemunhos de risos e gargalhadas, mas também de "àpartes", que hoje nos fazem sorrir ...
Rostos que ainda existem, bem diferentes, bem marcados pela vida, bem menos iluminados pela esperança ... e rostos que já partiram, já nos deixaram, e que só estão num lugarzinho dentro do peito de cada um de nós ... também repousam por aqui, através dos anos ...

Enfim, não pararia de lembrar, de revisionar todo o espólio insano acumulado, guardado religiosamente, por isto e por aquilo, de que não conseguimos separar-nos afectivamente, e cujo valor se prende quase só afinal, a um desejo louco e inconsciente, de não soltarmos o passado, de podermos lá regressar a qualquer preço, de fazermos rodar o tempo e rodarmos com ele ...
Prende-se quase só, ao saudosismo efémero da juventude que ficou ... não nos iludamos !!!...

Resolvi  levantar-me.

Arrepiei-me ao pensar, que quando um dia eu partir também, alguém terá mesmo de desprender tudo isto, soltar definitivamente todo este repositório de memórias.
Mas  talvez  seja  então mais fácil, porque já serão memórias mais distantes, com menor significância ou valor ...

Ele há coisas !...
Que raio de forma enviesada de começar o dia !!!...


Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

O passado moldou-nos, é certo, mas na verdade só somos/existimos no momento presente.
Malmequer

anamar disse...

Verdade ...
Contudo, sempre será uma herança mais ou menos generosa que nos calhou em destino...

Beijinhos

Anamar