domingo, 13 de abril de 2014

" AQUELA DANADINHA !!!... "



A   minha mãe completou  93 anos.

Ela pede a um e um, costuma dizer.  Ultimamente, acho que já só pede sazonalmente.
Se chegar ao Natal, desejaria chegar à Páscoa.  Chegando à  Páscoa, desejaria chegar ao Verão ... e assim vai vivendo.

A sua principal limitação, prende-se com a mobilidade.  É por aqui que começamos quase sempre a claudicar.  A cabeça, tendo em conta a idade, funciona ... e funciona muito bem !
A minha mãe continua praticamente autónoma, continua na posse das suas vontades e decisões.
Aliás, continua como nos bons velhos tempos, como sempre digo, a fazer só o que  quer.

Tem contudo muitos dias tristes, em que chora.  Espantosamente chora, porque, pasme-se, não consegue fazer as coisas de casa, ao ritmo que gostaria.  Não se mexe com a destreza de outrora, não tem a força de preensão necessária, e deixa cair muitos objectos.  Vê muito mal, ouve pior.
A sua conexão com o Mundo que a rodeia, sai portanto truncada, o que a magoa mortalmente.
Esse, o preço da longevidade !!

Depois, também já viu partir quase todos da família, neste momento reduzida.
Além de nós, a família próxima  ( eu, netas e bisnetos ), só existem já, um irmão e uma sobrinha, contudo também já envelhecidos e doentes.
Falam-se telefonicamente com frequência, não mais.

Amigas, a minha mãe nunca teve.  Teve conhecidas, de circunstância.
Aquelas pessoas do dia a dia, encontros de compras, vizinhos de rua ... só !  A sua vida desenhou-se ao sabor da sua maneira de ser.  Sempre viveu para o núcleo familiar, bem reduzido aliás ( eu e o meu pai, quase sempre ausente por razões profissionais ), e para o espaço familiar ( a casa, que era imperioso sempre estar a brilhar em qualquer momento, naqueles acessos de incontrolável mania de limpeza, provindos  das suas raízes alentejanas ).
Vida própria, não me recordo de a minha mãe cultivar. A sua vida girou, em última análise, em torno do bem estar dos seus ...

Convive mal com o avanço dos anos. Aliás, esse assunto é recorrente no seu discurso.
Eu, que considero ter pouco dos seus genes, foi seguramente a ela que fui buscar também, essa insatisfação permanente, essa inevitável questão, com que brigo diariamente ... a insurreição contra o envelhecimento inevitável e progressivo.

Bom,  mas a minha mãe tem uma disciplina de vida, verdadeiramente invejável.   Uma força de vontade tenaz, e um espírito de sacrifício espantoso.  Aquilo que se propõe fazer, faz, custe o que custar !
Não há quem a faça desistir.
É uma velhota danadinha, mais difícil de controlar que o Quico, de seis anos !...

Contudo, noventa e três anos, é quase um século, e num século a Terra roda cem vezes em torno do sol ...
E na Terra, a vida roda milhares de vezes, em cambalhotas imprevisíveis ...
Particularmente, os avanços, as mudanças, as mutações dos estilos e formas de vida nestes cem anos, corresponderam a reviravoltas impensáveis, de cento e oitenta graus.
A  todos os níveis, os  desenvolvimentos havidos, foram de tal envergadura, que parece terem-se vivido cinco dias, por cada um que passou ...
Por isso, a minha mãe sente-se já com os pés numa terra que não é  bem a sua,  como se largada tivesse sido, num lugar que já não entende muito bem, e cujos valores, normas, costumes e linguagem, desconhece ... ou estranha ...
Uma espécie de extra-terrestre,  no planeta onde nasceu ...
E é penoso, cansativo, defraudante, complexo, desconfortável  e ininteligível, viver assim ...
O preço da longevidade !!...

Ainda assim, a velhinha que ela é hoje, é para mim, um enternecedor milagre de vida, um hino à capacidade de resistência ... representa  uma  heróica  sobrevivente  numa carapaça encarquilhadinha, tentando manter-se à tona, em águas excessivamente profundas ... avançando  titubeantemente, aos trancos e barrancos, numa estrada demasiado sinuosa, escura e pedregosa ... com cautelas, teimosias, e  infinitas dificuldades,  mas sem nunca pensar em desistir !!!...

Anamar

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