sábado, 26 de abril de 2014

" FOI BONITA A FESTA, PA ... "



Quarenta anos passaram sobre a Revolução de Abril.
Hoje, este dia 25, corre o risco de se transformar numa efeméride paisagística em termos políticos e sociais, num dia de "pic-nic" democrático, de romantismo e afago nos corações mais revivalistas ...

Todos sabemos, os que viveram as emoções de então, todo o envolvimento e mobilização do país, em torno do acontecido.
A sociedade portuguesa estava transformada num barril de pólvora, onde as condições de vida haviam atingido limites inaceitáveis.
A guerra colonial ferira de morte as estruturas sociais, e fragilizava irreversivelmente, os pilares políticos que a sustentavam.  As arbitrariedades, as injustiças, os crimes cometidos contra os cidadãos que ousavam denunciar o sistema, multiplicavam-se. A "emigração política", exílio auto-infligido por todos quantos eram perseguidos pela repressão do regime, assumia dimensões destruidoras.
O país vivia silencioso, acabrunhado, destroçado ...
E desistente ... era um país cansado !
Éramos  a orla pobre de uma Europa com estatísticas incomparáveis.  Continuávamos aqui, no nosso canto, com o futebol, o fado e Fátima, desempenhando cada um o seu desígnio, na esfera da nossa gente.
Os intelectuais, em surdina, nos bastidores, davam sinais de não dormirem.  A agitação motivada pela insatisfação latente, deflagrava aqui e ali, nos meios estudantis e artísticos, mercê sobretudo, da juventude e da irreverência.
De quando em quando, uma "fumarola" consëguia  fugir às redes do controle repressivo do Estado, e da sua Polícia de Investigação e Defesa, fosse na literatura, na música, nas artes de uma forma geral, na clandestinidade de uma ou outra reunião cultural, de uma ou outra clandestina movimentação política e social.
À censura, sempre atenta, pouco escapava, e muitos eram os "malabarismos" criativos,  engendrados  para se  fugir ao "lápis azul".
Os presos políticos, e os deportados para  fortes e campos de concentração, engrossavam  o número dos que caíam nas malhas do aparelho.  As perseguições eram comuns. A delação também.
Viviam-se tempos de desconfiança permanente, de silêncio ... de túmulo !

E a semente de Abril germinou e deitou raízes.
As raízes crescem na escuridão.  As primeiras folhas verdes, vêm à luz do sol, quando a planta começa a autonomizar-se.
Assim foi também Abril !!!

Ainda que grassando em terreno politicamente pobre, apático, por força das circunstâncias, desinformado, cultural e intencionalmente abandonado, pouco consciencializado, onde o analfabetismo e a baixa instrução eram aproveitados em prol dos interesses do autoritarismo dominante ...
Ainda que marginalizados socialmente, com uma "décalage" assustadora e injusta, entre as classes altas privilegiadas e o grande mar humano, desfavorecido e ignorado, preterido e perseguido ... os cravos vermelhos vieram à luz, nesse dia 25, quando as Forças Armadas, esgotadas, exauridas e delapidadas por uma intervenção militar exasperante, sem fim à vista, nas Colónias, levaram a cabo um golpe mais que perfeito ( depois de uma intentona frustrada, dias antes, com origem nas Caldas da Rainha ), e conseguiram, com mãos limpas, em contornos quase novelescos, derrubar todas as estruturas do regime ...
Conseguiram trazer a alegria às ruas, onde a mobilização popular engrossou as fileiras, numa miscigenação extraordinária  com os militares, e onde se operou o milagre da liberdade renascida, ansiada ao longo de cinquenta  anos de obscurantismo, miséria, repressão, sofrimento e perda de identidade de um país !!!

Foi uma revolução muito particular...
Foi uma revolução romântica, levada a cabo também por um povo habituado a sofrer, um povo de ideais e fibra, mas também de brandos costumes, de abnegação, de espírito de sacrifício e tenacidade ...
Foi uma revolução adocicada pela esperança, pela convicção, e pela certeza tida de que o pesadelo terminara !...

Desde sempre, Abril foi acarinhado no coração dos portugueses.  Quem o viveu e percorreu os seus caminhos, não o esquecerá !
Não se descreve ... não há como !...
Descrever o antes e o depois de Abril, às gerações de hoje, é uma tarefa inglória !
Historicamente não será difícil. Documentalmente, tudo já foi exaustivamente abordado, dissecado, escalpelizado, contado.
São factos objectivos e incontestáveis.
É contudo risível e descontextual, acreditar-se que se podem, pela narrativa, abrir janelas que presumissem dar-lhes um vislumbre dessas realidades, com fidelidade, ou sequer aproximação.
Efectivamente,  como "soi dizer-se" ... "contado, não se acredita " !... Apenas a vivência das circunstâncias o permite.  E isso é privilégio de uma geração ... a minha !!!

A caminhada de quarenta anos já, foi trilhada.
Adulteraram-se os ideais e a ingenuidade de Abril.  Subverteram-se as suas expectativas !...
Como um grande acontecimento, de uma envergadura extrema, de uma aposta exaustiva, de uma responsabilidade não passível de erro, a descompressão subsequente, confrontou Portugal, com um Portugal embalado nos braços, sem que soubesse muito bem o que lhe fazer, ou por onde começar ... hercúlea que era a tarefa tida pela frente ...

"Grande nau ... grande tormenta" !!!
E como uma mãe de primeira viagem, em que o nascituro lhe cai repentinamente no colo, Portugal foi avançando, errando mais que acertando, porque também a revolução não se acompanhava de livro de instruções, e a massa humana que lhe subjazia,  impreparada, ingénua, titubeante !!!...

As máculas e as cicatrizes foram-se avolumando, as memórias de Abril foram-se desvanecedo, os véus do sonho foram caindo, decepcionados, o espírito dos cravos rubros foi-se defraudando ... à medida que a geração que os regou também vai indo, no vórtice do tempo !...

Hoje, a herança que nos resta, a nós, a estes que fomos para a rua naquele dia, que fomos para o Carmo, para a António Maria Cardoso, que fomos para Caxias, para Monsanto, que percorremos fraternalmente Lisboa, ao som das canções de Abril, que parecia termos o Mundo nas mãos, em presente tão generoso do destino ...
a estes que acreditámos e esperámos ...
o que nos resta, é só já quase, reviver uma efeméride paisagística em termos políticos e sociais, um dia de "pic-nic" democrático, de romantismo e afago nos corações mais revivalistas ...

...é só já quase, procurarmos com uma saudade infinita, aqueles que nós éramos há 40 anos atrás,  numa busca irreal e inútil ... e deixarmos escorrer uma lágrima teimosa, enquanto que o nó da garganta  não desata nunca  mais !!!...
... E  navegar ... navegar !!!...

Anamar

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