E a Páscoa terminou !
Terminou, como tudo termina. Os pratos, os copos e os talheres regressaram aos armários, o resto dos doces prometem engordar-nos ainda por mais alguns dias, a toalha da mesa, mergulhou na máquina.
As saudações, os votos, os desejos, em magnânimos gestos de simpatia, ditos e repetidos a cada esquina, pelas pessoas conhecidas, recolheram por mais um ano.
Irá ouvi-los de novo, quem viver.
A pequenada torce o nariz, perante já só a um restante único dia de férias. Quem viajou para a província, para famílias distantes, ou simplesmente quem se permitiu um luxozinho de um fim de semana no Algarve, esperando um sol que nunca veio, tem agora pela frente, o frete da viagem.
Os carros cheios ( de gente, de batatas ensacadas, frutas do pomar, mais as chouriças, as alheiras, o queijo ou o presunto, que aconchegarão as mesas nos tempos próximos ), fazem-se à estrada ... que amanhã, é dia de "pica bois" !!!
Entretanto, o Benfica sagrou-se campeão, creio.
Adivinhei-o, pelas buzinadelas de carros em desvario, num gasto de gasolina tresloucado, e p'los gritos de quem, pendurado das respectivas janelas, acena com cachecóis e bandeiras, ou sopra a plenos pulmões, nas cornetas ensurdecedoras, numa manifestação colectiva, de insanidade também colectiva !
Salva-se o país, resolvem-se os problemas ... o Éden espera-nos !!!...
A família que chegou, almoçou e já foi. Cumpriu-se a tradição, reviveram-se as memórias, exerceu-se um ritual de praxe ....
O dia ... bom, o dia esteve mais de sexta-feira da paixão, do que de Domingo da Ressurreição.
O cinzento plúmbeo de nuvens carregadas, as gotas de chuva, aqui e ali, transformaram este Domingo de Páscoa, num dia algo taciturno, nostálgico, sombrio mesmo ! O sol esquivou-se o tempo todo, e a Primavera regateou dar o ar da sua graça.
No meu Alentejo, quando eu era menina, a segunda-feira de Páscoa, o dia de amanhã portanto, era um dia particularmente alegre ... era um dia de reunião familiar outra vez, de encontro e partilha.
Fazia-se o picnic anual na ribeira, junto à albufeira, para onde toda a família convergia, nos carros de varais ou de canudo, puxados pelas mulas ou pelos cavalos, com as mantas para se cobrir o chão, as toalhas de quadrados para se pôr a "mesa", os mantimentos acondicionados nas alcofas e nas cestas de verga, o garrafão da boa pinga, as frutas e as iguarias sobrantes da Páscoa.
Sempre era mais do que um carro a fazer-se ao asfalto, porque a família ainda era grande então.
Por isso, a viagem era uma festa ! Desafiavam-se no cortejo, acenavam-se em cumplicidade, desgarravam nas modas que cada um puxava, cantavam-se as "saias" sem memória ...e cada qual ostentava o sorriso mais feliz que lhe inundava a alma !
Os velhotes de chapéus de aba larga, iam debaixo de guarda-chuvas, grandes e pretos, porque o sol que nunca nos faltava nesse dia, já esquentava um pouco além da conta.
As mulheres levavam nas cabeças, lenços garridos de flores, e a miudagem, ansiosa por chegar, impaciente por iniciar as brincadeiras, e esfomeada porque o ar do campo sempre abria o apetite, não via a hora das águas da albufeira se anunciarem numa clareira de curva da estrada ...
Chegados ao local, iniciava-se a labuta da logística, ou seja, a escolha da melhor sombra, sob os chaparros mais generosos, em meio das maias cheirosas, que já exibiam o dourado da floração.
Dividia-se com amigos, vizinhos e conterrâneos, um terreno planozinho, em leve declínio até às águas da albufeira ... Dariam jeito, para refrescar os pirolitos, para manter o almeice fresco, para os que gostavam, para lavar as mãos ... ou mesmo para a pequenada chapinhar, enquanto os adultos dormissem a sesta, depois do repasto.
As favas, ricas de coentros e alho, a salada de alface em juliana, o borrego assado com batatinhas coradas ... claro que os inevitáveis pastelinhos de bacalhau da tia Zézé, as azeitonas retalhadas, os queijos curados, de Évora, o arroz doce bordado a canela, pelos dedos finos da avó, as queijadas, as merendeiras e os bolos de folha, vindos da mesa do Domingo ... e um bom tinto insuspeito da Adega Cooperativa, mais os pirolitos mergulhados na fresca da água ... tudo, tudo isso, era mais do que um manjar inolvidável dos deuses !!!...
Os avós dormitavam nas mantas, as muares pastavam por ali, os adultos conversavam, riam, cantavam ... e a criançada perdia-se no esconde-esconde atrás das moitas de murtas, giestas e alecrins, ia aos grilos, ou apanhava raminhos das papoilas, das maias, dos malmequeres, da urze, da esteva, do rosmaninho, e de toda a panóplia de flores silvestres, que os campos primaveris já ostentavam há muito !
Tantos anos volvidos, continuo a emocionar-me, desencavando as memórias doces de então !
Continuo a sorrir nostálgica e melancolicamente, percebendo a marca do tempo em todos nós, nos que há muito "desertaram" ... nos poucos que ficaram, e que são os fiéis depositários disso mesmo ... as memórias, que fazem uma geração, uma identidade, uma terra, um povo !
De facto, era tudo tão genuíno, tão autêntico, tão simples e despretensioso ... tão coração às escâncaras, como o é aquela planície sem fim, sem muros, sem portas ou janelas ... sem peias, limites, ou horizontes !!!...
E que saudades do meu Alentejo !!!...
Anamar
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