quinta-feira, 29 de maio de 2014

" NADA É EXACTAMENTE ..."


Nasci no pós-guerra, não  muitos anos  depois da Grande Guerra de 39 / 45 ter terminado.
E nasci no Alentejo pobre, desfavorecido, neste país, afinal  também desfavorecido da sorte.
Não fui filha de latifundiários ;  de meu, tinha apenas o que o trabalho do meu pai, providenciava.
Não faltou nunca, contudo, abastança na mesa. Para o resto, também se ia dando um jeito.
Casa própria não existia, carro nunca tivemos, esbanjamentos não eram possíveis.
E ainda assim, sem nunca o meu pai tirar férias para si próprio, já  propiciava, a mim e à minha mãe, um período de férias no Algarve, em quarto alugado de casa particular, ou de  residencial modesta.
Mais por razões de saúde, hoje lembro bem o espírito da coisa.  A praia faz bem a uma criança !...

A vida corria mansa, sem sobressaltos, bem desenhada nos espíritos.
O meu pai trabalhava como comerciante, tinha  um salário mais ou menos certo ao fim do mês, com ele se contava, com ele se geriam os dias.
Prossegui estudos, avolumavam-se as responsabilidades, mas era pacífico que eu tiraria um curso superior, para o que tivesse jeito e gosto, porque um emprego certo, me esperaria no fim do percurso. 

Fui educada dentro dos moldes sociais, familiares e morais da altura, o que significava  rígidos, sem concessões, com exigência e seriedade, mas sem sustos ou surpresas ... Era assim, e todos sabíamos como era.
Os valores inalienáveis do  respeito, da humildade, da educação, do trabalho, do esforço, da honestidade, da generosidade, do sacrifício e da dedicação, eram trabalhados na família, na micro e na macro-sociedade em que nos inseríamos, nos núcleos profissionais, nos círculos dos conhecidos e amigos, e também dos desconhecidos com quem partilhávamos a vida.
Era estimável que nos pautássemos com dignidade, honradez e rectidão, por forma que em qualquer momento e em qualquer lugar, nunca fôssemos apontados por motivos menos válidos. Sempre pudéssemos andar "de cabeça erguida" ... este, o slogan !

E os que o não eram, aqueles que feriam os valores genericamente vigentes, e defendidos  pelas estruturas sociais definidas, eram facilmente identificáveis.  Não existiam muitos alçapões, moitas ou tocas, onde se pudessem  acoitar.  Não se escudavam  no seio de suspeitos protectores, com nomes sonantes ...
Mais cedo ou mais tarde seriam referenciados,  e marginalizados pela própria sociedade, que não contemporizava e naturalmente os expurgava.
Era exactamente assim !

Formei-me e fui trabalhar.
Talhada tradicionalmente para o casamento, realização óbvia e quase incontornável das mulheres da minha geração, escolhi ser professora, destino consentâneo e ajustável  às tarefas  de mulher e mãe ( algo também demasiado previsível e óbvio, no universo feminino, quase sem excepção ) .
Conhecia perfeitamente a carreira que tinha pela frente, sabia das seguranças profissionais a nível do trabalho, os deveres e as regalias  que o caminho me assegurava.
O meu primeiro vencimento foi de 4$50, como professora eventual, recebido então em dinheiro vivo, num envelope que o Chefe da Secretaria  me entregava , contra a assinatura mensal da Folha de Vencimentos.

Sabia que teria anualmente actualizações do vencimento, depois de ter passado a Professora Agregada, e finalmente a  Efectiva do Quadro.
Sabia que usufruía de diuturnidades com incidência temporal regular, sabia exactamente quantas horas teria que prestar em leccionação efectiva ( não existiam ao tempo, outros "faits divers" ... ), quantas me eram equiparadas  no trabalho de Direcção de Turma, quantas horas iria beneficiando de desconto no cômputo total do horário, à medida que envelhecesse ... sabia qual a valorização exacta que acrescia à minha nota profissional, por  cada ano de leccionação ... Enfim, sabia muitas coisas ... exactamente !!!

E sabia também que, eu que começara a ensinar aos vinte anos, teria o fim da minha carreira e a almejada reforma, quando atingisse  em alternativa, ou 36 anos de serviço ou 60 de idade ...
E também sabia a fórmula exacta com que seriam feitas as contas da minha futura pensão, baseada nos anos de trabalho e nos vencimentos auferidos ...

Depois, também se previa sem grande margem de erro  ( a menos que algum imprevisto gravoso se nos atravessasse na vida ), a curto, a médio e a longo prazo, como iria ser economicamente em termos de estabilidade, de segurança, de gestão, a nossa vida ao longo dos anos, e no seu fim.
Era possível delinearem-se estratégias, assumirem-se responsabilidades, correrem-se riscos ( porque o eram sempre calculados ), fazerem-se opções, escolherem-se caminhos ... porque qualquer um que escolhêssemos era nosso conhecido, qualquer responsabilidade seria honrável, qualquer plano, criteriosa e seguramente analisado antes da decisão, qualquer estrada tinha luz e saída ... e os sonhos ainda eram permitidos !!!...

Os mais previdentes, e normalmente era-se algo previdente, procuravam  fazer ao longo da vida ( porque isso era ainda viável ) , um pé-de-meia, para uma eventualidade na velhice ... como se dizia.
Uma "eventualidade" ... Porque esta não existindo, o resto estaria acautelado.
Havia respostas sociais asseguradas, em termos da assistência à saúde. Precárias, é um facto ... não satisfatórias, é verdade ... mas existiam .

Bom, poderia ficar infinitamente a dissertar, à medida que fosse lembrando, o desenrolar deste filme que nos conduziu aos dias de hoje.
Os dias de hoje, que nós, os que viemos lá de trás, custamos a perceber, a aceitar, a partilhar ...

Mas não vale a pena, pois todos sabemos a realidade que vivemos na actualidade, e todos conhecemos o principal motivo de, os da minha geração, se sentirem peixes fora de água, sem azimute e sem norte ... perdidos, com a sensação de vivermos numa Torre de Babel de valores, regras ou normas ...
O  principal  motivo deste cansativo, destruidor e angustiante  "stato quo ", tem um nome :  insegurança, indefinição, incerteza ... dúvida ... susto ... porque sobrevivemos afinal  em  tempos em que "NADA  É  EXACTAMENTE ..." !!!

Anamar

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