quarta-feira, 22 de abril de 2015

" SAUDADE ..."



" Três erros e um quarto, menina Guidinha ?!"

Ditado  feito,  ditado  corrigido.   Acima  de  três  erros,  ganhava-se  o  direito  às "orelhas  de  burro "...
Assim estava destinado.

A Guidinha tinha dado um quarto de erro acima do determinado.  Um famigerado acento mal colocado,  ou não colocado ...
Contudo a senhora D. Maria Prego, professora no colégio há décadas, parecia ter  esquecido a penalização.  Ou se distraíra intencionalmente, ou talvez fosse uma tentativa do seu subconsciente repor alguma justiça ...
Afinal a menina tinha apenas 7 anos, feitos recentemente.  Entrara numa primeira classe, como todo o mundo à altura, mas entretanto  provara quase logo, dada a sua agilidade para as letras e os números, estar apta a transitar à classe seguinte.
Dominando os conteúdos programáticos exigidos, a senhora D. Maria Prego transferiu-a  para a segunda classe, a partir de Dezembro do próprio ano do ingresso, passando então a frequentá-la com as meninas de 8 anos, em escolaridade normal.  Era portanto,  a "caçula" da classe !

A menina Guidinha transitara com uma classificação de 20 valores ... mas agora caíra em desgraça !
Aquele maldito quarto de erro !...

O colégio, particular e feminino, era já antigo na cidade.
Era um colégio conceituado e renomado, pela taxa de sucesso.  As alunas  que por lá tinham passado, haviam tido desde sempre, um percurso escolar brilhante, no liceu.
Se existisse um "ranking" de escolas à altura,  o Externato Conde de Monsaraz, na cidade de Évora, seguramente  ascenderia a  um lugar  muito honroso !

As quatro classes ocupavam uma sala exígua, lembra hoje.  Ou pelo menos, no distanciamento do tempo, parece-lhe que assim era.
Eram três ou quatro meninas por cada classe, apenas.
A sala pertencia ao rés-do-chão do prédio habitado pela própria professora e família.  Tinha uma janela com rede de protecção, que dava para o Largo de S.Francisco, frente ao mercado municipal, onde os pais se abeiravam a buscar as meninas, ou a trocar breves palavras com a professora, na hora da saída.
Ao fundo, a casa de banho improvisada, ficava no vão da escada que levava ao piso superior. Consequentemente era baixinha de tecto, a porta também era baixinha ... mas quem a transpunha eram meninas ... igualmente "baixinhas" ... não fazia mal ... ( rsrsrs )
Não era provida de sanitários. A coisa era remediada de outra forma ...
A Guidinha odiava esse pormenor da escola !...

As carteiras, de dois lugares, em madeira, alinhavam-se.
De tampo inclinado, possuíam um buraco para o tinteiro de molhar o aparo, embora no tempo da Guidinha, já existissem as Bic.
Frente a elas, estava o quadro de lousa preta, um mapa de Portugal, das ilhas e das colónias, um crucifixo, e duas fotografias em tamanho grande, lado a lado : Salazar e Craveiro Lopes ...
Havia ainda um relógio de parede, e o ponteiro encostava-se ao quadro.

Também não havia recreio.  Em dias excepcionais, muito de quando em vez, a senhora D. Maria Prego, se bem disposta, deixava as meninas brincarem um pouco, no pátio lá de casa. Era um pátio empedrado, com duas trepadeiras robustas a cobrirem completamente a parede daquela casa solarenga.  Uma glicínia e uma roseira de florzinhas amarelas miúdas, confraternizavam desde sempre.
Esses dias eram então dias de festa no colégio, pela raridade do acontecimento !

A senhora D. Maria Prego era senhora já idosa.  Ou talvez não fosse tanto.
A Guidinha sabe que à época, as mulheres pareciam bem mais velhas do que realmente eram.  Era uma solteirona, seca de carnes, esguia, com o cabelo um pouco grisalho, preso num "pôpo" descido na nuca.
Vestia rigorosamente sempre de escuro, e encarnava a figura típica da perceptora inglesa, no nosso imaginário "torturadora" de criancinhas ...
Era austera não só fisicamente, mas também na postura que assumia. Não ria, era autoritária e pouco dada a brincadeiras.  Conversa não era permitida, e por isso, no Verão, apesar da rede na janela, podia ouvir-se uma ou outra mosca intrometida.

O Externato Conde de Monsaraz era frequentado pela classe alta da cidade, e não era fácil conseguir-se uma vaga nas inscrições das meninas.
A Elisinha, filha do Presidente da Câmara, a Dorinha, filha de um médico conceituado, a Mané cujo pai era um conhecido causídico da cidade, eram algumas das alunas do colégio.
A Guidinha tinha pais mais modestos. O pai era comerciante e a mãe, doméstica, e foi admitida no externato mercê de um pedido da madrinha de baptismo, que era prima da professora.

" Três erros e um quarto, menina Guidinha !"...

Fez-se um silêncio pesado.  A Guidinha estava aterrorizada, apesar da senhora D. Maria Prego ter silenciado, parecendo ter esquecido o castigo.
Não fora uma voz fininha, aparentemente tímida, lá do fundo da sala lembrá-la ... e a Guidinha estaria safa ...

Mas não !...

A senhora D. Maria Prego foi flagrada na sua aparente distracção, e apesar do estatuto algo excepcional da menina ... não teve outro jeito ...
... e a Guidinha sentiu aquelas orelhas de cartão, artesanalmente presas a uma fita, serem-lhe amarradas à cabeça ...

Humilhação das humilhações !  Desgosto dos desgostos !  A mágoa do que sentia já como uma injustiça, apesar dos seus 7 anos, deixava-a sufocada em lágrimas.
A aluna exemplar, com "orelhas de burro" !!!

Os anos passaram.  Muitos e muitos anos !
O episódio "devastador" das "orelhas de burro", nunca foi esquecido na vida da Guidinha.
Até hoje lembra com uma nitidez absoluta, aquela tarde azarada, aquela colega "queixinhas", aquele vexame ... aquele quarto de erro !!!...

Saíu da primária sem dar um único erro.  Saíu, sabendo escrever com correcção, sabendo exprimir-se com clareza, com conhecimentos alicerçados, com hábitos de trabalho, ordem, método e disciplina inalienáveis.
Saíu com uma bagagem que lhe permitia encarar a vida escolar futura, sem sobressaltos. Saíu com um domínio estruturado dos princípios necessários a um percurso académico exigente.
Hoje sabe como foi importante todo o rigor, toda a exigência, toda a seriedade impostos.
Sente-se grata pela forma como foi conduzida, numa fase tão determinante da vida, em que lhe foram facultadas todas as ferramentas que a dotaram com a destreza e as capacidades intelectual e de trabalho, necessárias a responderem a uma vida séria e válida.

O Externato Conde de Monsaraz perde-se na bruma do tempo, a senhora D. Maria Ramalho Prego, há muito terá partido .
Quando vai a Évora, sua cidade de coração, estranhamente ou talvez não, quase sempre a Guidinha se esgueira até ao Largo de S. Francisco, olha longamente aquele edifício, e aquela janela  agora já fechada,  e claro, sem rede que a proteja ...
É como se quisesse "conferir", como se buscasse alguma coisa, como se para todo o sempre ali houvesse um encontro marcado com o passado ...

Lá, já não há meninas, nas  leituras ou nas contas, nos ditados ou nos problemas ...
Lá, também já não há "orelhas de burro", nem as cantorias de roda, ou as gargalhadas do "agarra", em dias de recreios felizes ...

Mas  a Guidinha sente sempre um nozinho na garganta, um calorzinho no coração, enquanto que um sorriso nostálgico de saudade lhe invade o rosto ...
... porque saudade é tudo aquilo que fica, quando já nada existe !...

Anamar

1 comentário:

Maria-Portugal disse...

A minha professora primária...saudades