sábado, 6 de junho de 2015

" PORQUÊ ??? "


Estou exausta !
É a terceira noite que não descanso, nem qualitativa, nem quantitativamente.
É o esforço físico e mental, mas é ainda mais, o desgaste psicológico e emocional de ver alguém que foi um ser inteiro, mas inteiro mesmo, autónomo, senhor das suas vontades e decisões ( muito embora as limitações sobretudo locomotoras, lhe restringissem nos últimos tempos, alguma qualidade de vida ) ... jogado numa cama que mais é uma prisão, refém de espaço, refém da ausência de forças e refém  de uma demência, progressivamente a acentuar-se  de noite para noite.

Como é possível, pergunto-me, o ser humano degradar-se a este ponto, em que não é mais nada ... apenas uma máquina, que irá funcionar em desacerto, enquanto houver corda ?!
Como é possível que na verdade o comando cerebral seja a exclusiva central norteadora de tudo, e o coração, apenas a bateria, que descarregando-se, ainda assim faz mexer braços, pernas, olhos, boca, mãos ... e mais nada ?!

A minha mãe é, neste momento, uma aproximação injusta, triste, totalmente desarticulada, de um ser humano.
A minha mãe é uma sombra, um pesadelo, um esgar ... monitorizado a comprimidos, a fraldas, a ritmos impostos, quer alimentares quer de higiene.
E quando "se olha", e o "fusível" está ligado ... desespera, revolta-se, pede clemência e paz ... pede para  partir, porque partir será sinónimo de descanso ... E ela quer descansar !
Ela precisa parar esta luta inglória, que por inércia da vida, ainda é obrigada a travar ...

Não há muito mais a fazer !  Mesmo os mais sonhadores, crentes e determinados, estou segura, que interiormente estão certos da sua utopia, e estão certos do que ali está realmente a acontecer ...
E o que está a acontecer é que a última chama da "vela interior", está a extinguir-se, lentamente, dolorosamente, agressivamente ... a última centelha de luz é tremeluzente, é titubeante, é asténica ... irá apagar-se ...

Madrugada fora, encostada às grades daquela cama, só olho.
Olho incrédula, perguntando-me onde é que aquele corpo definhado encontra ainda assim tanta força, para não desistir de arrancar toda a roupa da cama, as fraldas, os resguardos, a camisa de noite ... segundo após segundo ... continuadamente,  numa fúria e numa sanha de jornada imparável ?!
Escuto o desnexo das frases, o descomando da verborreia, os impropérios nunca ouvidos na boca da minha mãe ... em vida.
Sim, porque hoje ela está morta ... obviamente !

E é mera sobrevivência doída, o que a obriga a continuar.
É mera prepotência da vida, autoritária e brincalhona, miseravelmente brincalhona e sádica, indiferente e arbitrária,  que lhe retira a dignidade que lhe era devida, a reduz a um grotesco  e desesperante amontoado de pele e osso, sem escolha ... que se arrasta no tempo, que se prolonga artificialmente ... E ela sabe-o !

Sempre que alguma lucidez desce, é uma agonia.  É uma dor sem tamanho ( porque é dor da alma e do coração ), é carne viva sangrante, a pedir que não lhe mintam.  A pedir que lhe digam que na verdade não há futuro à sua frente, que tem que esperar, esperar apenas que os desígnios se decidam e lhe dêem alívio.
Como se nós pudéssemos cometer essa crueldade !...
A pedir que a ajudem a por-se em acordo com aquilo que lhe está a caber ... apesar de sempre ter pedido nunca chegar a este destino ! Poder pacificar-se com o resto da vida que detém ...
Como  se  nós  pudéssemos  dar-lhe  o  alívio  que  injustamente  não  podemos dar-lhe, de  facto !

Estou exausta !
Estou destroçada, revoltada, assustada ... apavorada !

E lembro uma imagem patética do filme "O meu nome é Alice", recentemente exibido nos cinemas.
Um filme importante, marcante, real demais ... Eu diria, imprescindível ! Dramático ... inevitavelmente dramático !!!

A protagonista, uma mulher de cerca de cinquenta anos, professora universitária e paciente de Alzheimer, descobre e acompanha a sua doença desde o início.
Esclarecida que é, conhece claramente todas as limitações futuras a que a doença a remeterá.
Luta sempre, estoicamente, com decisão, objectividade e sem dramas, enquanto ainda lhe é "permitido" ...,
Mas acautelando o desfecho que conhece inevitável, e a que não se quer submeter, regista no computador pessoal que a acompanha diariamente, um "lembrete" decisivo  e patético :  Quando entender como inadiável mais, o ponto final que desejaria na sua degradação, quando entender ter atingido o limite da resistência e se sinta em patamares aviltantes da sua dignidade enquanto pessoa ... lembra a si própria, ter guardado num determinado local, um frasco de medicação que deverá tomar.

E a frase em que ela reafirma para si mesma,  no computador " Não esqueças ... tens que tomá-los todos ... todos !..."  abanou-me de alto a baixo, sacudiu-me, e inquietou-me tanto, por dentro ... que me retirou a paz !...

Esta, a problemática avassaladora,  que, estou certa, perturba e assusta todos nós, quando pensamos na incerteza, no desconhecimento, na dúvida sobre o nosso destino final.
Esta,  a problemática que nos levanta tantas questões éticas, morais, emocionais, pessoais, familiares ... sociais ... jurídicas.
Esta, a questão que traz à mesa das reflexões, o direito pessoal ao livre arbítrio de cada cidadão, sobre a sua própria individualidade.
O que, do meu ponto de vista deverá ser inalienável, respeitado e acatado, desde que esse indivíduo reúna condições de sanidade devidamente comprovadas medicamente, e bem assim liberdade de escolha e decisão !...

Complexo ... muito complexo, sem dúvida !!!  Controverso ... demasiado controverso, seguramente !!!

Estou exausta !!!...

Anamar

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