quarta-feira, 3 de junho de 2015

Eu tinha que escrever isto ... "O PAÍS RISÍVEL QUE HABITAMOS "





A minha mãe tem uma pensão de sobrevivência de pouco mais de trezentos euros, incluindo já o complemento de dependência.
Sempre foi doméstica, sempre trabalhou a sério nas tarefas de esposa, dona de casa e mãe ...
E sempre as cumpriu com denodo, numa época em que tradicionalmente as mulheres não exerciam actividades profissionais fora de casa.
O meu pai partiu há vinte e três anos, e desde então, a única fatia de rendimento que coube à minha mãe, foi a pensão auferida em consequência da sua nova condição de viúva.

Nunca em casa se utilizou o artifício legal a que muita gente deitou mão  na altura, de ser declarada uma qualquer profissão, pela qual ela descontasse para a Segurança Social, a fim de que pudesse ter no fim da vida, uma pensão própria, garante de uma almofada de sobrevivência mais aconchegante.
Era vulgar, alguém declarar ser entidade patronal de costureira, ama de crianças, empregada doméstica ... qualquer coisa... Não viria mal ao mundo, e contornava-se a situação.
Muita gente o fez.  Também lho sugeriram. Mas a minha mãe, presa a uma honestidade absurda, um escrúpulo absoluto e a uma lisura de atitudes, sempre o recusou.
Se o não era, não o podia declarar !!!

E assim fomos indo.
Chegámos ao hoje.  Hoje, em que a minha mãe, nos seus 94 anos, acamada, com fraldas em permanência, medicação em permanência, e toda a panóplia de requisitos inerentes a uma recta final muito complicada, não faz mais face a um orçamento de despesas exuberantemente acima das suas possibilidades.
São os apoios técnicos necessários ( cama articulada, cadeira de rodas, cadeira de banho ... são as fraldas, são os resguardos, os pensos de incontinência ... é o oxigénio, são os sucessivos balões de soro, são os suplementos alimentares ( porque se alimenta mal ), são as vitaminas e toda a gama de análises e medicação,  que diariamente "pingam", de acordo com as flutuações do seu estado de saúde ...
É um começar e não acabar de problemas !
E sem médico de família atribuído ao meu agregado familiar  ( por saída por duas vezes do médico existente ), é uma odisseia, fazer face a esta situação !
É óbvio que a minha mãe teve que coabitar comigo.

Decidi então pedir a comparticipação, a que o utente tem direito, se atestado medicamente, para as fraldas e material afim.
Como a minha mãe não se desloca ao Centro de Saúde, e domicílios, só para Julho ( ! ), fui eu em sua representação, para a fila de marcação de consultas para médico de recurso, pelas 5 h da manhã.
E já não fui a primeira da fila ( !!! ).
Às 8 h são distribuídas as senhas para as consultas, que se iniciam às 9 h.
Contudo, o médico que me foi destinado, parece ser useiro e vezeiro em começá-las mais tarde.
E assim foi. O dr. António Semedo, iniciou-as às 10,30 h.
Expus-lhe  a situação, mas o médico recusou assinar o documento que me permitiria pedir o auxílio económico, argumentando que não conhecia  a utente, E certamente é-lhe "difícil e altamente comprometedor", envolver o seu bom nome,  numa declaração, em que uma velha de 94 anos, acamada, com uma pensão de pouco mais de trezentos euros,  pede ajuda para custear as fraldas de que precisa !!!...

As lágrimas caem-me.
Sinto-me a mendigar algo a que tenho direito, num país, onde pago os meus impostos, onde desconto religiosamente tudo o que inventam ... e onde, se o não fizer, terei as inerentes consequências.
Enquanto isso, os mesmos, sempre os mesmos, saem incólumes de processos irregulares, não transparentes e fraudulentos ... beneficiam de tratamento de excepção e troca descarada de favores ...
Mexem e remexem em negócios sempre proveitosos, de milhões, tantos milhões que nem sequer conseguimos imaginar o que sejam ... nós, que mensalmente temos alguns euros para nos bastar !...
E nada acontece !...

Houve que conseguir outra consulta, outro médico ... e só não outras 5 h da manhã, graças à boa vontade e compreensão de uma administrativa do Centro.
Desta feita, uma médica passou a declaração que deverá então ser entregue na Segurança Social, para apreciação e posterior deferimento ou indeferimento.
Ainda assim, há  que tornear outro "gravíssimo obstáculo" : não pode ser dito que a minha mãe vive agora comigo, porque então, muito embora a minha mãe mantenha ainda a sua casa de que paga renda ... água, luz, telefone ... passa a integrar o meu agregado.  E como eu tenho uma pensão "milionária", o pedido será indeferido !!!...

Mas para entregar o formulário na Segurança Social, também o não posso fazer dirigindo-me simplesmente à instituição.  Não !  Tenho que fazer uma marcação prévia, por telefone, aguardando então a respectiva marcação ( por acaso apenas ( ! ) 12 dias depois ... )
Entretanto, deverei continuar a aguardar no remanso da casa, que me informem da decisão tomada.
Se for "sortuda", eles ajudam-me ... Tenhamos esperança !

A Câmara Municipal da cidade onde vivo, dispõe de um Banco de Ajudas Técnicas, que acorre às necessidades dos autarcas mais carenciados, de acordo com as suas dificuldades ( devidamente comprovadas ), e desde que  as tenha disponíveis.
Dirigi-me por isso,  à Junta da Freguesia a que pertenço, para expor de novo a situação, à Assistente Social.
Mas para tal, a marcação da entrevista ( 3 semanas depois ), é feita apenas às sextas-feiras, em número muito limitado e por ordem de chegada.
Por isso, às 6 h da manhã já aguardava à porta da Junta, e antes de mim, já a D.Luisa, uma infortunada caboverdeana, esperava também.
Aproveitou para me contar todas as desditas da sua triste vida, enquanto dividíamos o degrau da soleira da porta, até que às 9 h nos atendessem no interior, entretanto obviamente encerrado.
Já não havia em pé, posição que nos valesse, e o vento, nesta terra de vento frio e desgovernado, açoitava-nos sem piedade.

Mais formulários, mais fotocópias comprovativas, mas o processo só será desbloqueado, depois de eu exibir o comprovativo da entrega prévia na Segurança Social, o que ainda aguarda para acontecer ....
E ... se  tiver sorte. e a Câmara as tiver disponíveis na altura, então talvez possa usufruir do empréstimo de  uma cadeira de rodas e uma cadeira de banho, porque a cama articulada, que se impôs como absolutamente premente quase de um dia para o outro, já eu tive que alugar de imediato.
Pela instalação paguei 90 euros e por dia, pago de aluguer 5 euros !!!

Talvez entretanto nos saia o euromilhões ... Quem sabe ?!

Precisei desabafar !

Esta experiência dolorosa, esta via sacra interminável,  mostrou-me lados inimagináveis da vida.
Lados que pensamos conhecer, mas que na verdade vão muito além do que lemos, do que ouvimos, do que supomos.
Por outro lado, teve o mérito de me desencadear um misto de sentimentos e emoções, também difíceis de definir : solidarizou-me de alguma forma com a mole de cidadãos deste país, que se sentem ( inevitavelmente ) desprotegidos por uma estrutura social que não responde às necessidades mais prementes, aos direitos mais legítimos ... a protecção à saúde.
... num país da Europa, que se quer alinhada com o primeiro mundo !!!
Depois, mostrou-me como é "pedir", junto dos órgãos e das pessoas com capacidades decisórias.
Percebi como é, face a arbitrariedades, injustiças ou insensibilidades, calar um grito, suster um oportuno murro na mesa ...
E senti humilhação, porque é de humilhação mesmo que se trata, por mim e por todos os meus concidadãos que diariamente enfrentam estoicamente esta teia musculada ... quase inultrapassável, na exigência simples dos seus legítimos direitos.
Engoli e engulo ainda, uma revolta incontida, face à desumanização e à indiferença generalizadas.
E digiro cada vez pior, as assimetrias sociais inaceitáveis, que o poder económico determina : os cidadãos de primeira e os cidadãos de segunda, sendo que todos deveriam ser olhados e tratados igualitariamente, pelo estado dito social, que nos governa.

Tenho ainda que referir, por justiça, que no meio de todo este percurso acidentado, e apesar de tudo, de quando em vez, ainda se tropeça em profissionais competentes, interessados e solidários, que se esforçam, mesmo esbarrando em todas as dificuldades que o sistema impõe, e que colaboram com seriedade.
A eles, sem me lerem contudo, presto a minha homenagem.  Bem hajam por isso !

Seguramente não sairei melhor deste processo.  Nem como cidadã nem como pessoa.
Ao contrário, penso que tudo isto está a despertar o que de pior há em mim, provocando-me clivagens irreversíveis a nível pessoal, familiar e social.

Precisei relatá-lo, não só porque fazendo-o, alivio um pouco, mas porque ao escrevê-lo, tento descortinar uma qualquer lógica ... se a houvesse.
Talvez também, com este depoimento, dê eco a muitas vozes, por aí tão desesperadas, desiludidas e perdidas quanto eu !!!

Anamar

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