terça-feira, 5 de março de 2019

" NO REINO DO FAZ DE CONTA ..."





Carnaval cinzento, com alguma chuva miúda mas incómoda e aragem desabrida, contrariamente ao tempo que se tem feito sentir nas últimas semanas.  Está mais para quarta-feira de cinzas do que p'ra terça gorda ... O próprio tempo a brincar, ao que parece, ele mesmo, com os foliões !

Nunca gostei desta quadra meio ilógica e aparvalhada.  Desde miúda, fase da vida de riso fácil, folia desejada e inconsequência óbvia, nunca apreciei essa determinação calendarizada, de rir, brincar, disparatar e ser irreverente, só porque "é Carnaval e ninguém leva a mal " !
A busca de nos passarmos por um "outro" que não somos, de nos enfiarmos debaixo de uma pele que não é nossa, de fazermos de conta gratuitamente que agora é a hora de estar feliz e divertido ... nunca foi a "minha praia".
Em criança, inevitavelmente a minha mãe sempre me mascarava.  Era uma questão "institucional".  E sempre, da mesma coisa.  Ou era de sevilhana, ou de minhota ou de camponesa da Serra d'Ossa, em cujas faldas ficava a vila onde havia nascido.  Eram as indumentárias existentes à época, ainda assim, emprestadas por uma madrinha rica que podia dar-se ao luxo de as haver adquirido.
E todos os anos, os Carnavais tinham para mim, portanto, o mesmo "rosto".
Era uma chateação ter de me prestar a tais atribulações de vestimenta, penteado e maquilhagem, só para vir à rua fazer um pequeno desfile.  Não dava para o trabalho.  Acho mesmo, ou melhor, tenho quase a certeza de que a minha mãe se divertia com isso, bem mais do que eu ...

Os anos passaram e foi a minha vez de ser mãe.
Carnaval existe todos os anos, a tradição, incoerentemente parece meter-se dentro de nós, as famigeradas farpelas atravessaram os tempos e continuavam a pé firme ( com alguma picadela de traça na lã das indumentárias ) ... e as minhas filhas, igualmente sem entusiasmo excessivo ... foram as próximas "vítimas" !...

Ainda não existiam lojas de chineses, com toda a panóplia interminável de trajes de tudo e mais umas botas ... a  um  preço  baratinho  baratinho,  fazendo  jus  ao  descartável  da  coisa ( até para que não nos entediemos por repetições enfadonhas ) ... e portanto, a sevilhana, a minhota ou a camponesa da Serra d'Ossa  baixavam ao terreiro, e eram de novo, as opções viáveis.

A minha filha mais velha, desde sempre coquete e vaidosinha, adorava as peripécias.  Não reclamava dos puxões de cabelo a cobrir a palha de aço com que lhe arranjava volume para que a "peineta" não caísse, suportava quase sem pestanejar, a maquilhagem a rigor onde não faltava um sinal postiço e sensual na bochecha, colocava a mantilha com preceito e as castanholas nas mãos, não se agitava muito para não perigar o "boneco", e desfilava com toda a pose e compenetração devidas à circunstância.  E parecia não se enfadar.  Adorava a coisa !
A outra, desde sempre mais maria-rapaz, amofinava-se com tudo aquilo e não descansava enquanto não se desparamentava.
Resumiam-se portanto a curtas e rápidas incursões pelas mascaradas, as tentativas inglórias que eu fazia para que ela se divertisse.
Se divertisse ... achava eu, esquecida que parecia estar dos meus "padecimentos", na curva do tempo  ...
Idas a corsos, desfiles e afins, ocorreram algumas poucas vezes, e ainda assim nunca por iniciativa pessoal.

Hoje, acho que nem sequer já os netos mais velhos se mascaram.  O António, nos seus quase 18 anos, sempre muito contido e formal, penso que só em bébé a mãe o terá levado à certa ...
A Vitória, quase com 15, naquela fase chata e incontornável de uma adolescência espartilhada e controladora, deve achar toda esta transgressão um "non sense" para o que não tem paciência ... aposto ...
Resta o Kiko ... Por acaso não perguntei, mas talvez ele, com os seus onze anos, galhofeiro, super bem disposto e em constante brincadeira ... ele que leva a vida num permanente Entrudo ... talvez ele tenha optado por um qualquer boneco caricatural da sociedade actual, para se travestir. É o seu estilo preferido ...

Agora é a vez da Teresa.  Essa, com vinte e um meses, ainda não disse nem sim nem não ... Mas tanto quanto pude ver, não reclamou ou sequer tentou  tirar  as asas e a saia de uma borboleta linda, com que festejou a quadra, na escolinha.  Espantosamente, nem arrancou da cabeça, como faz impacientemente com os ganchos do cabelo, a bandolete que compunha o traje.  E parecia bem compenetrada do seu papel, rua adiante ...

Bom, isto está mesmo quase a terminar.  Amanhã começa a época cinzenta e descolorida do calendário.  A Quaresma, vivida nos preceitos religiosos, fecha as portas à desbunda, à irreverência e ao "pecado" dos excessos ora cometidos.  Entra-se na penumbra, na reflexão e na penitência.
E a loucura destes três dias em que estranhamente o ser humano se transfigura, se camufla, se omite atrás de uma máscara, ansiando o que não é, não foi e eventualmente nunca será ... a alucinação global, em que mergulhados tudo se nos permitiu, está a findar.
"Se a vida são dois dias e o Carnaval, três", houve que dar vazão aos desvios, aos excessos e às transgressões que se permitiram atrás de um disfarce.

No calor do Rio, ao que vi, a liberdade permitida da quadra, foi instrumento que se usou não só para a festa, a folia e a alegria solta do povo, mas também para homenagens e  protestos.
Felizmente, a manifestação de uma consciência social, a dizer no sambódromo o que não pode ser dito neste momento, a lembrar o que é arbitrário e perseguido, a despertar o que está silencioso e censurado, eclodiu e desceu à Sapucaí e ao mundo, mostrando os desmandos de uma sociedade silenciada, manietada, discriminada e ameaçada !

Em Veneza, o carisma barroco do seu Carnaval, "clean", civilizado, com a habitual "politesse", desfilou para turista ver ... como sempre !

Por cá, as sátiras sociais nos variados Carnavais do país, nos carros alegóricos, nos cabeçudos, matrafonas, zés-pereiras, não pouparam à tripa forra as figuras públicas na berra, passíveis de serem ridicularizadas e denunciadas. As "charges" políticas e sociais não poupam ninguém.
Aqui também, o cariz social  subrepticiamente aproveitado para se dizer o que depois se calará ...


E amanhã, a máscara ... esta ... ( não a de todos os dias ), cairá definitivamente, arrumando-se por mais um ano ... Afinal, foi mais um Carnaval que passou !...




Anamar

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