quarta-feira, 20 de março de 2019

" OCORREU-ME QUE HAVIA DE LHE DIZER ..."





Ocorreu-me que havia de lhe dizer ...
Mas,  dizer o quê, nesta altura da vida em que as palavras ficaram presas lá atrás e jamais se vão soltar ?!
Quem sabe um dia se soltem, como aquele combóio que, chegados à gare, já só vimos sumir na curva, lentamente ...
Acredito que quando não se sabe fazer melhor, passa-se adiante a imperfeição do que sabíamos.  Eternizam-se as faltas, os silêncios, os vazios.
O raio das palavras colaram-se como visco, na garganta, e os braços penduraram-se ao longo do corpo, inertes, incapazes, teimosamente incapazes ... sem serventia ...
E o tempo passou.  E as gerações andaram no tempo.  Adiante ...
Os colos arrefeceram de esperar, e os gestos pararam nas mãos ... paradas também.

Quando lhes desviámos a franja dos olhos ?  Quando nos falámos com tempo, com o tempo dos afectos esquecidos ? Quando gargalhámos de vontade ?
De repente a vida silenciou-nos.  Estranhou-nos.  Tornou-nos caramujos em conchas cada vez mais prisioneiras e cerradas.  A vida policiou-nos sem piedade.  E desabituámos o gesto, a linguagem, os jeitos.  Deixámos de saber fazer.  Houve um dia que deixámos de saber fazer ...
Não sei quando foi, mas foi !  Dobrou-se uma esquina insuspeita, de incapacidade, de sentido, de significado, que nunca mais conseguimos dobrar.
Ficámos de repente crescidos, demasiado adultos, sérios ... desconhecidos.   Foi quando receámos que entrar pelo quarto no aconchego da cabeceira, pudesse parecer piegas, talvez descabido já ... talvez forçado já ...

E se calhar não era nada disso.  Se calhar, eu ansiava por entrar, compor a volta do lençol, fazer aquele afago ... elas fazendo-se dormidas, talvez esperassem aquele último boa noite silencioso ... o até amanhã ... a certeza do nosso bem querer  ...
Mas creio que fiquei onde estava.  Fui ficando onde estava.  Não soube fazê-lo.  Por medo.  Acho que era por medo ... que se enfadassem, se incomodassem ... se percebessem grandes demais ... e já não houvesse espaço nas vidas ...
Não sei.

E o nó apertou-se até hoje, na garganta.  O peito reclama, doído.  Por que diabo havia de ter sido assim ?!

E pronto ... depois do depois, nunca mais houve outro depois ...
Perdemo-nos por aí.  Dispensámo-nos.  Talvez tivéssemos procurado outros colos, outras almofadas, outros braços que acalentassem.  Como se pôde.  Cada uma, como pôde.
Mas ficou a ferida, o buraco, o vazio, a distância, a frustração de não ter percebido que a vida se nos estava a escoar por entre os dedos.  A estranheza.  Ficou-nos a incompreensão inesperada da linguagem.  Ficou-nos o desconhecimento de já não nos conhecermos.  Ficou-nos a raiva de não entendermos  que então, ainda era tempo ...

Hoje, já não é tempo.  Tempo de recuperarmos o que foi.
Os degraus foram-se descendo.  Os terrenos ficaram baldios porque a sementeira perdeu a estação.
O doce dos frutos não apurou ... Afinal, não soubemos conversar as flores no caule ...

Ela chegou de viagem.  Uma semana longe.
Perguntei ... já mataste as saudades dos teus filhos ?
Do outro lado de um telefone silencioso ainda, ouvi ... oh... parecia que nos tínhamos separado de véspera.  Um beijo de fugida e pronto.  Salvou-se o mais novo.  Os onze anos ainda não lhe tiraram a ingenuidade, a importância do valer a pena ... Ou então, esse recusa crescer e aceitar as muralhas da vida ...

Ocorreu-me que havia de lhe dizer ...

Anamar

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