domingo, 3 de março de 2019

" SOLILÓQUIO NA MATA "





A melhor aproximação que consegui  à  Natureza ( eu, que vivo no betão, como já disse vezes demais ), é a caminhada que faço pelo meio da mata.
A mata, a bem dizer, é só uma matazinha que remata o concelho de Sintra, aqui nas imediações da Amadora.  Delimita os terrenos de um e outro lado, e por isso é desfrutada pelos munícipes de ambos os concelhos.
Em dias como os de hoje, em que a chuva anunciada pela meteorologia do meu telemóvel deu lugar afinal, a mais um dia de céu azul, sol claro e brisa primaveril, poder caminhar na mata, sente-se como uma bênção, privilégio de estar vivo.
Nesta altura do ano e com uma Primavera que se anuncia por antecipação notória, fruto das temperaturas elevadas que se têm feito sentir, a mata é particularmente convidativa.  O verde é mais radioso do que nunca, a vegetação despida começa a ostentar borbotos promissores pelos caules acima, flores modestas eclodiram por todo o lado, os pássaros, porque já é Março, mês de acasalamentos, trinam, gorjeiam e mostram-se saltitantes de galho em galho, as borboletas rodopiam pelas corolas e os zumbidos das abelhas soam e fazem-me sorrir ...  A  Natureza, uma vez mais não nos defrauda, e o seu ciclo de vida repete-se generoso, sempre !...
Afinal ela é uma permanente jarra de flores frescas ... quando umas morrem nascem outras ... quando não é época dos jacarandás, é tempo das mimosas ... se as madressilvas  não perfumam ainda, as glicínias inebriam ...Nunca a nossa casa deixa de estar florida !
A brisa, nem de mais nem de menos, mais afaga e acaricia do que incomoda.

E depois há o silêncio.  Silêncio daqueles ruídos perturbadores e desagradáveis, que os humanos causam ... as vozes, os carros, as máquinas ... tudo quanto nos agrada dispensar nestas circunstâncias.
E há quase ausência total de gente. Lá se encontra um ou outro, correndo, passeando os cães, ou simplesmente usufruindo do remanso e do ar puro que a mata oferece. Mas poucos ...
E há gatos sem dono que por ali vivem, certamente na maior felicidade do mundo.  Almas caridosas deixam-lhes comida e água, e depois eles têm a pradaria à volta, toda por sua conta.  Têm na dieta os roedores, rastejantes e voadores que por lá proliferam e que lhes desafiam os ímpetos felinos da caça.
Devem ser felizes, gerindo a sua vida livre e despreocupada !

E no silêncio que se "ouve", estou eu comigo mesma, nos monólogos surdos ou mesmo nos monólogos a meia voz, porque não há objectivamente nenhum perigo de me acharem tonta por falar sozinha ...

Hoje, eu pensava como a vida se revela  uma surpresa constante.  É uma história nunca terminada, com voltas e curvas, e esquinas e cotovelos que sempre escondem em jeito de caixinha de surpresas, o que vem adiante ...
O segredo é "bebê-la" aos poucos e poucos, em pequenas doses, sem afobações ou exigências.  Sem expectativas ou ansiedade.   Apenas recebendo-a tal qual nos chega.  E esgotando-a sempre, para que nunca possamos lembrar com lamentação que o não fizemos.
Estou numa fase da vida em que os grandes sonhos já foram sonhados, e concretizados ou não.
Uma fase em que procuro simplesmente viver, momento a momento, com a paz possível, com a percepção clara de que raramente o idealizado se atinge ... como o idealizámos.  Seja connosco, seja com os que nos rodeiam.
E assim, é grato relembrar o que foi, se nos aqueceu o coração.  E não deixar que o que não foi, nos azede a alma  e contamine o espírito.  Tudo foi o que tinha que ser e não mais do que o que tinha que ser.  E não adianta rebelarmo-nos contra essa entidade abstracta que é o destino !
Por isso, tomo-o como colheradas de um xarope cicatrizante, curativo e regenerador.  Sem utopias ou veleidades extemporâneas.
Percebo que deverei andar, se não posso correr.  Que deverei sorrir se não consigo gargalhar.  Que deverei tentar estar bem com o que tenho ... com o que vou tendo.
Porque tenho muito, sem dúvida.  Vou acordando todas as manhãs, vendo com os meus olhos, ouvindo com os meus ouvidos e andando ... caminhando com as minhas próprias pernas, gerindo-as, seja lá qual for o ritmo.
O tempo, agora, é o meu tempo, e devo aceitá-lo como ele é.
Os sonhos, agora, já não são grandes metragens.  Já não me sufocam a garganta ou aceleram o peito, além da conta.  Já não podem vestir-se de utopias inalcançáveis.  São amenos, serenos, lúcidos e dimensionados.  São chuvas frescas no Verão, ou quietude de sombra em canícula castigadora. E por isso devem adoçar-me o coração.  E não, magoar-me o espírito.

E isto será o equilíbrio.  O equilíbrio possível, sem deslumbramentos, presunções ou alienações ...
Isto será  a vida possível, quando o sol talvez  já demande o ocaso ...

Anamar













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