segunda-feira, 25 de março de 2019

" UMA FRESTA NO CAMINHO "




A " menina Ofélia " zurrava no pasto, em jeito de cumprimento ... Há quanto tempo eu não escutava a linguagem dos burros, à distância de uns metros de terra verdejante ?!...
Lá longe, naquele silêncio absoluto, apenas cães ladravam em algum monte próximo.  A brisa soprava leve e o céu era um deslumbramento só.  Totalmente limpo e escurecido pela ausência de luzes próximas, exibia uma poalha estelar com todas as constelações bem visíveis ...
Há quanto tempo  também, eu não admirava a maravilha que é um céu estrelado, sem horizonte que o limite ?!
E no firmamento uma super-lua arrogava-se, altaneira, dona da noite !
Era Alentejo, era o silêncio aconchegante de um chão que logo se assinala como nosso ... era a terra a amarinhar pelas veias que levam directo ao coração !...

Sendo finais de Março, com uma Primavera acabadinha de chegar, a temperatura mais lembrava um Verão quase a pino, com dias generosos, de céu azul, de sol luminoso e excessivamente quentes.
Os campos verdejantes, douram-se encosta acima, pelo amarelo do tremoço, agora em floração, mas também pintalgados pelo colorido de todas as flores que crescem por conta e risco.  São as macelas, os malmequeres, as rosas bravas, as estevas e os pampilhos brancos, os lírios roxos, as alcachofras e o rosmaninho ... é a urze, as papoilas, a dedaleira ... já  que  as  giestas  aguardam  o  mês  que  também as  nomeia , o  Maio,  para  se  abrirem  ao  sol ...
As cegonhas empoleiram-se a desníveis, pelos postes de alta tensão.  E são verdadeiras comunidades, as que vemos e ouvimos encarrapitadas nos ninhos.

O mar não está longe, embora dali ainda não se pressinta.  Haveria de vê-lo, mais tarde, numa romagem a memórias de infância e juventude.
E como foi gratificante e ao mesmo tempo surpreendente, revisitar lugares que o tempo não macula, uma vez desenhados na mente e no coração !
Apenas, muitos desses lugares, ou quase todos esses lugares já somente guardam, lapidadas nas ruas, nas igrejas, nas calçadas ... nos rochedos e areias ... nas ondas, no verde e azul das águas,  as memórias, somente as memórias, as quais têm a dimensão do que éramos então, do que vivíamos então, do  tamanho dos sonhos que dimensionávamos então ...

Vila Nova de Milfontes, do tempo das ruas sem luz, em que o Mira espelhava no prateado das águas mansas, a magia do céu estrelado também, no passeio nocturno ao ancoradouro dos botes para as Furnas ...
A Barbacã, mirando o outro lado ... "Rio Mira vai cheio e o barco não anda ... tenho o meu amor lá na outra banda ... Lá na outra banda e eu cá deste lado ... Rio Mira vai cheio e o barco parado " ...
A banda para onde se atravessava em barquinho a gasolina, pés chapinhando na água fresca e cabelos em desalinho ... buscando mar a sério, com ondas com vergonha na cara, e não aquela pasmaceira de águas fluviais, preguiçosas e sonolentas ... cá deste lado ...
As dunas, bem lá no cimo, onde uma rotunda maldosa, desenhou o apagão das nossas lembranças ... Eram dunas alterosas que demarcavam fronteira entre a praia da Vila e as praias do oceano, e que eram pistas de deleite, no rebolar encosta abaixo, quando as gargalhadas eram soltas e a despreocupação das vidas tinha o tamanho dos anos que detínhamos ...

"Era aqui ... do que me lembro, acho que só podia ser aqui "....
E para onde foi tudo ... mais de cinquenta anos depois ?..."
O coração aperta, a garganta emudece ... uma espécie de silêncio quase religioso medeia entre o hoje e o ontem, entre nós e todos os que já foram e pertenciam àquele retrato que perdeu o colorido e só mantém a patine dos tempos.  Sensação estranha ...

Anos adiante, a Ilha do Pessegueiro desenha-se no horizonte.
Porto Covo fala-me de outra fase da vida.  Já então com filhas na barra da saia, tempos despreocupados, ainda assim.  Muitos amigos, quase duas dúzias, dividindo as conversas, os risos, os banhos e os passeios na rebentação ... as brincadeiras, as cantorias, as lancheiras também ... as sombras dos mesmos chapéus, as futeboladas nas areias quase desertas, até as sestas, em dias inteiros de praia ...
Partilha de amizade, de cumplicidades, de companheirismo ... Criançada na partilha dos baldes, das pás, das conchas catadas na maré baixa ...
A Praia dos Búzios, a Praia Grande ... ou a preferida sempre ... a da Samoqueira, com os fios de água fresca despencando falésia abaixo, no simulacro de chuveiro de água doce, ou de fonte ali à mão, pronta a encher os baldes da pequenada ...
Continuam a correr ao ritmo dos tempos, ao ritmo das vidas ... mais ou menos intocados !
O "31" ainda mantém o nome.  No "Quadrado", como era conhecida a Praça Marquês de Pombal, ex-libris da vila, lá se mantém, mesmo ao lado da igreja, o bar que na altura era o único ponto de diversão nocturna, na calmaria do povoado.
Não pude deixar de esboçar um sorriso para dentro de mim.  Como eram doces todas aquelas lembranças !...

E pronto ... fui até ali, junto da paliçada,  corresponder ao cumprimento.  A "menina Ofélia", simpática e deferente,  honra, sem dúvida, os burros de quatro patas !
Até à volta ...



Anamar

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