domingo, 20 de dezembro de 2020

" DIZ-LHES QUE ESTÁ TUDO BEM ... " - NATAL 2020




Hoje a minha gaivota rasou-me a janela.  
Senti-me surpresa primeiro, privilegiada depois, acabando por sorrir logo de seguida !...
E eu sei lá que gaivota era esta ?!...  Certamente uma, mais ousada, das que planam aqui por cima, sobretudo em dias como o de hoje, em que a escuridão que pincela o céu, é garante de borrasca no litoral ... lá por onde elas fazem vida.  Assim, nada como recuar até zonas onde, à falta do peixe que lhes integra o cardápio, sempre haver lixos urbanos que lhes interessem ...

Faz tempo, muito tempo já, a "minha gaivota" era uma personagem mítica nas narrativas da minha vida.  Era uma figura onírica das histórias do meu dia a dia.  Era o meu "pombo-correio" entre a realidade desinteressante do betão desalinhado e agressivo da cidade desconjuntada onde vivo, e a doçura sonhadora das arribas, das falésias altaneiras, varandins de águas azuis, verdes ou prateadas, sonhadas e sabidas além do cocuruto daquela serra que me divide o caminho entre o cá e o lá ...
Eram as suas asas distendidas na aragem, as estafetas da minha ânsia de paz, de liberdade e de sonho.  Seguindo-a no espreguiçamento aqui nos meus céus, eu deixava que esses sentidos mais absolutos, me tomassem e me fossem levando para paragens impressas dentro de mim, cantos recônditos de memórias vividas, nichos de sonhos sonhados em vidas que foram minhas ...
Depois, os tempos foram indo, e eu penso ter perdido muito da ingenuidade que acalentava o meu ser.
Hoje sou alguém endurecido, amargo, frio demais, pragmático além da conta,  a quem a capacidade de sonhar foi amputada, deixando a minha alma com um pedaço a menos ... deixando o meu coração mais incompleto e imperfeito  ...

Hoje, os tempos que se vivem entristecem-me e desolam-me.  O coração pesa-me e as lágrimas que quase nunca escorrem, têm o caudal de uma torrente incontida que me oprime o peito e me tira o ar.
Choro pelas minhas mágoas e pelas mágoas do mundo.  
Estamos a quatro dias de mais um Natal.  Um Natal absurdo, irreconhecível, mascarado de felicidade não vivida, mascarado da normalidade possível  de um jogo de gato e rato, onde os afectos são sabidos além do monitor dos telemóveis, onde as emoções galgam as distâncias nas franjas da brisa que vai passando, e o nó na garganta se disfarça por detrás de um sorriso fingido de aceitação do inaceitável ... Afinal, chegámos a mais um Natal,  e ninguém nos avisara há apenas um ano, que muitos não iriam ter essa sorte !

Hoje, como habitualmente, neste novo caminho de Inverno, na caminhada pela manhã passei frente ao portão lateral de uma residência sénior ... um lar, como "soi dizer-se".
É um portão de grades, sempre fechado, no espaço ajardinado que rodeia os edifícios propriamente ditos, dos alojamentos dos idosos. 
Nunca ali vira ninguém, dado não se tratar da entrada principal.
Hoje, dentro do espaço institucional estava junto ao portão uma senhora, cabelo totalmente branquinho, pantufas nos pés e um xailinho pelas costas, que a protegia da aragem fresca que corria, apesar de um promissor dia solarengo. 
De fora, na rua, junto ao portão também, estava uma jovem que passeava um cão. 
Percebi serem familiares. Talvez fosse uma neta daquela senhora de rosto pregueado e olhar entristecido.  Talvez fosse um raio de sol que tivesse descido sobre o rosto da idosa, momentaneamente iluminado ... talvez fosse um pedaço de azul num céu escurecido há tempo demais ...
A "neta" - vou chamar-lhe assim - fotografava-a compulsivamente com um telemóvel, como se quisesse eternizar o momento ... como se ele se estivesse a tornar único, singular, último ... quem sabe ...
"Está tudo bem"- dizia a velhinha. E rodopiava ... uma, duas voltinhas em torno de si mesma, na preocupação de dar veracidade ao que afirmava.  "Estou bem, sim ... " repetia.  Mas só o olhar triste a traía.  Esse, continuava baço, apagado, falsamente feliz ...
"Dá beijinhos ao meu neto ... e ao meu bisneto também ... que eu agora tenho um !...  Diz-lhes que está tudo bem !"

Apenas as grades do portão as separavam ... mas era todo um mundo de solidão e dor que se interpunha, era toda uma vida a escorrer lembranças idas, era um gotejar de silêncios pingando de um coração que talvez ainda sonhasse ... seria ?!...

Segui o meu caminho, com passo estugado, e um pedregulho ainda mais pesado dentro do peito.  Olhei para trás, duas ... três vezes ...
Junto ao portão já não estava ninguém ...

"Diz-lhes ... está tudo bem !... Eu agora tenho um bisneto ... Diz-lhes !..."

E mil fotografias que terão ficado a marcar mais um Natal de desesperança, dor e solidão !...


Anamar

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