domingo, 13 de dezembro de 2020

" LAREIRAS ... "

 




Hoje estou de lágrima fácil.

É um daqueles dias em que elas se achegam sem pedir licença, por isto mas também por aquilo.  Por tudo mas também por nada.  Dia de nó grudado na garganta, em que o peito espremido pesa e aperta ... dia de um céu carrasco aqui mesmo por cima, sem chance de clarear.

Esta altura do ano, estes dias que se vivem perto do Natal, já por si, em situação normal sempre nos mexem.  Este ano, por todas as razões, parecem dias definitivos !
São sensações estranhas, as que vivencio.  A incerteza, a angústia e o medo, são palavras gastas a povoarem diariamente as nossas vidas.  Gastas de serem ditas ... gastas de serem pensadas ... gastas de serem sentidas ...
É como se tudo se percebesse mais precário do que nunca, como se tudo se sentisse mais debilmente seguro do que nunca, mais frágil do que nunca !
É um período inevitavelmente pressentido como de encerramentos, de revisão, de balanço.  É um fecho de ano, é um fecho de ciclo, é também um fecho de vida ... de mais uma fatia de vida vivida.

Estou junto à lareira.  Estou só, ou melhor, estou povoada apenas pelos meus, e pelos meus pensamentos.
O silêncio crepitante da lenha que arde, o bruxulear das chamas que desenham fantasminhas na escuridão da chaminé, e o vai-vem do fogo que dança como quer, é alguma coisa tão introspectiva e minha, que não permite intrusão ou devassa.
Comparo-o ao chega e parte das ondas nos areais desertos, incontidas e indómitas.
Comparo-o ao balanço ondulante das searas maduras nos campos da minha terra, quando o braseiro silencia e aquieta a vida, como berço embalado para a sesta ...
A lareira tem esta magia de me adormentar o olhar, de me acalmar o corpo e de me deixar a mente e o coração soltos e livres, pássaros vagueantes fora deste mundo ...

Tive várias lareiras na minha vida.
Umas, falam-me. Outras, não.  Umas têm histórias que me contam, outras só me aquecem e iluminam.

A lareira da minha infância, de ponta a ponta, naquela chaminé de fundo de cozinha, com as paredes de metro, com o fumeiro dependurado em estendal bem por cima das nossas cabeças, com a cadeira de buinho juntinho ao madeiro, para que o meu pai trabalhasse nos dias de férias natalícias, lá ficou naquele Alentejo de antanho ...
Será  que  ainda  existe, naquela  casa  onde  já  só  vagueiam  os  tantos  que  por  lá  passaram ?!...
Foi a lareira primordial. A lareira regaço, colo e sonho ... Guardou em si o conceito de família  mais próximo, que alguma vez tive ...
Foi a lareira que só me ficou na memória, mas que ainda não me trazia memórias, porque eu as não tinha, as não podia ter, já que elas são apenas as pegadas dos anos que vivemos.  E então, eu ainda não tinha anos suficientes vividos ...

Depois, houve a lareira mais à frente ... lareira de serões na Beira, que se estendiam pela noite dentro, quando  todos  já  dormiam,  e  apenas  eu  velava  pelas  últimas  brasas  do  luzeiro ...
Era uma lareira tão minha, aquela !...
Era um tempo de muito silêncio, de muita solidão, em que nas chamas que dançavam frente aos meus olhos, desfilava vezes sem conta todo o filme da minha vida.
Todos já dormiam, a sala semi-obscurecida, recebia  quase só a luz e o calor intimistas daquela paz que se sentia ... As horas passavam e a vida ia-se fazendo ...

Houve depois outras lareiras.  Essas, contam-me até hoje, histórias muito bonitas da minha História ...
Aplacaram o frio não sentido, das madrugadas gélidas do Gerês, de Monsanto, de Monsaraz, de Marvão ... de Évora ... Iluminaram rostos afogueados pelo calor que irradiavam, e pelo calor que os corpos e os corações irradiavam também.
Eram lareiras cúmplices, silenciosas e ouvintes.  Eram lareiras-testemunho. Narravam contos de paz e esperanças, sonhos sonhados entre as ginjas quentes de Óbidos e um bom tinto de Geia ...
Foram lareiras idas, mas lareiras omnipresentes...
Basta fechar os olhos, e elas estão lá, nos mínimos detalhes, nas palavras que se soltaram, no cutucar das brasas que não ousavam apagar-se ...
Lareiras de dias felizes, de frio transformado em ondas tórridas de calores promitentes ... Lareiras que afinal o tempo apagou e que a vida ousou levar para longe.  Lareiras extintas.  Que já não existem ... 

Nem eu  sequer tenho a certeza que algum dia elas me aqueceram a alma !!!

Anamar

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