terça-feira, 8 de dezembro de 2020

" SÓ O TEMPO ... "




Voltou a apetecer-me ouvir Enya, imperiosamente.
Companheira foi de muitas tardes intermináveis, entre letras, telhados, céu e gaivotas dispersas na aragem ... entre paredes de um quarto deserto e silencioso, pensamentos e memórias, quando eram estas que acompanhavam os meus dias e me perseguiam dormindo comigo na mesma cama ...
Há tempos que a não escutava, que não ouvia nostalgicamente o timbre celestial da sua voz.  Há tempos que me não deixava ir indo, na aragem dos fins de dia, entre meio aos pingos de chuva tamborilando na vidraça, solta e livre como os pássaros que rasam a visão dos meus olhos, ou seguem sem rumo aos horizontes de uma serra que não diviso, mas só adivinho na linha do firmamento distante.

Mas é quase Natal, as temperaturas desceram, o céu escureceu e o desconforto envolve-nos.  O vento ruma pra longe as últimas folhas do plátano, que se despe de dia para dia.  Os tons são agora doces, intimistas, quentes ... São cores de solidão, de silêncios, de lembranças ...
São tristes estes dias. À nossa volta tudo pesa, tudo nos carrega de penumbras, cansaços e angústias.
Tempos difíceis estes que atravessamos, mais de morte que de vida.
Hoje, dia do feriado religioso da Imaculada Conceição ... o "meu" dia da Mãe de toda a vida.  Dia dos primeiros cartõezinhos, dos primeiros rabiscos em desenhos sigilosos para se tornarem surpresa no dia seguinte.  As surpresas possíveis, à medida das nossas idades e da ausência de alguns escudos que fossem, nos bolsos de cada um ... 
Mas sempre eram recebidos com a emoção de uma lagriminha que escorria no rosto da minha mãe, enquanto me sentava no colo e me beijava ...
Hoje, graças ao Estado de Emergência que se vive, continuamos confinados sem possibilidade de circulação desde as três da tarde às cinco da manhã.  Depois de novo, da uma da tarde às cinco ... e assim, dia após dia, num forcing desesperante de redução de número de infectados, de doentes em intensivos e óbitos ... para que o SNS não sucumba e para que daqui a uns dias se possa fingir que é de novo Natal !!!

Hoje, se não há neve lá fora, enganam-me. Porque sinto o frio gélido do desconforto das perdas, aqui, bem pertinho do meu coração.
Perdas de ausências ausentes, e perdas de ausências presentes.
Os dias que se vivem levam pra longe tudo e todos, como o vento que sopra além da janela.  Arrastam de nós, muitos daqueles que compunham a nossa existência ... As pessoas não se vêem, não se encontram ... não se sabem ...
Que será feito de ... ?  Morreu ?  Adoeceu ?  Foi p'ra longe, p'ra destinos mais seguros ?  Auto-exilou-se ?  Está a viver ?  Está a sobreviver ?  Pessoas idosas com quem conversávamos, com quem nos cruzávamos ... casais de que só encontramos um ... a dureza de realidades que nos desfilam à frente !...
Amputação de afectos.  Medos. Jovens engaiolados, numa idade em que as asas lhes crescem e os sonhos florescem ...
O cansaço progride, avança, penetra as paredes, adentra-nos as casas, agiganta-nos o silêncio, entrecortado às vezes pelo sinal das notificações do telemóvel que já nem vontade temos de visualizar, responder, ler ...

Temos as "pilhas" no fim.  Temos gasto o manancial de bonomia, de esperança, de paciência.  Já mal nos suportamos, temos a contemporização e a tolerância nos limites, estamos intempestivos e quase explosivos com tudo e com todos os que nos cercam ... Eu, sinto-me assim, e sinto a minha saúde mental perigando, pois o abandono, o isolamento, a indiferença e o encolher de ombros que me tomam, como se pouco já interessasse o que quer que seja, são formas de uma fragilidade emocional e de um desequilíbrio psicológico preocupantes ...
Cada vez mais, busco o isolamento, o silêncio, a introspecção, como se eles fossem uma capa de chuva que vestida, se me colou no coração e não ouso despir nunca mais !...

Lá fora chove.  O céu escureceu e fez-se noite, apesar de serem apenas pouco mais de cinco horas de uma tarde de desconforto e desalento ...
Até quando ?  Quem sabe ?  Ninguém sabe !  Só o tempo o dirá, só o tempo sempre tem respostas ...
Enya garante-o ... "Only time" ...  

... se ainda por aqui estivermos ...

Anamar

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