Estes tempos deixam-nos assim ... lamechas, sensíveis, angustiados, assustados ... aterrorizados mesmo.
Percebendo mais do que nunca, a precariedade de cada dia que atravessamos, percebendo a sorte que é amanhecê-lo, percebendo a incertitude dos tempos que enfrentamos ... questionamos tantas pequenas coisas do dia a dia, que talvez não valorizássemos tão avassaladoramente noutro contexto.
Eu ando assim ... com o equilíbrio precário de quem se sente num arame sem nenhuma rede por debaixo. Com a angústia de quem sente a vida devassada, atropelada, invadida, sem que me fosse pedida autorização para isso ...
Estava eu aqui tão calmamente a viver a minha vidinha, a fazer os meus planos com a exigência de quem os sabe inevitavelmente já só a curto prazo ... a regar os sonhos, dia após dia ( porque os sonhos nunca morrem ... ), a congeminar uma existência previsível, expectável, sem grandes dramas ou euforias ... sem inventar passos maiores que a perna ... e patati e patata ... e de repente vira-se-me o mundo de pernas para o ar, percebo que previsões só no final do jogo, e que verdades insofismáveis já não existem ... e desmonto-me toda, desarticulo as emoções, percebo-me um nadica de coisa nenhuma, neste jogo de cartas totalmente viciadas ...
E assim vão os dias ...
Todos a fazermos de conta que vivemos. O ano a fazer de conta que existiu ... e todo o ser humano a fazer de conta que o vai riscar e esquecer na sua existência !...
E tudo isso é mentira !
Dezembro caminha a passos largos para o fechar das portas, a 17 de Novembro contabilizou um ano o primeiro caso de Covid 19 no planeta, em Wuhan, na China ... e entretanto milhares e milhares de pessoas que jamais o conjeturariam, fecharam por esse mundo fora, o livro das suas vidas !
Fui fazer a caminhada, sentindo dentro de mim uma gratidão à Vida por mais um dia ter permitido que eu pudesse contemplar o azul de um céu esplendorosamente radioso, de um Outono doce e aconchegante.
Pensei não descer à mata, porque pelas chuvas que têm caído, os caminhos enlameados ficam com um piso escorregadio e por isso menos seguro. Mas eu adoro aquele espaço. Ele renova-me a alma, vitamina-me, injecta-me o oxigénio de uma natureza genuína, e reencontra-me comigo mesma, nos pensamentos, nas emoções e nos monólogos que comigo estabeleço ... E fui.
Dobrei esquinas e veredas, espreitei um sol límpido e senti uma brisa suave a envolver-me ...
Gente, pouca ... quase ninguém pelos caminhos da mata.
Um homem corria em sentido inverso ao meu, que caminhava. Cabelo branco, despenteado, afogueado ... tudo normal p'ra quem pratica exercício físico. Cruzou-me, e apesar de ambos nos afastarmos, pareceu-me ouvir o meu nome ... Margarida Porto ( o nome por que era conhecida no liceu ). Estaquei, voltei-me e disse: "Desculpe, não percebi o que o senhor disse ..."
"João .... !!!" - era o Narra, meu colega de Matemática, meu ex-aluno há muitos, muitos anos ! O João Narra, aquele puto sempre ligado à corrente, sempre afogueado, sempre com ar inocentemente maroto, vivaço, interessado, bom aluno ...
O Narra foi dos primórdios da minha docência. Terá cinquenta e alguns anos, suponho.
"Oh João ... está tudo bem contigo ? Não te conheci, desculpa ... "
Segundos, foi o tempo do sorriso se escancarar ... segundos, o tempo que levei a recuar lá atrás ... segundos, o tempo da emoção me tomar, e dos olhos se humedecerem ...
Não deu sequer tempo de lhe dizer : " Gostei tanto, João ! Gostei mesmo muito de te rever ! "
Acho que não deu tempo !...
Estes tempos deixam-me assim ... lamechas, sensível ... agarrando com as duas mãos estes pequenos pedacinhos de felicidade, estes lampejos de alegria ... estas vivências inesperadas e quentinhas nos nossos corações tão atormentados!...
Ainda bem que desci à mata !...
Anamar
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