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quinta-feira, 11 de agosto de 2022

" O SOL QUE ME FALTA ..."


 

Escrevo muito pouco, muito menos e  muito pior .  E sei exactamente o porquê disso.

Percebo-o claramente, quando me leio há anos recuados.
Não que eu não tenha o que dizer, não que eu tenha deixado exactamente de "sentir", não que eu desvalorize as minhas ideias ... Que, contudo, sempre foram muito mais direccionadas para o sonho, para a utopia, para as construções imaginárias criadas dentro de mim do que para a dureza da vida real, verdade seja ( essa, bastava-me olhá-la, afinal ... porque estava sempre ali à minha volta, se para lá eu  desviasse os olhos ... )
Talvez assim fosse, por defesa, talvez como necessidade, talvez simplesmente por pureza de alma.

É que, e essa a diferença abissal entre o que era e o que é, a minha disponibilidade para a emoção tem vindo a embotar-se com o transcurso da vida.  A minha capacidade de sonhar, de pintalgar a realidade com as cores generosas de outros tempos, entrou em franco declínio, como se a minha "caixa de aguarelas" tivesse secado.
A minha necessidade permanente de paixão e deslumbramento pelo que me rodeia, está asténica, carece de vitaminas no espírito e no coração ... e o amorfismo que caracteriza hoje a minha visão da vida, o cinzentismo até com que avalio o que me cerca,  retira-me a capacidade, a vontade e até a aposta de pôr no papel o tanto com que dantes eu lotava a alma ... Como se o clímax orgástico da escrita me tivesse abandonado !
Como se a minha ingenuidade de criança, aquela capacidade fantástica com que conseguimos tão facilmente abraçar o mundo na concha do nosso peito, se tivessem extinguido.  Como se a bonomia e a fé com que olhava as coisas, os espaços, os outros, tivessem estiolado e morrido inevitavelmente, como terreno devastado pelo fogo.

Sinto uma "falta de espaço interior", um vazio ( não sei se consigo traduzir fielmente o que isto seja ), uma falta de compaixão, de tolerância, um excesso de indiferença e um desaprendizado do enamoramento, do êxtase, e da aposta necessários à vida.
Não sei se existe um desencantamento objectivo, uma desilusão perante o caminho que percorro.  Não creio ser  propriamente consequência de insucessos, tropeços ou decepções, este meu estado de espírito.  Não são cicatrizes re-inflamadas, ou maleitas crónicas, não sei se é impaciência ou até egoísmo, talvez. Não creio que sejam problemas mal ou incompletamente resolvidos, embora afinal todos carreguemos um pouco disso mesmo, fruto dos destinos.  Não sei se é um cepticismo ou uma desaposta, como se já não valesse muito a pena enfrentar esta roda dentada e voraz que dia a dia nos vai engolindo.  
Não sei se aceite que é simplesmente a inevitabilidade do envelhecimento ... Será ??!!

A garra, a inconsequência, a gaiatice ... a irreverência, o atrevimento, a coragem ... o desafio e a força de agarrar a vida pelos cornos, sabendo que essa era a nossa escolha ... o meter a cara, o saltar a baia, o pular do rochedo  ( mesmo que de olhos fechados ) ... a utopia em suma, o seguir em frente achando que vale a pena, lutando para que valha a pena ... parecem ter-se perdido no tempo, sucumbido ao acomodamento dos anos ... a um cansaço que por vezes julgo absurdo.
E são determinantes da vida.  E são o oxigènio para se continuar respirando.  E são a poção mágica para se conseguir ainda manter o emaravilhamento, a força p'ra começar o dia por cada dia que amanhece, a receita pra se perceber o real valor de se estar vivo.
É essa lufada de esperança, esse sopro vital, esse cocktail vitamínico  ... essa chama de vela bruxuleante que parecem ter-me abandonado e deixado à minha sorte ...
E sinto uma raiva, uma fúria e um desgosto por não conseguir sacudir as penas e voar de novo, como aquela ave que se refrescou numa poça de chuva ... como se o afundamento no lodo sôfrego dum pântano fosse inevitável e me sorvesse para o seu interior sem que eu resista ... ou como se a cerração das "nieblas" fosse a armadilha que a vida me deixou na curva da estrada ... 

E não escrevo ... escrevo pouco e muito pior ...

Talvez se trate simplesmente de não possuir em mim a convicção de Picasso, a força anímica e o virtuosismo dos génios e sonhadores ... e me tenha remetido simplesmente à vulgar, comum e insípida "mancha amarela" !...
 


Anamar

sexta-feira, 13 de maio de 2022

" AS MÃOS "



Como sempre as minhas caminhadas pela mata, no meio do silêncio e da natureza, são momentos de introspecção, são oportunidades de, do nada e por nada em especial,  ir desfiando pensamentos avulsos que obviamente não têm que obedecer a razões, a lógicas ou a motivações especiais.
Vêm porque sim, perseguindo por certo algum impulso interior que não consciencializo ou descodifico.

Entretanto a mata, nesta Primavera instalada, fulgurante em todas as suas fascinantes manifestações, envolve-me docemente com uma natureza que esbanja beleza a rodos.  
O verde de tons diversos em cada planta, em cada árvore ou arbusto, o colorido de todas as flores que assomam em cada trilho ... flores não plantadas, não semeadas, apenas oferecidas pela generosidade da vida ... e os trinados de todos os pássaros que, de criação já independente, saltitam de galho em galho, em "conversas" de tons e "assuntos" diversos, fazem-me sorrir, extasiada que fico, a ponto de emudecer por falta de argumentação, veia ou vocabulário que os descrevessem ...
A perfeição, a harmonia,  a  ordem  são de tal forma inquestionáveis, que  talvez só o silêncio mesmo, as possam traduzir com eloquência !!!

Entretanto um ano transcorrido, já há de novo patos bravos nos dois tanques da mata.  Duas famílias de crias bem pequeninas ainda, nadam sob supervisão das progenitoras, no meio dos juncos, descontraídas e felizes !
A mata, como já contei por aí, é propriedade do Estado,  adstrita ao Regimento de Artilharia Antiaérea de Queluz, é portanto uma zona militar, disponibilizada ainda assim como zona de lazer e de prática de desportos da população de Queluz e Amadora. Situando-se na fronteira entre as duas cidades, é um pequeno pulmão verde , ao serviço destas duas comunidades.  
Ela é uma extensão do  Palácio Nacional de Queluz, que está ligado às vivências de três gerações da Coroa Portuguesa .
Este palácio, do século XVIII em estilo rococó, foi concebido como retiro de Verão de D.Pedro de Bragança, que se tornaria marido e rei consorte da sua sobrinha a rainha D.Maria I.
Depois da destruição pelo fogo do Palácio da Ajuda no século XVIII, tornou-se então residência oficial do príncipe regente D.João VI e da sua família, até que a mesma viajou para o Brasil em 1807, após a invasão de Portugal pelos franceses.
Veio posteriormente a ser um discreto local de encarceramento para a Rainha D.Maria, que padecia de loucura.

E lembrei-me das mãos ...
As mãos que são seguramente dos órgãos que mais inapelavelmente nos testemunham duma forma implacável, o tempo que já vivemos.  
O pescoço parece que também, mas as mãos, sem dúvida não nos deixam esquecer de nenhuma forma desse percurso.
À Teresa, nos seus cinco anos incompletos, faz muita confusão a flacidez e enrugamento da pele que as cobre.  Sentada no meu colo, com os seus dedos fininhos e minuciosos, olha longamente, apanha entre eles as dobras das preguinhas deste "papel" antigo, perscruta-me o semblante entristecido, acredito, e diz-me : " avó, tu tens as mãos assim, porque já és um bocadinho velhota ..."
E vendo o meu ar penalizado e impotente, sorri e diz-me : " estou a brincar, avó ... "
Bem se vê que a Teresa não alcança a dimensão da coisa ...

Guardo até hoje, com uma nitidez absoluta a imagem das mãos dos meus pais nos seus últimos tempos de vida, pese embora o meu pai já me tenha deixado há trinta anos e a minha mãe há quatro.
Lembro claramente aquelas "folhas de papel" ressequido, onde as pregas se multiplicavam e o azulado das veias serpenteava na transparência.  
Lembro a fragilidade preensiva, lembro a insegurança do gesto, lembro a falta da força no movimento ... lembro a leve e envergonhada tremura, no desânimo de se ostentar algo que já foi forte, robusto, potente, seguro ...  
Como se esses gestos titubeantes e imprecisos, carecessem dum pedido de desculpas, uma explicação para o tíbio movimento que se desenha, uma justificação para que aquela fortaleza, aquele pilar, aquele porto seguro, aquela amarra ... aquele tudo de amparo que tantas vezes nos ergueu do chão, já só fosse um esgar, uma tentativa ... uma desistência !...

São isso as mãos ... São segredos guardados, são histórias contadas, são caminhos trilhados, são memórias vivas ... sangrantes !
São vida ... mesmo quando já são morte anunciada !...

"Avó, tu tens as mãos assim, porque já és um bocadinho velhota !... " - a ingenuidade da boca inocente  duma criança !

Anamar

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

" CATARSE "

 


Dezembro caminha a passos largos para o fim.  Frase repetida neste epílogo de mais trezentos e sessenta e cinco dias, não demora, decorridos.
Se eu me ler, ano após ano nesta época, correrei o risco de me ver repetida em cada página, em cada parágrafo, em cada pensamento ... Consequentemente, em cada estado de alma e em cada sentimento, o que obviamente significa que não consigo melhorar no olhar que deito à vida e ao mundo, ano após ano !
Sempre a nostalgia ... sempre a melancolia ... sempre a exacerbada preocupação e angústia crescente com aquilo a que chamam de "futuro" ...

Noutro dia, no cabeleireiro, local privilegiado e vocacionado para se ouvir de tudo e de todos mesmo sem pedirmos, uma cliente lamentava-se pelo facto de, tendo sido uma pessoa "cheia de vida" como dizia, dinâmica, cheia de vontade, de sonhos e de projectos, quando completou setenta anos a sua vida ter sofrido um volte-face  de cento e oitenta graus.  Parece que o avesso da sua existência relegou o direito da mesma para um inesperado esquecimento ! 
Não sei se há marcos particulares na evolução do ser humano, mas como todas as máquinas, mesmo as mais supimpas, de marcas consagradas, a certa altura, de repente, às vezes sem anúncio prévio, começam a claudicar e a dar sinais de mudança, de grandes mudanças, com frequência.
Parece instalar-se uma desaceleração, um atrito notório entre as "peças", uma dificuldade "respiratória" na engrenagem ... e é aí que estes sinais se tornam assustadores nas mensagens que passam.
E num belo acordar, num belo adormecer, ou em plena luz do dia, de repente percebemos as limitações que de subtis passaram a evidentes, percebemos as dificuldades, o esforço, a desmotivação, a falta de energia ... isto, pressupondo não haver razões mais drásticas para preocupações ...
E é quando a caminha nos aninha com doçura, é quando o calor do édredon nos sabe a útero de mãe outra vez, é quando aquela letargia de não urgência se anuncia ... que percebemos definitivamente que envelhecemos ... Não há mais como negar, não há como escamotear nada ... e o saudável seria encarar este estado de coisas, sem demais mágoas ou angústias !
De que adianta termos pena de nós mesmos, que adianta tentarmos fazer de conta, acharmos que talvez não seja nada disso ... mentalizarmo-nos de que lá no fundo, ainda reside em nós aquela miragem de super-mulher ?!

Poissss .... Não adianta, de facto.  Só que eu não consigo travestir-me do que não sou !
Estou a ter uma postura muito errada, destrutiva e derrotista face à inevitabilidade da vida, sendo que de inteligente, isso nada tem ... eu sei !
Tendo a isolar-me, guardo pouca paciência para o encontro e para o diálogo, o convívio quase sempre me maça.  Não tenho pedalada pra sonhos ou projectos. Já não aposto em nada, quase em nada.  Vivo como que apenas em manutenção ... do que existe, do que tenho, do que constitui a minha vida dia a dia.
Dou por mim a pensar ... "o pavimento está tão feio já ... havia de o substituir ... " E logo a seguir : "ai não.  Já não vale a pena.  Fica até ao fim !" 
Ou : "Roupa nova ?  Pra quê ?  A que tenho chega bem.  Afinal só tenho um corpo e neste momento pouco daqui saio ! "
E oiço a Lena que vibra com pequenas grandes coisas ... a máquina de limpar os vidros ... esta linha de cremes para o rosto ... aquela decoração para a muito longínqua / futura casa de Janas ... E penso : Ela já não vai tirar partido daquilo.  Afinal, os anos que chegam, cada vez menos ajudarão alguém que já se diz cansada, agora, no presente de que dispõe.  
Mas ela não perde o entusiasmo, mantém o foco, não desanima ... é positiva, talvez tenha uma postura construtiva, porque sendo intrinsecamente generosa e disponível, a Lena centra-se pouco em si, sai dela e vive em função dos outros. Não cultiva o paradigma obsessivamente negativo que me destrói !
Deve ser esse o caminho !  Será por aí a solução !
Declino convites, reencontros para um simples café, com pessoas que estiveram muito perto de mim há anos atrás.  Não quero que me vejam hoje.  Não quero que me olhem com aquela comiseração com que constato o declínio em outras pessoas.  Não quero que sorriam com aquela hipocrisia conhecida e digam : "Estás óptima !  O tempo não passa por ti !"... e lá por dentro : " Meu Deus, o que o tempo faz às pessoas !"  - buscando nos arquivos da memória aquela que eu era ... aquela que eu fui !
Não suporto essa dolorida injustiça.  Porque temos que nos degradar, e não partimos de uma vez, quando chegar a hora ?!  Porque temos que ficar decrépitos e oferecer de nós, espectáculos menos dignificantes ?! Porque temos que atravessar a tragédia de nos tornarmos meros simulacros do que fomos ?!

Sou uma revoltada com tudo isto !
E depois penso:  "Ridículo este meu sentir !  Tantas pessoas que só quereriam ter a saúde que pareço deter, sem demais exigências !!  Tanta gente que apenas sobrevive, nesta sociedade feroz que não se compadece, tanta gente que luta desde as madrugadas, em dias que pegam com dias, e em que até para dormir pouco tempo sobra,  gente que trabalha precariamente para subsistir apenas, para assegurar os mínimos do futuro familiar ... Sem demais concessões, sem demais benesses, sem demais gratificações !
E eu a conceder-me direito a privilégios ... como se eu fosse alguém ... como se eu merecesse algum desígnio especial nesta selva diária em que simplesmente passamos nos intervalos da chuva !
Estou a ficar alucinada ... estou mesmo a ficar louca !!!...

Anamar

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

" ESTE MUNDO NÃO É PARA VELHOS ... " - II

 


Pareço resistente a escrever.  Pareço resistente a engrenar outra vez, na normalidade da minha vida.  Porque ela, sem palavras largadas nos papéis que me rodeiam, não é bem a minha vida !
Não sei o que se passa comigo.  Parece haver um desligamento estranho da realidade.  Parece existir um desinvestimento em quase tudo o que me fazia, me fez sentido, me alimentou emocionalmente, ao longo dos tempos.
"Não vale a pena, não tem interesse, não abre janelas, não acrescenta, não inova ... pouco é, além de nada !..." - estes, os pensamentos que me assomam, estes os sentimentos que me invadem, quando penso em escrever ...
E passa hoje, como passou ontem, como passou há uma semana, talvez um mês ... e eu, exactamente no mesmo lugar ...

Estranha, esta sensação de orfandade ! Porque é de orfandade que falo. 
Pareço ter perdido referências, pareço velejar sem vento em águas mortas, pareço ter esquecido a significância do viver. 
Deveria doer.  E não dói.  Apenas corrói, esta incapacidade, este arrastamento rio abaixo, de barco de papel a desfazer-se ... de emoções a mofarem, em sentidos requentados ...
Um imobilismo, um encolher de ombros, uma impassibilidade atroz ... um atordoamento ... uma indiferença ...
E contudo, pareço entupida. Pareço engasgada. Pareço sufocada. Pareço atolada em pântano fétido.
Não estou bem assim, mas não consigo dar um só passo em frente.

Entretanto, o tempo, que quase sempre e levianamente nos habituamos a culpabilizar de tudo, vai decorrendo, pingando a ampulheta dos dias, com uma mornidão exasperante.  Também o tempo parece tolhido, parece amodorrado e parece mesmo adormecido, como as cores mansas e doces da estação que atravessamos.
São cores pachorrentas, são cheiros sem sobressalto, são momentos sem história, como se a vida se tivesse deitado para a sesta. 

O tempo, essa entidade estranha ... culpa do Homem ! Para quê contá-lo ?  Para quê marcá-lo, fraccioná-lo, ansiá-lo, odiá-lo ... esquecê-lo ?! Por que não, vivê-lo, apenas ?!
Os animais não têm "tempo".  Não sabem o que isso é.  Não se afobam, não se apressam, não se adiantam nem atrasam.  Não se angustiam com ele ...
Os meus gatos amanhecem, repetem rituais biológicos, dormem, acordam e recolhem-se se o firmamento já só se ilumina de estrelas.  Não se perguntam por que é assim, se o caminho à frente será longo ou será curto ... se é lento ou lhes foge vertiginosamente.  Não se perguntam se dispõem de muitos ou poucos aniversários ainda ... porque já isso pertence à contabilidade dos humanos.
E vivem.  Simplesmente vivem.  Existem por aqui.
A borboleta rompe as paredes ténues da crisálida, estica as asas, espreguiça-se, e abre-se ao mundo.
Um dia ? Alguns dias ? Algumas horas ?
E isso interessa ?
Nós contamos, recontamos, fazemos previsões, estatísticas, tendências ... Nós medimos o que supostamente nos sobra ... Menos um dia, menos uma semana, menos um mês ... quase fim de ano outra vez ! 
E a angústia sobe, o peso imensurável desce nas costas, na mente, nas forças e na vontade, como uma espécie de condenação, como armadilha de que, apanhados, não mais escaparemos. 
E centramo-nos inevitavelmente nas doenças, nas queixas, nos sintomas, nos sinais aparentemente alarmantes, todos eles.  Tudo pressupõe alguma irregularidade orgânica.  Tudo é a antecâmara duma desgraça anunciada ...
Vive-se em susto.  Vive-se sem escapatória ... " A vida tudo dá e tudo leva !" - slogan realista mas desesperador, dito e repetido pela boca da minha mãe ...
Acuada... é assim que me sinto.  
Desde que este determinismo me tomou, nunca mais fui a mesma.  Emprateleirei os sonhos, engavetei os desejos, desapostei nos projectos ... como se em nada já valesse realmente a pena, apostar . O peso do tempo, esse tirano, esse ditador implacável, destrói-me, todos os dias um bocadinho mais !

Ontem desci para um café "fora de portas", supostamente para arejar ... 
Um grupo de conhecidos também em hora de lazer, ocupava mesa próxima.  Pessoas da minha geração, mais coisa menos coisa.
Médicos, consultas, análises, exames, panaceias, complementos e suplementos das unhas dos pés à cabeça ... dores, reais ou previsíveis, profilaxia de toda a tipologia para o que se tem, mas também para o que hipoteticamente se pode vir a ter ... foram exclusivamente o cardápio das conversas, enquanto engoli a bica.
Engoli, porque fugi rápido. Pus o caminho às costas e zarpei, quanto antes, porque se bem não estava, pior fiquei !!! Um cenário irritantemente dantesco !
E pronto, na generalidade as pessoas vivem nesta corda bamba. Tudo isto é realmente doentio e demolidor do equilíbrio de cada um, por mais sólido que ele seja.

À nossa volta, a realidade social, familiar, no país, no mundo ... tudo aquilo a que se vai assistindo, no nosso círculo, ou em domínios mais remotos, transporta, a todos os níveis, uma carga de insegurança, de insatisfação, de incerteza, de consequente angústia, de medo ... um medo fóbico, devastador, que adoece e destrói irreversivelmente, tanto mais acentuado quanto mais avançada for a faixa etária das pessoas. 
Parece que nada já tem solução, que tudo está desconjuntado, é absurdo, é estranho e parece não nos fazer sentido.  Consequentemente começamos a sentir o incómodo de termos que viver uma realidade que não entendemos, nos é penosa, não nos faz sentido e ameaça já não albergar espaço para nós.
Parece que o único caminho que nos sobra, portanto, será partir !

"Este país não é para velhos",  nome dum filme que vi há largos anos no cinema ( 2007 ), pode mesmo ter uma abrangência contextual mais alargada, pois afinal, este mundo é que parece não ser já para velhos !...

Anamar

sexta-feira, 5 de março de 2021

" LABIRINTO "

 


Tenho uma sensação remota de estar a percorrer um labirinto tipo "pescadinha de rabo na boca", em que retomo o ponto de partida.  Uma espécie de círculo vicioso de que não consigo libertar-me saindo dele, por mais voltas e voltas que dê.
Só me faz lembrar aqueles sonhos, às vezes recorrentes, que nos deixam extenuados e dos quais acordamos com uma angústia sem tamanho ... Parece que caminhamos, caminhamos  até à exaustão, sem conseguirmos sair do mesmo lugar ...

Já ontem referi no post que publiquei, que o meu grau de saturação, de cansaço e de consequente irritabilidade, está a atingir o pico dos picos.
Neste momento, quando os valores fornecidos diariamente sobre a panorâmica da pandemia, pareciam animar-nos um pouco, pela descida de todos os parâmetros de avaliação ( número de novas infecções, número de óbitos e número de pacientes em cuidados intensivos ) ... quando parecia podermos respirar um pouco mais folgadamente quanto às expectativas futuras ... quando parecia abrir-se, com a Primavera, um futuro mais radiante, solarengo e esperançoso ... eis que as notícias escutadas ontem, nos dão conta da possibilidade do surgimento duma quarta onda pandémica, tão grave quanto a vivida em Janeiro passado, mercê da disseminação das estirpes invasoras, resultado das mutações constantes sofridas pelo vírus.
Em Portugal, neste momento, a variante inglesa, caracterizada por uma transmissão mais fácil e por isso mais rápida, já apresenta uma percentagem de perto de sessenta por cento dos casos das novas infecções.
A variante do Brasil, conhecida pela variante de Manaus, tristemente identificada pelo estrago que operou nessa zona da Amazónia, altamente contagiosa e mortífera, também já está no nosso país ...
As vacinas, entretanto estão a ser reajustadas, tanto quanto possível, às mutações sofridas pelo vírus que sempre "corre" à frente, e não garantem uma eficácia tão absoluta quanto o estimado inicialmente, em condições ditas "normais" para o Sars Cov2.
No continente Europeu, centro e leste, a situação parece estar a complicar de novo, com o número de infectados a subir exponencialmente, obrigando a novos confinamentos mais rigorosos, nos países dessas longitudes ...
E entretanto também, não demora que Portugal inicie o seu desconfinamento, a manterem-se as tendências verificadas actualmente ... o que sinceramente vos digo, me parece mais mau que bom !

Apesar de eu e a maioria das pessoas não podermos mais com tudo isto, apesar da resiliência já ter ido para o espaço, da paciência se ter esgotado,  da saturação, cansaço e desinteresse por tudo, traduzida por uma apatia crescente, estar a adoecer-nos ... apesar de não concordar com muitas das medidas assumidas superiormente pelas autoridades políticas e sanitárias, apesar de sempre acharmos que isto e aquilo não foi adequado ... pergunto ... quem faria melhor e quem não faria melhor, se pudesse ou soubesse ?
Porque todos sofremos o desespero das dificuldades a todos os níveis, consequências das decisões assumidas ! Isso, é inevitável !
E haverá alguém, aqui ou por esse mundo fora, que possua uma bola de cristal, ou tenha acesso às informações / previsões de um qualquer oráculo, que premonitoriamente pudesse ter dado uma mãozinha a quem, em cima dos acontecimentos, para o bem e para o mal, foi obrigado a decidir sobre tudo ???
É sempre muito fácil sermos "advogados do diabo".  Somos sempre lestos em atirar pedradas, e previsões depois do jogo, também todos somos autoridades iluminadas para o fazer.
O difícil, difícil, é antecipar jogadas, é conseguir prever com assertividade o percurso da história ... é, com poucos dados, sermos capazes de congeminar a jogada adequada em cada momento, em tempo record ... porque também aqui, a antecipação, acarreta dividendos !

Sou honesta : não me filio em nenhuma corrente partidária, tenho uma antipatia visceral e nojo mesmo, infelizmente pela quase generalidade dos políticos, embora não ignore que cada escolha, decisão  ou rumo seguido por nós, nas nossas vidas diárias, são actos políticos.
Mas juro-vos que não quereria estar na pele de nenhum deles, neste timing da História.  
Não gostaria de sofrer o desgaste, a exaustão, a precariedade de descanso, todo o ónus, enfim, de terem que dar diariamente, hora a hora, momento a momento, o peito às balas, sabendo desde logo que NUNCA se pautarão pelas opiniões de todos. Agradar a "gregos e troianos" é, como sabemos, impossível !

Os tempos que vivemos são uma vicissitude dramática e imprevisível que nos aconteceu.  
Lê-se que, indirectamente, o Homem tem uma quota de responsabilidade nela.  A forma como o planeta tem vindo a ser tratado pela Humanidade, a existência de vírus que se transmitem de espécies animais selvagens para os humanos, a existência de gelos perpétuos nas zonas polares que, derretendo devido às alterações climáticas,  puseram  a descoberto espécies que estavam totalmente protegidas há milhares de anos e que são potenciais portadoras de micro organismos desencadeadores de possíveis / futuras outras pandemias, são apenas alguns exemplos do que refiro.

Sobre este vírus, a sua constituição, a sua capacidade de propagação, resistência, mutação, potência letal sobre o Homem, entre outros aspectos ... pouco se conhecia e de tudo se tem estudado e exaustivamente descodificado, ao longo de um ano.  
Mundialmente, de oriente a ocidente e de norte a sul, eu diria que o campo científico apostou as fichas todas no conhecimento gradualmente mais aprofundado deste nano-organismo, as suas implicações e consequências para todos nós ... 
Mas o que é um ano, temporalmente falando, neste tipo de estudo ?!  Milagres não existem, e como cientificamente se sabe, o conhecimento avança sempre, cautelosamente, titubeantemente, por experimentação baseada na tentativa de erro e acerto, de avanços e recuos, sendo que a teoria de hoje pode amanhã ser substituída por uma outra verdade.
Por tudo isso, ainda assim, muito se apostou, muitas metas se alcançaram e muito se clarificou já, em toda esta intrincada matéria, numa corrida de maratona contra o tempo.  
Porque o tempo representa vidas humanas a serem poupadas !

Depois, nesta verdadeira guerra de muitas batalhas, a vertente económica dos países está totalmente afectada.  A economia está de rastos, com os países fechados.  Portugal não é excepção.   Desde a restauração, ao turismo, expoentes máximos da nossa economia, tudo parece submerso num tsunami avassalador.  O desemprego é catastrófico, as exportações caíram, o pequeno negócio de lojas de rua, não sendo de bens essenciais, também paralisou, assim como muitos outros ramos de comércio e indústria.
As dificuldades sentidas pela maioria das famílias são abissais, e a fome e a miséria estão por aí ...
Que o digam os Bancos de Apoio alimentar e as Instituições oficiais ou não governamentais mesmo, que desceram ao terreno, a fim de tentarem minimizar os dramas diários que se vivem ...

Tudo isto sem um fim à vista.  Tudo isto sem se vislumbrar uma real e consistente melhoria.  Tudo isto num desafio individual e social de resistência, de coragem, de manutenção da sanidade mental e de alguma confiança, esperança e fé nos tempos vindouros ... se ainda o conseguirmos !!!

Anamar

sábado, 13 de fevereiro de 2021

" A GERAÇÃO DO ÁLCOOL-GEL "

 



Eu não acredito que já há mais de um ano, os temas dos meus textos rodam em torno da pandemia !
Há um ano já que comecei a escrever uma espécie de "crónicas de caserna" sobre a realidade de que nos dávamos conta diariamente, e bem assim dos sentimentos ao rubro que por aqui íamos experimentando !
Eu não acredito que há mais de um ano, os meus escritos começavam já então, com as benditas frases : "foi decretado o estado de emergência" ... "o país está totalmente confinado " ... " as ruas estão desertas" ... "hoje foram também encerradas as escolas, e as crianças e jovens iniciam, a partir de casa, o ensino à distância "... ou, " todos os trabalhadores com profissões passíveis de um desempenho a partir de casa, passam a exercer tele-trabalho" ... " pais com crianças de idade inferior a doze anos, têm direito a assegurar o seu cuidado, mantendo-se nas residências" ... e por aí adiante.
Há mais de um ano, eu falava dos artefactos conhecidos e inevitáveis a integrarem o nosso dia a dia, as nossas rotinas, num quotidiano que se instalou e parece não desgrudar nunca mais, das nossas vidas ... as máscaras, a lixívia, o álcool-gel, a higienização ininterrupta das mãos, com muita água e sabão ... O café que não se pode tomar na rua, as filas nas superfícies comerciais, o número limitado e a conta-gotas das admissões nos estabelecimentos ainda abertos ... o distanciamento social em todos os lugares ...
Há já um ano que a realidade de todos nós mudou totalmente o figurino, nas rotinas, nos sentimentos, nas vivências ...
Tudo em nome de uma nano-partícula viral que ousou tomar conta dos nossos destinos !

E hoje, passado já um ano, continuando remetidos, eu diria, à estaca zero, prosseguimos uma via sacra sem vislumbres auspiciosos.
Estaca zero  não é sequer o caso, porque passado um ano as cotas dos nossos parâmetros valorativos ( do que era na altura, uma pandemia que parecia iniciar-se benevolente para Portugal ),  desceram abissalmente p'ra uma cratera sem tamanho ou dimensão ... o que, se calhar, se nessa altura no-lo tivessem contado, talvez não tivéssemos acreditado.
Os números de casos de infecção, o número de óbitos, o número de doentes em Cuidados intensivos, a gravidade do cansaço e da exaustão sentida  nos hospitais, nas famílias, na sociedade de uma forma geral, eram  uma brincadeira, se os compararmos à nossa actual realidade diária.
Aprendíamos então novos esquemas de vida, adaptávamo-nos então a realidades estranhas que tiveram que se nos entranhar na alma, tacteávamos  então uma adaptabilidade física e emocional a um todo que não conhecíamos, sequer ouvíramos falar, sequer imagináramos ...
Sempre na esperança que tudo fosse apenas por algum tempo, que o pesadelo nos desse tréguas num tempo não excessivo, pelo menos não acima do que fôssemos capazes de suportar ...

E como em tudo na vida, a tudo o ser humano se ajeita ... primeiro estranha, depois entranha, foram transcorrendo os dias, depois das noites novas madrugadas se perfilaram, depois da Primavera as estações seguiram o rumo normal, os dias azuis chegaram no prazo correcto e espectável, a seguir às chuvas e às intempéries o sol falava-nos de praias onde não iríamos, de viagens que não faríamos, de espectáculos que não veríamos ... a solidão forçada das paredes cerradas das casas donde não saíamos, como último reduto ou trincheira desta guerra sem tamanho,  lembrava-nos dia após dia a falta do abraço, do beijo e do colo, pesava-nos dia após dia a ausência dos que só víamos através de plasmas e que só ouvíamos através de aparelhos, as noites não dormidas trazíam-nos o medo, o cansaço, a angústia, a incerteza que adoece e dói ...
E no limbo entre o estar morto ou ter a certeza de estarmos vivos, fomos cumprindo calendário, ansiando que o ano assassino terminasse logo, tal a força da sua flagelação ... como se, virada a última página do 2020, a regeneração de tudo, até de nós mesmos, estivesse em rampa de lançamento !
Parecia que uma nova aurora despontaria nos primeiros alvores de uma madrugada que seria  finalmente "mãe", porque já bastava a força carrasca do pesadelo que havíamos vivido ...

Hoje é sábado de Carnaval ... só porque a convenção assim o determina.  E hoje vivemos o que os homens da Ciência chamam-se de quarta vaga, em Portugal das mais violentas que flagelam o mundo ! 
Hoje, novamente as medidas de contenção, os parâmetros restritivos, as limitações, vigoram inapelavelmente, num estado de emergência e confinamento, imposto por um Janeiro absolutamente catastrófico e devastador.
Hoje sabe-se que estatisticamente a saúde mental dos portugueses claudicou.  Nos últimos meses mais de sessenta mil pessoas pediram apoio psicológico.
Hoje no país, chegou-se a mais de quinze mil mortos, mais de oitocentas pessoas carecem de máquinas p'ra respirar e o número de infectados atingiu o patamar de cerca de oitocentos mil .
Hoje já dispomos de vacinas, num número muito abaixo das necessárias.
Reforça-se a testagem a valores diários de exigência muito séria.
Hoje, as estirpes de vários tipos, atestam que o vírus não se conforma e promete continuar a reduzir  a terra queimada, os caminhos que calcorreia !  As gerações do meio são fustigadas.  Existem muitos jovens entre os doentes graves e os óbitos.
Hoje, a OMS fala no uso de duas máscaras sobrepostas, dada a virulência, nomeadamente da estirpe britânica que já se instalou numa percentagem aterradora.
Hoje, com um sol primaveril a anunciar um confinamento ainda mais difícil de cumprir, continuamos em "prisão domiciliária" ... e há quem pergunte : "mas será que algum dia deixaremos de usar máscara ?  Será que voltaremos a ser capazes de conviver com um depois com a normalidade do antes, sem que sintamos que algo não está bem ?"
Que consequências seríssimas no domínio psíquico e até físico, virão a experimentar as nossas crianças, os nossos adolescentes, os nossos jovens ... pela inversão de todos os hábitos, necessidades óbvias,  rotinas interiorizadas, a amputação dos afectos, da relacionação, da partilha e da interajuda, na normal construção de personalidades que exactamente percorrem um estadio da vida determinante nas suas formações ?!

Só a História, um dia quando for feita, o reportará. Já cá não estarei para o conhecer . 
Só ela, com o devido distanciamento temporal, necessário e suficiente, poderá avaliar com segurança, o grau de adaptabilidade capazmente alcançado, de superação e de resiliência desta heróica "geração do álcool-gel" !

Anamar

quarta-feira, 24 de junho de 2020

" MORTE VERSUS VIDA - A PROBLEMÁTICA DO SUICÍDIO "



Vivemos num paraíso e não o sabemos !
Este micro-mundo perdido no Universo, grão de poeira estelar, a meia distância entre o centro e a borda da Via láctea, reserva-nos tesouros naturais indescritíveis !
Tanto para ver e tão curto tempo para o fazer ...
Ainda se existisse um qualquer varandim com vista para os cantos e recantos do planeta Terra, sentir-nos-íamos menos injustiçados, e eu já não me importaria de morrer ... quando fosse ...

Por morrer, por morte ... por esta temática se encontrar na ordem do dia mercê de um acontecimento mediático ocorrido esta semana, em que uma figura pública acarinhada pelas audiências que frequentam séries e novelas da televisão, pôs fim à vida  de uma forma que deixou consternados mesmo os que não são "habitués" ... resolvi escrever alguma coisa a propósito.

Porquê ?!  Como foi isso possível ?!  Por que é que as pessoas escolhem estes caminhos sem retorno ?!  Por que não superou os possíveis problemas ou tudo aquilo que o deprimia, estando inserido numa família estruturada, sendo uma pessoa de sucesso e reconhecida profissionalmente e não só ?!... Não tinha o direito de fazer isto ! ... e et cetera, et cetera, et cetera ...
Estas e outras questões, saltaram de imediato para a boca das pessoas, numa espécie de busca absurda, de uma explicação para o que a não tem.

Consternados ficámos todos, como o ficará qualquer pessoa, penso, face a um suicídio com contornos de uma violência física e de uma coragem fria, atrozes.
Consternados, ficámos todos quando somos levados a questionar como é que um pai de cinco filhos, dos três aos vinte anos, naturalmente com o peso de uma responsabilidade e de um apego à vida que obviamente lhes eram exigíveis ... conseguiu fazê-lo ...

E porque tudo isto foge ao nosso entendimento, porque tudo isto foge a uma lógica com que sempre tendemos a rotular os actos do dia a dia, tudo isto foge a comportamentos que sempre tendemos a padronizar ... reagimos com a tal estupefacção ilegítima, e logo acorremos rapidamente a procurar respostas.
Como se uma depressão, uma afecção psicológica e mental ... essas tais doenças sem rosto e demasiadas vezes sem voz ... tivessem ou pudessem ser passíveis de explicação ou entendimento à luz da lógica de outras patologias, do tipo tem uma dor, toma um analgésico, tem azia, toma um anti-ácido ...
Como seria simples se assim fosse !...

Sou uma pessoa intrinsecamente negativa.  Sou um ser que sempre se pauta, ao longo da vida, por posturas e visões tendencionalmente negativas e não positivas.  Derrotistas e facilmente problematizáveis, e não o inverso. Sou a do copo meio vazio e nunca meio cheio.  Sou a que luta, para espevitar quantas vezes, uma auto-estima que injustificadamente lhe tende a despencar aos pés.
Reajo com dificuldade face à adversidade, tenho fraca capacidade de adaptabilidade e resiliência.
Puno-me vezes de mais ... e injustamente ... confesso-o.
Tenho um historial de vida, como a generalidade dos seres humanos certamente, atulhado de pedregulhos, becos e vielas, estradas sinuosas e mares encapelados ...
Até aqui, nada de novo. Não sou vítima nem heroína.
Tenho-me saído razoavelmente bem, mas isso não faz de mim uma vencedora, nem me espanta as angústias, os desânimos e os medos de não ter forças.
Já recorri e muito, a acompanhamento médico.  É para isso que eles existem.
Não tenho pudor ou medos de me expor.  Por que o teria ?  O estigma social que infelizmente tende a marcar as pessoas, também não me assusta por aí além, apesar de ouvir com alguma frequência que me irrita ( confesso ), "não tens necessidade de falar de assuntos íntimos !"... "Não precisas expor o que te vai na alma!"... 
Porquê não ?
Ao contrário ... sinto algum orgulho por me "despir" face ao comum dos mortais ... porque o comum dos mortais, podendo não o escancarar, talvez saiba claramente do que falo ... e se isso servir para alguma coisa, já será bom !

As pessoas não gostam, eu sei, de se confrontarem com situações incómodas, com vidas problematizadas, com realidades incomodativas ...
Tão melhor, como acontece no nosso dia a dia, nas nossas relações sociais ( seja ao vivo e a cores, seja através das redes de convívio disponibilizadas pelas tecnologias existentes ), ostentarmos vidas impolutas, famílias de felicidade exemplar, núcleos familiares intocados e invejáveis, uma perfeita "ordem" existencial, assumida plasticamente, sem mácula, sem carne, sem sangue e sem nervos...
Tão melhor e mais cómodo, não percebermos ou sentirmos o incómodo do sofrimento desestabilizador do nosso semelhante, numa sociedade egoísta, egocentrista e centrada nesta necessidade  canibalesca de sobrevivência ...
Tão melhor, mas tão intencionalmente hipócrita !

Mas se o pressentimos ou sentimos, aí vêm todos os que passam a saber de tudo. Todos os "técnicos" de gabarito e especialização adequada à circunstância : "tens que ser mais forte ... tens que ver com estes ou aqueles olhos ... tens que te abrir ... e eu oiço-te, escuto-te, estou aqui p'ra ti ... em qualquer momento ... Tens que, tens que ... deves ... !"...

O que sabe esta gente do sofrimento oculto ?
O que lhes confere o atrevimento de opinarem sobre tudo o que, talvez felizmente para eles, nunca experienciaram ? O que lhes permite fazerem juízos de valor e julgarem ... tão de ânimo leve que até dói ?!
Por que razão, de repente, nos meios de comunicação, se passou a falar de estatísticas suicidárias, se passaram a veicular números telefónicos de organismos e instituições de SOS no apoio a situações extremadas ... se passou a equacionar urgentemente a saúde mental dos portugueses, até aqui aparentemente negligenciada ... se passou a escalpelizar toda a problemática em torno da escolha da morte, como refúgio para os que já não acreditam na vida ?!
Consciência social inquieta ? Ou tormentos mal resolvidos ?

Bom ... não alongo mais esta minha exposição.
Anexo um artigo de opinião que li  entretanto, produzido por Carmen Garcia do jornal Público, exactamente no contexto da morte do actor Pedro Lima ... pois tem sido esta infeliz ocorrência que fez escorrer rios de tinta, a propósito.
Esse artigo enforma com toda a clareza, o que penso a respeito de um assunto tão sensível e devastador.  Subscrevo portanto as palavras desta articulista.




Morreu ontem o actor Pedro Lima.

Aparentemente terá sido mais uma das cerca de oitocentas mil pessoas que, anualmente, colocam termo à própria vida. O país ficou em choque e, por todo o lado, se multiplicaram as manifestações de pesar e surpresa. As redes sociais, aquelas que, curiosamente, nos bombardeiam diariamente com fotos plásticas e altamente trabalhadas de vidas perfeitas, encheram-se de publicações com apelos para que não se esconda o sofrimento. A incoerência abraçou o seu pico.


Bottom of Form
Não vou falar especificamente sobre a vida do actor porque não me cabe fazê-lo. Da sua história pouco ou nada conheço. Mas conheço a história de muitas outras pessoas que diariamente lutam com a doença mental, muitas delas em segredo, porque o mesmo país que ontem gritava “peçam ajuda” é o mesmo que continua a apontar o dedo e a estigmatizar quem assume frontalmente estar deprimido. “Tens de ser mais forte do que isso” diz. Quase como se a doença mental fosse uma escolha ou um sinal de fraqueza.
O suicídio mata mais do que o cancro da mama. E por este último saímos à rua, corremos, usamos laços cor-de-rosa ao peito. Mas em relação ao suicídio continuamos a assobiar para o lado, quase como se fosse uma coisa indigna de ser falada, uma coisa feia que precisa de ser escondida. E pior, julgamos, criticamos, atiramos a primeira pedra. “Mas ele tinha tudo para ser feliz”, dizemos quase chocados e cometendo o pior dos erros: avaliar, à luz de uma mente saudável, aquilo que se passa numa mente doente.

Ao longo dos últimos anos, a ciência (e consequentemente a medicina) evoluíram muito. Sabemos hoje que a depressão pode ser associada a factores genéticos e que o funcionamento dos neurotransmissores está afectado nesta patologia. Ainda assim muitos continuam a acreditar que a depressão se trata com “a força de vontade”, como se esta, por si só, aumentasse de forma significativa os níveis de serotonina de alguém. Se fizéssemos uma comparação directa com outra doença, por exemplo a diabetes, o que teríamos seria um amigo a quem diríamos “vá lá, tens que ter força de vontade para o teu pâncreas começar a produzir insulina suficiente”. É ridículo, não é? Pois…

E pedir ajuda de qualidade é difícil. Muito difícil num país onde figuras públicas de relevo dizem coisas como “tomar medicamentos para a depressão é que não, porque isso faz-nos deixar de ser nós próprios”. Assim mesmo, como se a farmacologia hoje fosse a mesma de há 40 anos e os antidepressivos fossem comprimidos que nos deixam tipo zombies a babar pelos cantos da casa. A sério, não sei mesmo a que ajuda é que estas pessoas se referem. É que os 50/50 só funcionam em programas como o “Quem quer ser milionário?”.
É urgente, muito urgente, combater estes preconceitos infundados. Se há quadros depressivos que até podem responder bem a intervenções não-farmacológicas, acreditem que muitos vão precisar dessa ajuda. E está tudo bem. Os antidepressivos não roubam a identidade de ninguém, antes pelo contrário. E os psiquiatras não são bichos-papão. São médicos competentes que tratam doenças concretas com aquilo que a ciência tem para oferecer.


A morte de Pedro Lima é uma tragédia. Há uma família que fica de coração partido e, quem passou por isso sabe, como diz o provérbio africano, que “um morto amado nunca mais pára de morrer”. A eles dirijo as mais sentidas condolências e peço desculpa em nome de uma sociedade que continua a falhar aos seus, que continua a fazer com que as pessoas com perturbações mentais sintam que se devem esconder. 

Que a morte do Pedro desta família sirva para, pelo menos, darmos um passo em frente enquanto sociedade. Que finalmente deixemos de lado a hipocrisia e estejamos realmente aqui para quem precisa de ajuda. Sem recriminações. Sem frases feitas. Sem julgamentos.




Anamar

segunda-feira, 16 de março de 2020

" ATRÁS DAS GRADES "



Passei dias, passei meses, anos, décadas ... passei séculos e milénios ...
Lendo isto, praticamente me julgo uma lenda.
Ensinei muita gente que foi por esse mundo ensinar ainda mais gente ... e aprendi sempre com os que foram por esse mundo ensinando outros tantos ...
Fui vivendo, olhando, vendo e fascinando-me com tudo o que o Homem atravessou, os desafios que superou, as dificuldades ultrapassadas e os êxitos alcançados ... hoje, neste ano de 2020, do século XXI, no novo milénio ...
Maravilho-me com a sua capacidade de superação, a sua resiliência, o seu afinco, a aposta e a entrega que faz face às ondas alterosas, se o mar está de borrasca.
Encanto-me com a altivez e a coragem com que deita a cabeça de fora de novo, e se ergue outra vez, se a tempestade tenta submergi-lo.  E a convicção, a fé e a força com que se reergue, mesmo que tudo pareça perdido ...

A minha geração é, também ela, uma geração de resistentes.
Lembrava um destes dias, alguns, só alguns marcos históricos que me vieram à mente, e que escreveram a letras de ouro ou letras de sangue, toda a História de uma época.  Assinaláveis momentos, acontecimentos, períodos absolutamente marcantes e determinantes na vida humana.
Desde a chegada à lua em 1969, o domínio espacial com a exploração cada vez mais aprofundada e desenvolvida, projectou o Homem para os domínios do Universo longínquo.
A clonagem com o surgimento da ovelha Dolly em 96, maravilhou o mundo científico.
A fertilização "in vitro" e a gestação em corpos que não o materno, trouxe as "barrigas de aluguer" ( na década de 60 ) como alternativa em dificuldades de gestação para muitas mulheres.
Os testes de DNA, e a descodificação total do genoma humano foram alguns dos passos gigantescos no domínio da Ciência.
Assistiu-se ao desenvolvimento industrial no planeta, com a China a ascender a segunda potência económica.
Em termos sociais e políticos, a criação da União Europeia foi um marco histórico determinante na organização geo-política mundial, a que recentemente o Bréxit, veio dar novo figurino ...
O domínio da tecnologia é absolutamente imparável e de alcance inimaginável. A era da cibernáutica com a criação e desenvolvimento dos computadores, dos smarthphones, tablets e afins ... os iphones, os relógios inteligentes, todo o mundo digital, as redes sociais, a impressão em 3D, a invenção dos drones, toda a forma de comunicação e actuação, à distância apenas de um clique, na instalação de uma aplicação nos nossos dispositivos ... as redes wifi, as vídeo-chamadas, as tele-conferências entre outras, são invenções inestimáveis ao serviço do Homem.
Na Medicina igualmente se travaram lutas e venceram batalhas. Surtos epidemiológicos foram combatidos com novos fármacos, vacinas, testes de diagnóstico e mil outros meios auxiliares.  O HIV, o ébola, a Gripe das aves, o SARS, a pandemia da Gripe A, o dengue, a pandemia do vírus H1N1 altamente virulento conhecida como a Gripe espanhola, a febre das vacas loucas, entre tantos outros surtos, em paralelo com a luta sem tréguas permanente, e também sem fim à vista, frente ao desenvolvimento do câncer.
O muro de Berlim caíu em 89. O declínio do socialismo no leste europeu, provocou a dissolução da União Soviética  e pôs fim à Guerra Fria.
Em Portugal a ditadura também haveria de cair  em 25 de Abril de 74, arrastando com ela a descolonização dos territórios portugueses em África, e bem assim a instauração da Liberdade e da Democracia no nosso país, pondo fim a uma guerra que devastou e sangrou Portugal.
Mas foram e são muitos, os cancros sociais que afectaram e continuam a afectar o planeta.
Várias guerras e conflitos nos atormentaram e atormentam.  Quem não lembra a Guerra do Vietname que durando vinte anos, destroçou os povos daquela zona e varreu mortalmente os exércitos que para lá eram enviados ?
Quem não lembra a Guerra do Golfo ( 90-91 ), a invasão da ainda União Soviética ao Afeganistão ( 79 ), os conflitos perenes no Oriente Médio, as crises sócio-políticas que empurram em direcção à Europa, hordas e hordas de migrantes, por esse Mediterrâneo fora, em busca de um lugar de paz e de Vida ?
Quem não lembra os atentados terroristas e a insegurança social vivida em tantas zonas do globo ?  Quem não lembra a Queda das Torres Gémeas naquele 2001 sempre presente, a partir do qual o Mundo nunca mais foi o mesmo ?
E a grande crise económica de 2008 que levou à recessão mundial de que até hoje sofremos sequelas e cuja memória não se apagará,  particularmente agora, quando, fruto do colapso sanitário do planeta, nova recessão parece já alinhar-se no horizonte ?
E os problemas climáticos que nos assombram o futuro, com catástrofes mundiais, cheias, incêndios, tufões devastadores ... uma panóplia desgovernada de desmandos, que a Terra parece vir cobrar com a justeza de quem se sente vilipendiada e maltratada pelos seus habitantes ?...

Enfim ... isto sou eu a pensar, a reflectir, a concluir, neste dia 16 do mês de Março de um ano que parece amaldiçoado, com todo o tempo do mundo para o fazer, numa auto-quarentena, num isolamento voluntário profiláctico, no Portugal onde começaram agora a chegar os ventos destruidores vindos de leste ... o tsunami mortal corporizado na Pandemia COVID -19.
Estamos num ano bissexto, e diz o conhecimento popular que ou é muito pródigo ou muito travesso.  Este, dispensa outras apresentações.
O Mundo está parado. O Mundo está a viver uma guerra sem fronteiras, sem contenção, sem trincheiras ... sem quartel ! Não há memória de alguma vez termos vivido, sequer estado perto, de algo assim.
Os países estão isolados.  Na Europa a Itália está totalmente devastada, num cenário sem precedentes.  Segue-se-lhe Espanha, com quem Portugal vai encerrar fronteiras, a França, a Alemanha e muitos outros países, espalhados por vários continentes.  Há total contenção e restrição de livre circulação.  Os aeroportos são depósitos de aviões parados.  De este a oeste, do hemisfério norte ao sul ...
Os hospitais não têm já capacidade de resposta, anuncia-se uma ruptura humana e material que parece insolucionável.  As cidades são fantasmas, as ruas estão desertas, as pessoas confinadas a casa.
É um cenário de terror e devastação o que se vive.

Sai-se à rua apenas para abastecimento, quer de géneros alimentares quer de farmácia.  Usam-se luvas descartáveis e máscaras protectoras, esperando que o maldito vírus, que se propaga com uma facilidade e uma velocidade indescritíveis, não descubra nenhuma brecha penetrante, por cada vez que nos expomos um pouco. O afastamento social determina a segurança de cada um .
Portugal conheceu hoje a sua primeira vítima mortal.  Há cerca de 190000 infectados pelo mundo e mais de 7800 mortes já registadas.
Nos hospitais, os técnicos de saúde receiam um recrudescimento de casos.  Muitos deles também já foram infectados.  As famílias estão desarticuladas.  As crianças e jovens estão em casa, com as escolas de todos os graus, encerradas.  Os adultos cujo trabalho lhes permite, trabalham de casa, executam tele-trabalho.
Os outros vão em frente.   Não há como não ir ...
Está no horizonte próximo, daqui a quarenta e oito horas, a aprovação do Conselho de Estado, para a declaração do Estado de Emergência no país.  Nunca tal havia ocorrido antes.

E eu por aqui ...
Fazendo parte de um grupo de risco, devido à faixa etária em que me incluo, estou atenta em permanência a todas as medidas, informações e desenvolvimentos que circulam na comunicação social.  Sofro por todos, em especial pelos meus, obviamente.  Sinto-me encurralada, sem espaço de manobra, sem nada poder fazer para minorar o que se vislumbra no horizonte.
Tenho uma filha na área da Saúde, a trabalhar num dos Hospitais de referência em Lisboa.  Condições precárias, até mesmo a nível de protecção pessoal destes técnicos de saúde...
Vivo apavorada com a hipótese de que ela possa vir a ser contaminada.  Tem uma filha de dois anos e o companheiro trabalha fora do país na Comunidade Europeia.
Não há rede de apoio.  A família é muito pequena.  Não me "deixam" avançar para ficar com a Teresa, se a questão vier a colocar-se.  E a angústia que isso me transmite, associada ao medo que tenho tentado controlar, mas que está a ultrapassar-me, começa a desequilibrar-me física e psicologicamente, e a tornar as minhas noites, num vazio de sono e descanso !

Ao acordar de manhã, neste isolamento voluntário que me confina a este quarto, nesta casa de silêncios, onde apenas os meus dois gatos me acompanham ... longe da família, dos amigos, dos conhecidos ... dos afectos ... afastada dos lugares, com as rotinas comprometidas e com as notícias trágicas a pingar a um ritmo alucinante na televisão, no telemóvel, no computador ... sem um fim à vista ... sem uma melhora que se vislumbre ... sinto-me prisioneira, atrás das grades onde o MEDO, a IMPOTÊNCIA e o DESESPERO me confinam ...
E digo-me  em jeito de tentar tranquilizar-me, racionalizando,  que o Homem sempre se transcende, sempre se reergue e renasce ... mesmo que a onda pareça ser incontível !!! Essa é a sua História de Vida !!!
E que a seguir à tempestade, um céu azul e uma Primavera a despontar daqui a cinco dias, nos aguardam !!!



Anamar

terça-feira, 10 de março de 2020

" SEM AVISO PRÉVIO ... "



Voltei a escrever, no Pigalle.
O Pigalle voltou a ser um espaço quase devoluto em que as pessoas habituais sumiram.  E desta feita, a culpa não é do café, nem do tanto quanto aqui já referi noutros escritos.  A culpa é dos tempos que se vivem ...
O Mundo ficou, sem aviso prévio, em estado de sítio em poucos dias.  Não bastando os abalos sociais, as guerras, as incertezas, a violência e a dor instalados e que fazem parte sempre da nossa realidade ... assim, do dia para a noite, no espaço de dois meses e pouco, as nossas vidas confrontaram-se com angústias, dúvidas, incertezas acrescidas ... com perguntas sem resposta, com previsões sem fundos sustentáveis, com uma precariedade existencial que nos confrontou bem de rompante, com uma fragilidade sem tamanho, pelo facto de sermos apenas, habitantes do Planeta Terra.
Uma epidemia ( à beira de uma pandemia ),  que não conhece fronteiras, grassa como uma labareda incontrolável de este a oeste, de norte a sul, devastando, escarnecendo, restringindo, aniquilando e destruindo as pessoas, as famílias, as sociedades ... o Mundo !

De repente, sem aviso prévio, sem sinal visível, o tornado, o tsunami, o flagelo abateu-se sem anúncio, sem pedido de licença, sem autorização para entrar.  E foi entrando.  Nem sequer de mansinho, mas aos magotes de infectados, de mortos e de apavorados, por todos os continentes já.
E de um dia para o outro, as cidades viraram fantasmas, os países viraram assombrações e as nossas vidas  ficaram assim uma coisa suspensa no ar, sem sabermos bem como gerir algo que desconhecemos !
As nossas existências vivem num limbo estranho, dia após dia, num ganho por cada dia, se não foi nesse ainda, que nós, os nossos familiares e amigos, fomos  apanhados na torrente destruidora ...
Vivem-se sentimentos imprecisos, não identificáveis, de um desconforto sob o domínio de um alarmismo inevitável que parece não se controlar.
Erguem-se as vozes nas áreas da saúde, sociais, governamentais, políticas ... num apelo ao controle e à possível tranquilidade das populações, tentando-se  que as "rédeas" na sociedade, não fujam ao domínio das entidades responsáveis, o que seria um desastre ainda maior, já que o medo, o alarme colectivo e o desnorte, em situações limite, nunca conduzem a bons resultados.
Mas a comunicação social, com a facilidade da notícia ao minuto, bombardeia-nos em permanência, com os números, as estatísticas, e a actualização mesmo das notícias referentes ao outro lado do mundo.
Dá-nos  conta  de  uma  Europa  que  se "defende" a  ferro e fogo  do  avanço de  um vírus  que desde a  China, galga  a  passadas  largas  muros, fronteiras,  marcas, barreiras, céus e mares ...
Um vírus que desafia e exige soluções em tempo record, a toda a comunidade científica, no sentido de se encontrar uma terapêutica, uma vacina, uma medida profiláctica eficaz ... qualquer coisa que trave com urgência, esta onda desrespeitosa de uma calamidade que parece incontrolável.
Temos países em caos organizacional.  Temos países cerrados ao contacto exterior, quer por decisão interna ( no desespero de impedir a total circulação de cidadãos ), quer pelo boicote feito ao seu acesso por parte dos outros países, na tentativa, desta forma,  de uma contenção da epidemia.
Temos ruas vazias, o comércio fechado, os cafés e locais de convívio e encontro, igualmente encerrados.  Há zonas ditas "vermelhas", em que a incidência do risco é superior.  As pessoas remetem-se e trabalham a partir de casa, tentando proteger-se e reduzir o contágio.
Respeitam auto-quarentenas, ou quarentenas sanitárias impostas.
Itália encabeça esta lista, mas a França, a Espanha e a Alemanha sucedem-se, com o agravamento do número de infectados.
Em Portugal, as restrições às rotinas, estão aí.  Relacionamentos sociais restringidos, eventos públicos cancelados, escolas fechadas, teatros, museus e outros espaços igualmente encerrados, provas desportivas e outras,  à porta fechada, e bem assim  suspensas outras iniciativas passíveis de reunir os cidadãos com alguma proximidade.

Não me lembro de alguma vez ter vivenciado sequer algo próximo disto.
Parece que começamos objectivamente já, a viver um estado de sítio caótico que eu imagino viver-se nos países que atravessam conflitos de guerra, miséria e desestruturação social.
Não se conhece o dia de amanhã, não se sabe da real segurança das pessoas  no âmbito das suas necessidades de sobrevivência, das capacidades de resposta na área da saúde, seja em termos de estruturas físicas hospitalares, seja em termos de respostas humanas ... Enfim, começo a sentir-me numa espécie de "gheto" social.
Saio pouco, vou ao café mas não fico, relaciono-me com os que me rodeiam, com algumas precauções.  Faço as minhas caminhadas como sempre, porque as considero espaços terapêuticos de revitalização das defesas e qualidade de vida.  Não utilizo transportes públicos, vou normalmente às compras mas evito proximidades desnecessárias com terceiros.
Não estou assustada por mim.  Estou mais preocupada com a "minha gente"... filhas expostas naturalmente nas suas actividades profissionais, sendo que, por ser enfermeira num dos hospitais de referência, a mais nova vive na "linha de fogo", sem protecções especiais facultadas ao pessoal que aí trabalha, com uma criança de dois anos que frequenta uma creche, e que com o pai a trabalhar no estrangeiro pouca serventia tem no apoio presencial familiar ...
Preocupo-me com os outros três miúdos, frequentando estabelecimentos e graus de ensino diversos e praticando actividades desportivas, com treinos e trabalho de ginásio, onde naturalmente os contactos são muitos e variados ...
Enfim, preocupo-me com a crise económica que todo este caos arrasta, nacional e internacionalmente, com consequências gravosas, altamente penalizantes para o nosso país que vive no "arame", e igualmente em termos da conjuntura mundial ... Tudo isto iremos pagar ... tudo isto nos sairá  do bolso em termos próximos futuros ...
A Síria ficou para trás, o Irão e suas ameaças nucleares, do Brexit pouco já se fala, os migrantes sofrem na carne e na alma mais dores em cima das que detêm ... os nossos escândalos "privados" ( as "guerras" institucionais, os buracos económicos, as corrupções e a escandaleira da justiça ... até as crises futebolísticas acaloradas que rendem semanas de entretenimento ... ), de Trump e suas enormidades, de Bolsonaro e seus alarvismos, das injustiças sociais confrangedoras e gritantes ... da fome, da miséria, até das alterações climáticas, o Homem abriu um parêntesis e tenta unir-se em torno da causa única : salvar a Humanidade ...

O corona vírus chegou num belo dia do fim de 2019, em Wuhan na China, mas já alcançou protagonismo e capacidade de aterrorizar e fazer tremer até as maiores e mais fortes potências mundiais !
Afinal, o ser humano é efectivamente um grão de poeira face àquilo que não domina, não controla e não conhece.
Ao ser humano resta neste contexto, experimentar e exercitar um desafio que talvez nunca lhe tenha sido colocado tão prementemente na era moderna : a solidariedade, a partilha, o trabalho grupal, a união de esforços, a entreajuda, sem cor, sem raça, sem língua, sem fronteira ... em torno de uma causa comum ... salvar a sua espécie !!!



Anamar

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

" ISTO SOU EU A PENSAR ... "




O dia está de "nieblas" ou seja, está envolto num nevoeiro tão cerrado que não se vê, só se adivinha ...
Não está frio, nos 16 graus de um Janeiro, meio de Inverno.  Contudo ... chove. Chove aquela chuva miudinha que não é bem carne nem peixe, mas que chegou para me encharcar na caminhada ... já que hoje era dia .
Eu gosto das "nieblas", este tempo fantasmagórico que desenha perfis esbatidos, como se estivéssemos atrás de um vidro embaciado.  Gosto deste ar misterioso que sempre me transporta às narrativas celtas, às costas bravias e inóspitas da Irlanda, tão bem retratadas naquele filme maravilhoso de mar alteroso e descomandado  com  que  "A filha de Ryan" nos presenteou, nos écrans de cinema nos idos de 70 ...

Afinal, o dia está parecido com a vida das pessoas.
A maior parte não tem tempo, saudavelmente, para se preocupar com estas tretas. Mas como "quem tem vagar faz colheres ..." eu, até enquanto caminho, penso na vida e falo sozinha ...
O cinzento que me cercava e que me fazia "desaparecer" no raio de alguns metros, foi propício a que me interrogasse pela enésima vez, do porquê da insegurança e da instabilidade da nossa existência, nos dias que correm.
Nos primeiros tempos da minha vida, eu e as pessoas minhas contemporâneas  adquirimos, alicerçámos e interiorizámos conhecimentos, princípios, valores que nos norteavam e que nos garantiam certezas mais ou menos indiscutíveis.  Sabíamos que estas causas, produziriam aquelas consequências, que se vivêssemos controladamente dentro de determinados parâmetros  que conhecíamos, não teríamos à partida, surpresas desagradáveis ou grandes percalços no futuro.
Podíamos planificar, podíamos aceitar desafios e assumir responsabilidades, mesmo a longo prazo, porque era devidamente acautelado o risco que se corria.  E só o corria quem queria.

Hoje, vivemos num arame sem rede.  Tudo, mas tudo, pode sempre acontecer em qualquer circunstância.  Tudo o que era certo ontem, cai em suspeição hoje.  A instabilidade, a incerteza, a dúvida sobre o que e quem nos rodeia, é uma onda gigantesca que cresce mais e mais avassaladora, como um tsunami nos nossos dias.
Há uma desprotecção total do ser humano  face à sociedade, face aos cidadãos, face às instituições, face aos princípios, às linhas norteadoras e às coordenadas que nos regem.  É como se, de repente, toda a sinalética que conhecíamos, fosse desvalorizada, e todos os códigos assimilados e válidos, caíssem em desgraça e passássemos a desconhecê-los.
E aí ficamos nós  mais perdidos que no meio de um deserto, mais naufragados do que em cerração de alto mar ...
E apossa-se-nos uma angústia, um pavor, um cansaço e um descrédito em tudo, que nos indigna, nos revolta e nos reduz à fragilidade com que nos confrontamos, percebendo-nos demasiado insignificantes e desprotegidos no mundo que habitamos.
Não temos verdadeiramente ninguém que nos defenda, as instituições são mais e mais falíveis e inaptas, as estruturas sociais não respondem e não funcionam sequer em tempo útil, são manipuláveis e corrompíveis.  Deixámos de saber as linhas com "que nos cosermos" ... deixámos de identificar as verdades que o eram ...
E ficámos estranhos ... estilo  marcianos largados de uma qualquer nave espacial ...

Somos espoliados nas "nossas barbas" ... e sabendo-o, contudo,  não temos armas disponíveis para a reversão das situações. Tudo é maquiavelicamente engendrado.  Verdadeiros  processos kafkianos são montados. Cantam-nos canções de embalar descaradamente entorpecentes,  para que consigamos reagir.  A verdade e a mentira, o direito e o avesso, o certo e o errado saem da tômbola aleatoriamente, como se inocentemente, o seu grau de validade fosse o mesmo ...

Estas reflexões atormentaram-me e atormentam.  Angustiam-me e desgastam-me.  Desmotivam-me e desencantam-me face à vida e ao futuro.  Sou cada vez mais uma analfabeta, face ao livro da Vida.

Fiz análises de rotina há alguns dias.  O meu colesterol continua teimosamente descontrolado, e desafiador.  Depois de há já razoável tempo eu ter assumido medidas correctivas no meu esquema de vida demasiado sedentário, assumiu valores ainda mais elevados.
Alimentação simples e não comprometedora, comportamentos de risco que evito diariamente e exercício físico praticado com total regularidade, seriam garante de uma segura descida dos seus valores.
Bem ao contrário ... num braço de ferro, persiste em assumir valores fora da tabela.
Sou meio inconsequente em relação a estes acidentes de saúde.  Como o meu pai, que resistia o mais que podia a médicos, medicamentos e tratamentos, eu, que felizmente não tenho  historial de contratempos a este nível, evito dar-lhes importância, protagonismo ou com eles me preocupar.
E por isso, tenho assumido um comportamento de "deixar correr" ...  Os resultados laboratoriais chegam, leio-os de través e guardo-os no armário até que uma nova investida de "consciência" me invada ... e os repita.

Entretanto, vou ouvindo as sugestões de gente avisada : "tens que te aconselhar com o médico !  O valor é elevado,  olha este e aquele a quem aconteceu isto e aquilo " ...

São as estatinas o fármaco aconselhado na terapêutica.  Todos o sabemos.  Só que se trata de um químico com uma moldura de efeitos colaterais assustadora.  Desde a dependência ao medicamento,  ( que exige um tratamento longo  para que tenha eficácia, direi mesmo, "sine die" ),  a um prejuízo acentuado no âmbito da parte muscular e articular do paciente, com restrições na qualidade de vida, e bem assim,  a ser potenciador de alterações cerebrais, como a demência ... o leque de aspectos negativos secundários inerentes, assustam-me e desmotivam-me totalmente.
Depois, ouvem-se algumas vozes da comunidade científica, denunciantes destas situações, com desaconselhamento do uso deste químico, e igualmente se escuta um ping-pong de opiniões sobre a mesma prescrição, desmistificando o colesterol como vilão no nosso organismo, e denunciando  e desmascarando um empolamento intencional e miserável da verdade, montado em prol do  "lobby farmacêutico", que a comercialização destes medicamentos beneficia.
O dinheiro e os interesses económicos das multinacionais sem escrúpulos, sempre à frente, trucidando, se preciso for, o ser humano !!!...

Bom, e portanto, SIM ou NÃO ?
Leio, busco na Internet, falo com gente da área, profissionais de saúde, e fico mais ou menos na mesma ... ou seja, quem fala a verdade, neste imbróglio ???!!!
Trata-se de uma  patologia  silenciosa e falsa, que só é detectável em exames e investigação adequados, ou por alguma "surpresa" grave que nos espreite ao dobrar de uma esquina ...  E aí, poderá já ser tarde !...

"Nieblas" ... sempre as benditas nieblas, poalha viscosa de desinformação, dúvidas e incertezas !...
E nós por aqui, indefesos ... como a mosca presa na teia de uma aranha monstruosa, contra a qual jamais terá capacidade de fazer frente !!!

Anamar

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

" EM BALANÇO ... "




Dei por concluído mais um volume - repositório de tudo o que publico aqui  neste meu espaço pessoal - o correspondente ao ano agora findo, de 2019.
Desde que iniciei a escrita deste blogue no passado 2008, uma iniciativa que surgiu entre a curiosidade e a experimentação, já completei dezoito volumes em suporte de papel, que guardo religiosamente na prateleira da minha estante.
São testemunho vivo da concretização de um projecto pessoal, que vale o que vale, não tem nenhum tipo de pretensão ou convencimento, e que é simplesmente algo que ficará um dia quando eu partir. Será um legado meu que falará daquilo que eu sou, daquilo que foi o meu percurso, as minhas preocupações, as minhas dúvidas, as minhas conquistas e os meus desaires, os meus sentires ... alegrias, tristezas, o que foi capaz de me emocionar ... em suma, um retrato nu desta que eu sou.

Cada palavra, cada linha, cada texto que aqui foi registado, foi-o com o desassombro, com a independência que me concedo, com a liberdade que me permito, com a autenticidade que me desenha.
Cada sentimento expresso, foi-o por escorrência simples e natural da minha pele e do meu coração.  Sem censuras, sem barreiras, sem crivos ou filtros.  Sensata ou insensatamente ... prudente ou imprudentemente ... Nunca isso me coartou, preocupou ou limitou.
Tal como na vida em que nunca aceitei cangas, baias ou fronteiras, e simplesmente me assumo com a genuinidade  que me confere uma coerência e uma verdade que sempre busco e respeito, também aqui sou eu frente a mim mesma ... em espelho de lealdade e verdade, sem fraudes ou distorções.

Sempre escrevi o que a voz me ditava, nunca me obriguei ao socialmente adequado ou correcto, sempre ignorei o "ruído" exterior, fingi não perceber intencionalidades ou interesses.
Nada foi "trabalhado", retocado, travestido pelo parecer bem, pela aceitação, pela conveniência.

E só por isso valeu a pena !
Hoje leio-me, e ao ler-me reabro a estrada, espreito as bifurcações, sinto as hesitações das encruzilhadas ... percebo as dúvidas, as angústias das incertezas nesta arte de marear, tantas e tantas vezes em meio de tempestades alterosas ...
Hoje, reassumo os batimentos acelerados dos cansaços do caminho,  respiro de novo as pausas nas sombras de paz e água fresca, com que a vida ... com que as vidas alternam nos nossos percursos ...
Hoje, congratulo-me pelo crescimento que descortino, gratifico-me pela maturidade conquistada, aceito com bonomia e paz  as cicatrizes deixadas pelas horas menos felizes, enxugo as lágrimas inevitáveis escorridas pelos tempos ... aquieto o coração, vezes de mais escalavrado e sofrido ...
Hoje, ao ler-me, "vejo-me", "descubro-me", "orgulho-me" ... "reconheço-me" ...

E apesar dos pesares, não sou capaz de me zangar com esta existência de tropeços, quedas, desacertos e incompletudes, porque sei do esforço diário desenvolvido para o acerto, porque sei do desafio imposto para a superação, porque sei da luta permanente travada  para a não desistência, porque sei da coragem e da esperança que bebi às colheradas para não soçobrar no campo de batalha ...
Por tudo isto, dia a dia me agiganto, me respeito mais e mais e me admiro ... se tal me for permitido ...
Em jeito de balanço, direi apenas que esta "herança" que deixo, talvez seja a mais preciosa que poderia  deixar, porque é uma dádiva integral de mim, na globalidade física e espiritual da mulher que eu sou !...

Anamar

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

" DESABAFOS / INTERROGAÇÕES INCONFESSÁVEIS ... "




Eu sabia que seria exactamente assim.  Sempre o soube.

É o segundo Natal em que a ausência da minha mãe deixou vazio um lugar naquela sala.
Verdade seja que nos últimos anos ela já não queria estar.  Era-lhe penoso ser subtraída ao aconchego da sua cama àquelas horas.  Mas nós sabíamos que ela estava lá.  E o beijinho de noite tranquila, dado antes da Consoada, aquecia-lhe ... aquecia-nos o coração !
Agora tudo é diferente.  Ela paira por ali, quase sempre ela paira por aqui, na presença que eu sinto, nos sinais que me vai deixando, nas conversas em surdina que mantemos ... Mas só ...
Trocar ideias com ela, como eu preciso ... nada !
Acho que nunca pensamos à séria que a nossa mãe nos fará tanta falta.
Enquanto é real nas nossas vidas, nem percebemos como aquela figura discreta, às vezes exigente, às vezes controladora, às vezes chata ... é de facto, determinante.  Não realizamos da importância dos conselhos, dos palpites, das sugestões ... às vezes dos reparos, dos remoques, das "abelhudices" contra as quais nos insurgimos com tanta frequência ...
"Mas que coisa ... a minha mãe acha que o tempo não passou e que a minha vida é a sua ... os meus interesses também !" - tantas vezes o pensei ... tantas vezes o disse ...

Hoje, estou mais "perto" dela, do que das gerações descendentes.

Na forma de pensarem e de se posicionarem na vida, as minhas filhas começam a ficar a anos-luz das minhas convicções, da minha forma de vida, dos meus padrões, daquilo que defendo, que valorizo e aprecio ...
Começo a perceber que as suas "unidades de medida" do tempo e do espaço, são outra onda.
Começo claramente a perceber que os seus ritmos, as suas referências, os seus valores e interesses, as suas capacidades face à vida, são outro departamento.
E sei exactamente que não entendem e não aceitam, a falta de "desembaraço", a lentidão às vezes, o "emperramento" mental, que pensam que nós, os pais, nunca deveríamos ter.
Sei exactamente da sua impaciência e falta de disponibilidade, para ouvir e " dar tempo a quem precisa ".
Começo a perceber a discrepância das nossas linguagens, a ininteligibilidade dos seus mundos, o meu afastamento ao seu universo.

Que dizer então dos que ocupam um degrau adiante ??

Em relação a esses, começo a virar um " ET".  Qualquer dia ( se não já, começam a olhar-me como uma figura meio dinossáurica e fóssil ... ).
Não entendo, e custo muito, mesmo muito a aceitar a tolerância e a permissividade dos pais de hoje, em relação a muitas formas de ser e estar, dos filhos.
Não entendo os modismos aos quais se adere, porque são isso mesmo ... modismos.
Não entendo que haja quatro pessoas numa sala, onde teoricamente se deveria vivenciar o convívio da Consoada, aproveitando os raros momentos em que a vida permite a partilha entre as diversas gerações, e estas estejam fixadas nos monitores dos telemóveis ...
Não entendo que os amigos dos pais sejam tratados por "tios" e "tias" ... Irrita-me solenemente esse tão generalizado preceito ...
Não encaixo ter uma neta, na idade tonta dos quinze anos, que tenha feito um "alisamento" do cabelo ... só porque não apreciava a escassa ondulação do mesmo ...
E do meu ponto de vista, sem que sequer tenha merecido alcançar esse desiderato, uma vez que o seu rendimento escolar deixou muito a desejar neste primeiro período lectivo.
No meu tempo, este tipo de compensações e "miminhos" ( por serem supérfluos e dispensáveis ), tinham-se ou não, como prémios de merecimento ou estímulo ...
Custo a engolir linhas estapafúrdias "vanguarda" ou "alternativas" no vestuário, com a cor preta a dominar as roupas jovens e as botas de tropa, inestéticas, pesadonas e pouco femininas, a completar o "boneco" ... Isto, revendo os conceitos de vestuário que, ao longo dos tempos, desde sempre foram mais ou menos clássicos, nas respectivas educações ...

Não ignoro  que o vestuário que exibimos é uma questão cultural e social, uma forma de integração ou de rejeição dos arquétipos que a sociedade impõe.
Nomeadamente os jovens, particularmente os adolescentes numa fase da vida de contestação e desafio, em que buscam uma qualquer identificação e um lugar no mundo que habitam, procuram afirmar-se com códigos de vestuário que os assimilem e integrem no grupo de referência.
Daí as correntes diversas que se caracterizam e pautam pelos diferentes padrões ideológicos seguidos.
Apenas acho que maioritariamente, se estabelecem posturas de "carneirada", aleatórias e despersonalizadas, sem nenhuma consciencialização da escolha ou opção assumidas, reféns das tendências e das modas, simplesmente.

Enfim ... dou  por  mim,  e  odeio  fazê-lo,  a  proferir  uma  frase  que  me  arrepia : " no  meu  tempo ... "
Oh Deus ... será que estou mesmo com a intolerância, a rabugice, a mumificação das "relíquias" museológicas ???!!!
Será que estou a ficar estratificada nos tempos em que vivo, empedernida, sem adaptabilidade e sem abertura ?!
Será que estou a auto-marginalizar-me das vivências do hoje, porque me sinto distante, incómoda, dispensável, estranha ao que me rodeia ... sem "espaço" ou lugar ??

Preocupante, sem dúvida !

De tudo isto eu falaria com a minha mãe.  Todas estas minhas inquietações ela entenderia ...

Acho que nunca pensamos à séria que a nossa mãe, um dia, nos faria tanta falta !...

Anamar