quarta-feira, 24 de junho de 2020

" MORTE VERSUS VIDA - A PROBLEMÁTICA DO SUICÍDIO "



Vivemos num paraíso e não o sabemos !
Este micro-mundo perdido no Universo, grão de poeira estelar, a meia distância entre o centro e a borda da Via láctea, reserva-nos tesouros naturais indescritíveis !
Tanto para ver e tão curto tempo para o fazer ...
Ainda se existisse um qualquer varandim com vista para os cantos e recantos do planeta Terra, sentir-nos-íamos menos injustiçados, e eu já não me importaria de morrer ... quando fosse ...

Por morrer, por morte ... por esta temática se encontrar na ordem do dia mercê de um acontecimento mediático ocorrido esta semana, em que uma figura pública acarinhada pelas audiências que frequentam séries e novelas da televisão, pôs fim à vida  de uma forma que deixou consternados mesmo os que não são "habitués" ... resolvi escrever alguma coisa a propósito.

Porquê ?!  Como foi isso possível ?!  Por que é que as pessoas escolhem estes caminhos sem retorno ?!  Por que não superou os possíveis problemas ou tudo aquilo que o deprimia, estando inserido numa família estruturada, sendo uma pessoa de sucesso e reconhecida profissionalmente e não só ?!... Não tinha o direito de fazer isto ! ... e et cetera, et cetera, et cetera ...
Estas e outras questões, saltaram de imediato para a boca das pessoas, numa espécie de busca absurda, de uma explicação para o que a não tem.

Consternados ficámos todos, como o ficará qualquer pessoa, penso, face a um suicídio com contornos de uma violência física e de uma coragem fria, atrozes.
Consternados, ficámos todos quando somos levados a questionar como é que um pai de cinco filhos, dos três aos vinte anos, naturalmente com o peso de uma responsabilidade e de um apego à vida que obviamente lhes eram exigíveis ... conseguiu fazê-lo ...

E porque tudo isto foge ao nosso entendimento, porque tudo isto foge a uma lógica com que sempre tendemos a rotular os actos do dia a dia, tudo isto foge a comportamentos que sempre tendemos a padronizar ... reagimos com a tal estupefacção ilegítima, e logo acorremos rapidamente a procurar respostas.
Como se uma depressão, uma afecção psicológica e mental ... essas tais doenças sem rosto e demasiadas vezes sem voz ... tivessem ou pudessem ser passíveis de explicação ou entendimento à luz da lógica de outras patologias, do tipo tem uma dor, toma um analgésico, tem azia, toma um anti-ácido ...
Como seria simples se assim fosse !...

Sou uma pessoa intrinsecamente negativa.  Sou um ser que sempre se pauta, ao longo da vida, por posturas e visões tendencionalmente negativas e não positivas.  Derrotistas e facilmente problematizáveis, e não o inverso. Sou a do copo meio vazio e nunca meio cheio.  Sou a que luta, para espevitar quantas vezes, uma auto-estima que injustificadamente lhe tende a despencar aos pés.
Reajo com dificuldade face à adversidade, tenho fraca capacidade de adaptabilidade e resiliência.
Puno-me vezes de mais ... e injustamente ... confesso-o.
Tenho um historial de vida, como a generalidade dos seres humanos certamente, atulhado de pedregulhos, becos e vielas, estradas sinuosas e mares encapelados ...
Até aqui, nada de novo. Não sou vítima nem heroína.
Tenho-me saído razoavelmente bem, mas isso não faz de mim uma vencedora, nem me espanta as angústias, os desânimos e os medos de não ter forças.
Já recorri e muito, a acompanhamento médico.  É para isso que eles existem.
Não tenho pudor ou medos de me expor.  Por que o teria ?  O estigma social que infelizmente tende a marcar as pessoas, também não me assusta por aí além, apesar de ouvir com alguma frequência que me irrita ( confesso ), "não tens necessidade de falar de assuntos íntimos !"... "Não precisas expor o que te vai na alma!"... 
Porquê não ?
Ao contrário ... sinto algum orgulho por me "despir" face ao comum dos mortais ... porque o comum dos mortais, podendo não o escancarar, talvez saiba claramente do que falo ... e se isso servir para alguma coisa, já será bom !

As pessoas não gostam, eu sei, de se confrontarem com situações incómodas, com vidas problematizadas, com realidades incomodativas ...
Tão melhor, como acontece no nosso dia a dia, nas nossas relações sociais ( seja ao vivo e a cores, seja através das redes de convívio disponibilizadas pelas tecnologias existentes ), ostentarmos vidas impolutas, famílias de felicidade exemplar, núcleos familiares intocados e invejáveis, uma perfeita "ordem" existencial, assumida plasticamente, sem mácula, sem carne, sem sangue e sem nervos...
Tão melhor e mais cómodo, não percebermos ou sentirmos o incómodo do sofrimento desestabilizador do nosso semelhante, numa sociedade egoísta, egocentrista e centrada nesta necessidade  canibalesca de sobrevivência ...
Tão melhor, mas tão intencionalmente hipócrita !

Mas se o pressentimos ou sentimos, aí vêm todos os que passam a saber de tudo. Todos os "técnicos" de gabarito e especialização adequada à circunstância : "tens que ser mais forte ... tens que ver com estes ou aqueles olhos ... tens que te abrir ... e eu oiço-te, escuto-te, estou aqui p'ra ti ... em qualquer momento ... Tens que, tens que ... deves ... !"...

O que sabe esta gente do sofrimento oculto ?
O que lhes confere o atrevimento de opinarem sobre tudo o que, talvez felizmente para eles, nunca experienciaram ? O que lhes permite fazerem juízos de valor e julgarem ... tão de ânimo leve que até dói ?!
Por que razão, de repente, nos meios de comunicação, se passou a falar de estatísticas suicidárias, se passaram a veicular números telefónicos de organismos e instituições de SOS no apoio a situações extremadas ... se passou a equacionar urgentemente a saúde mental dos portugueses, até aqui aparentemente negligenciada ... se passou a escalpelizar toda a problemática em torno da escolha da morte, como refúgio para os que já não acreditam na vida ?!
Consciência social inquieta ? Ou tormentos mal resolvidos ?

Bom ... não alongo mais esta minha exposição.
Anexo um artigo de opinião que li  entretanto, produzido por Carmen Garcia do jornal Público, exactamente no contexto da morte do actor Pedro Lima ... pois tem sido esta infeliz ocorrência que fez escorrer rios de tinta, a propósito.
Esse artigo enforma com toda a clareza, o que penso a respeito de um assunto tão sensível e devastador.  Subscrevo portanto as palavras desta articulista.




Morreu ontem o actor Pedro Lima.

Aparentemente terá sido mais uma das cerca de oitocentas mil pessoas que, anualmente, colocam termo à própria vida. O país ficou em choque e, por todo o lado, se multiplicaram as manifestações de pesar e surpresa. As redes sociais, aquelas que, curiosamente, nos bombardeiam diariamente com fotos plásticas e altamente trabalhadas de vidas perfeitas, encheram-se de publicações com apelos para que não se esconda o sofrimento. A incoerência abraçou o seu pico.


Bottom of Form
Não vou falar especificamente sobre a vida do actor porque não me cabe fazê-lo. Da sua história pouco ou nada conheço. Mas conheço a história de muitas outras pessoas que diariamente lutam com a doença mental, muitas delas em segredo, porque o mesmo país que ontem gritava “peçam ajuda” é o mesmo que continua a apontar o dedo e a estigmatizar quem assume frontalmente estar deprimido. “Tens de ser mais forte do que isso” diz. Quase como se a doença mental fosse uma escolha ou um sinal de fraqueza.
O suicídio mata mais do que o cancro da mama. E por este último saímos à rua, corremos, usamos laços cor-de-rosa ao peito. Mas em relação ao suicídio continuamos a assobiar para o lado, quase como se fosse uma coisa indigna de ser falada, uma coisa feia que precisa de ser escondida. E pior, julgamos, criticamos, atiramos a primeira pedra. “Mas ele tinha tudo para ser feliz”, dizemos quase chocados e cometendo o pior dos erros: avaliar, à luz de uma mente saudável, aquilo que se passa numa mente doente.

Ao longo dos últimos anos, a ciência (e consequentemente a medicina) evoluíram muito. Sabemos hoje que a depressão pode ser associada a factores genéticos e que o funcionamento dos neurotransmissores está afectado nesta patologia. Ainda assim muitos continuam a acreditar que a depressão se trata com “a força de vontade”, como se esta, por si só, aumentasse de forma significativa os níveis de serotonina de alguém. Se fizéssemos uma comparação directa com outra doença, por exemplo a diabetes, o que teríamos seria um amigo a quem diríamos “vá lá, tens que ter força de vontade para o teu pâncreas começar a produzir insulina suficiente”. É ridículo, não é? Pois…

E pedir ajuda de qualidade é difícil. Muito difícil num país onde figuras públicas de relevo dizem coisas como “tomar medicamentos para a depressão é que não, porque isso faz-nos deixar de ser nós próprios”. Assim mesmo, como se a farmacologia hoje fosse a mesma de há 40 anos e os antidepressivos fossem comprimidos que nos deixam tipo zombies a babar pelos cantos da casa. A sério, não sei mesmo a que ajuda é que estas pessoas se referem. É que os 50/50 só funcionam em programas como o “Quem quer ser milionário?”.
É urgente, muito urgente, combater estes preconceitos infundados. Se há quadros depressivos que até podem responder bem a intervenções não-farmacológicas, acreditem que muitos vão precisar dessa ajuda. E está tudo bem. Os antidepressivos não roubam a identidade de ninguém, antes pelo contrário. E os psiquiatras não são bichos-papão. São médicos competentes que tratam doenças concretas com aquilo que a ciência tem para oferecer.


A morte de Pedro Lima é uma tragédia. Há uma família que fica de coração partido e, quem passou por isso sabe, como diz o provérbio africano, que “um morto amado nunca mais pára de morrer”. A eles dirijo as mais sentidas condolências e peço desculpa em nome de uma sociedade que continua a falhar aos seus, que continua a fazer com que as pessoas com perturbações mentais sintam que se devem esconder. 

Que a morte do Pedro desta família sirva para, pelo menos, darmos um passo em frente enquanto sociedade. Que finalmente deixemos de lado a hipocrisia e estejamos realmente aqui para quem precisa de ajuda. Sem recriminações. Sem frases feitas. Sem julgamentos.




Anamar

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