segunda-feira, 16 de março de 2020

" ATRÁS DAS GRADES "



Passei dias, passei meses, anos, décadas ... passei séculos e milénios ...
Lendo isto, praticamente me julgo uma lenda.
Ensinei muita gente que foi por esse mundo ensinar ainda mais gente ... e aprendi sempre com os que foram por esse mundo ensinando outros tantos ...
Fui vivendo, olhando, vendo e fascinando-me com tudo o que o Homem atravessou, os desafios que superou, as dificuldades ultrapassadas e os êxitos alcançados ... hoje, neste ano de 2020, do século XXI, no novo milénio ...
Maravilho-me com a sua capacidade de superação, a sua resiliência, o seu afinco, a aposta e a entrega que faz face às ondas alterosas, se o mar está de borrasca.
Encanto-me com a altivez e a coragem com que deita a cabeça de fora de novo, e se ergue outra vez, se a tempestade tenta submergi-lo.  E a convicção, a fé e a força com que se reergue, mesmo que tudo pareça perdido ...

A minha geração é, também ela, uma geração de resistentes.
Lembrava um destes dias, alguns, só alguns marcos históricos que me vieram à mente, e que escreveram a letras de ouro ou letras de sangue, toda a História de uma época.  Assinaláveis momentos, acontecimentos, períodos absolutamente marcantes e determinantes na vida humana.
Desde a chegada à lua em 1969, o domínio espacial com a exploração cada vez mais aprofundada e desenvolvida, projectou o Homem para os domínios do Universo longínquo.
A clonagem com o surgimento da ovelha Dolly em 96, maravilhou o mundo científico.
A fertilização "in vitro" e a gestação em corpos que não o materno, trouxe as "barrigas de aluguer" ( na década de 60 ) como alternativa em dificuldades de gestação para muitas mulheres.
Os testes de DNA, e a descodificação total do genoma humano foram alguns dos passos gigantescos no domínio da Ciência.
Assistiu-se ao desenvolvimento industrial no planeta, com a China a ascender a segunda potência económica.
Em termos sociais e políticos, a criação da União Europeia foi um marco histórico determinante na organização geo-política mundial, a que recentemente o Bréxit, veio dar novo figurino ...
O domínio da tecnologia é absolutamente imparável e de alcance inimaginável. A era da cibernáutica com a criação e desenvolvimento dos computadores, dos smarthphones, tablets e afins ... os iphones, os relógios inteligentes, todo o mundo digital, as redes sociais, a impressão em 3D, a invenção dos drones, toda a forma de comunicação e actuação, à distância apenas de um clique, na instalação de uma aplicação nos nossos dispositivos ... as redes wifi, as vídeo-chamadas, as tele-conferências entre outras, são invenções inestimáveis ao serviço do Homem.
Na Medicina igualmente se travaram lutas e venceram batalhas. Surtos epidemiológicos foram combatidos com novos fármacos, vacinas, testes de diagnóstico e mil outros meios auxiliares.  O HIV, o ébola, a Gripe das aves, o SARS, a pandemia da Gripe A, o dengue, a pandemia do vírus H1N1 altamente virulento conhecida como a Gripe espanhola, a febre das vacas loucas, entre tantos outros surtos, em paralelo com a luta sem tréguas permanente, e também sem fim à vista, frente ao desenvolvimento do câncer.
O muro de Berlim caíu em 89. O declínio do socialismo no leste europeu, provocou a dissolução da União Soviética  e pôs fim à Guerra Fria.
Em Portugal a ditadura também haveria de cair  em 25 de Abril de 74, arrastando com ela a descolonização dos territórios portugueses em África, e bem assim a instauração da Liberdade e da Democracia no nosso país, pondo fim a uma guerra que devastou e sangrou Portugal.
Mas foram e são muitos, os cancros sociais que afectaram e continuam a afectar o planeta.
Várias guerras e conflitos nos atormentaram e atormentam.  Quem não lembra a Guerra do Vietname que durando vinte anos, destroçou os povos daquela zona e varreu mortalmente os exércitos que para lá eram enviados ?
Quem não lembra a Guerra do Golfo ( 90-91 ), a invasão da ainda União Soviética ao Afeganistão ( 79 ), os conflitos perenes no Oriente Médio, as crises sócio-políticas que empurram em direcção à Europa, hordas e hordas de migrantes, por esse Mediterrâneo fora, em busca de um lugar de paz e de Vida ?
Quem não lembra os atentados terroristas e a insegurança social vivida em tantas zonas do globo ?  Quem não lembra a Queda das Torres Gémeas naquele 2001 sempre presente, a partir do qual o Mundo nunca mais foi o mesmo ?
E a grande crise económica de 2008 que levou à recessão mundial de que até hoje sofremos sequelas e cuja memória não se apagará,  particularmente agora, quando, fruto do colapso sanitário do planeta, nova recessão parece já alinhar-se no horizonte ?
E os problemas climáticos que nos assombram o futuro, com catástrofes mundiais, cheias, incêndios, tufões devastadores ... uma panóplia desgovernada de desmandos, que a Terra parece vir cobrar com a justeza de quem se sente vilipendiada e maltratada pelos seus habitantes ?...

Enfim ... isto sou eu a pensar, a reflectir, a concluir, neste dia 16 do mês de Março de um ano que parece amaldiçoado, com todo o tempo do mundo para o fazer, numa auto-quarentena, num isolamento voluntário profiláctico, no Portugal onde começaram agora a chegar os ventos destruidores vindos de leste ... o tsunami mortal corporizado na Pandemia COVID -19.
Estamos num ano bissexto, e diz o conhecimento popular que ou é muito pródigo ou muito travesso.  Este, dispensa outras apresentações.
O Mundo está parado. O Mundo está a viver uma guerra sem fronteiras, sem contenção, sem trincheiras ... sem quartel ! Não há memória de alguma vez termos vivido, sequer estado perto, de algo assim.
Os países estão isolados.  Na Europa a Itália está totalmente devastada, num cenário sem precedentes.  Segue-se-lhe Espanha, com quem Portugal vai encerrar fronteiras, a França, a Alemanha e muitos outros países, espalhados por vários continentes.  Há total contenção e restrição de livre circulação.  Os aeroportos são depósitos de aviões parados.  De este a oeste, do hemisfério norte ao sul ...
Os hospitais não têm já capacidade de resposta, anuncia-se uma ruptura humana e material que parece insolucionável.  As cidades são fantasmas, as ruas estão desertas, as pessoas confinadas a casa.
É um cenário de terror e devastação o que se vive.

Sai-se à rua apenas para abastecimento, quer de géneros alimentares quer de farmácia.  Usam-se luvas descartáveis e máscaras protectoras, esperando que o maldito vírus, que se propaga com uma facilidade e uma velocidade indescritíveis, não descubra nenhuma brecha penetrante, por cada vez que nos expomos um pouco. O afastamento social determina a segurança de cada um .
Portugal conheceu hoje a sua primeira vítima mortal.  Há cerca de 190000 infectados pelo mundo e mais de 7800 mortes já registadas.
Nos hospitais, os técnicos de saúde receiam um recrudescimento de casos.  Muitos deles também já foram infectados.  As famílias estão desarticuladas.  As crianças e jovens estão em casa, com as escolas de todos os graus, encerradas.  Os adultos cujo trabalho lhes permite, trabalham de casa, executam tele-trabalho.
Os outros vão em frente.   Não há como não ir ...
Está no horizonte próximo, daqui a quarenta e oito horas, a aprovação do Conselho de Estado, para a declaração do Estado de Emergência no país.  Nunca tal havia ocorrido antes.

E eu por aqui ...
Fazendo parte de um grupo de risco, devido à faixa etária em que me incluo, estou atenta em permanência a todas as medidas, informações e desenvolvimentos que circulam na comunicação social.  Sofro por todos, em especial pelos meus, obviamente.  Sinto-me encurralada, sem espaço de manobra, sem nada poder fazer para minorar o que se vislumbra no horizonte.
Tenho uma filha na área da Saúde, a trabalhar num dos Hospitais de referência em Lisboa.  Condições precárias, até mesmo a nível de protecção pessoal destes técnicos de saúde...
Vivo apavorada com a hipótese de que ela possa vir a ser contaminada.  Tem uma filha de dois anos e o companheiro trabalha fora do país na Comunidade Europeia.
Não há rede de apoio.  A família é muito pequena.  Não me "deixam" avançar para ficar com a Teresa, se a questão vier a colocar-se.  E a angústia que isso me transmite, associada ao medo que tenho tentado controlar, mas que está a ultrapassar-me, começa a desequilibrar-me física e psicologicamente, e a tornar as minhas noites, num vazio de sono e descanso !

Ao acordar de manhã, neste isolamento voluntário que me confina a este quarto, nesta casa de silêncios, onde apenas os meus dois gatos me acompanham ... longe da família, dos amigos, dos conhecidos ... dos afectos ... afastada dos lugares, com as rotinas comprometidas e com as notícias trágicas a pingar a um ritmo alucinante na televisão, no telemóvel, no computador ... sem um fim à vista ... sem uma melhora que se vislumbre ... sinto-me prisioneira, atrás das grades onde o MEDO, a IMPOTÊNCIA e o DESESPERO me confinam ...
E digo-me  em jeito de tentar tranquilizar-me, racionalizando,  que o Homem sempre se transcende, sempre se reergue e renasce ... mesmo que a onda pareça ser incontível !!! Essa é a sua História de Vida !!!
E que a seguir à tempestade, um céu azul e uma Primavera a despontar daqui a cinco dias, nos aguardam !!!



Anamar

Sem comentários: