segunda-feira, 21 de março de 2022

" A PRIMAVERA NOS CORAÇÕES DE KIEV "



O mês de Março está beirando o fim.  
O tempo que tem persistido teimosamente em se manter seco, ensolarado ... primaveril, como "soi dizer-se", afinal, com a chegada do equinócio da Primavera, cobriu-se de nuvens e abriu as torneirinhas lá de cima com um fim de semana a convidar a casa e lareira. A semana que hoje se iniciou promete igualmente continuar chuvosa.

A Primavera portanto, ao contrário do que aprendi nos bancos da primária como sendo data certa, não chegou este ano a 21 mas sim a 20, pelas três e meia da tarde.  Já cá canta portanto, há mais de vinte e quatro horas.  Isto, no domínio do científico, pois a Natureza, essa sim, mercê da amenidade do clima que se tem feito sentir, há muito a anunciava.  As flores, os pássaros, a multitude de manifestações de uma renovação bem evidente por todo o lado, não deixavam margem para dúvidas .  A vida a continuar, a renascer, a desabrochar da escuridão, do ensimesmamento, do silêncio e da hibernação a que a estação anterior a votara. 
É sempre emocionante ver como a paisagem se altera de um dia para o outro.  É fantástico e deslumbrante assistir ao engalanar das árvores e arbustos com pequenas folhas verdes promissoras, generosamente vestindo os ramos esquálidos ainda há bem poucos dias atrás.  É extasiante assistir à explosão de cores na floração de toda e qualquer humilde plantinha ... 
Haja o que houver, há que continuar ... parece ser a eloquente mensagem da Vida !...

Hoje também se comemora o Dia Mundial da Árvore e da Floresta, Dia Mundial da Poesia e igualmente da Luta contra a Discriminação Racial.  Todos eles, segmentos de um objectivo maior e universal, o respeito e a dignificação do ser humano no quinhão de terra onde vive e com quem o divide.

Por árvore, por floresta, por respeito pelo nosso semelhante e por poesia ... a poesia que nos envolve e deve envolver nos dias das nossas existências ... por toda esta mescla de sentimentos que se atropelam e misturam sem ordem ou rumo,  veio-me à ideia a inesquecível frase com que Palmira Bastos fechava o palco na inesquecível peça "As árvores morrem de pé" ... "morta por dentro, mas de pé, de pé, como as árvores"...
E obviamente não é estranha a esta memória a simbologia da Ucrânia, do povo ucraniano e em última análise, do seu presidente ... o resistente e sonhador Zelensky.
Falta-lhe na mão a bengala com que Palmira, batendo no soalho do Avenida, erecta, invencível,  inabalável,  numa  voz  tonitruante,  gritava  " ... porque  as  árvores  morrem  de  pé !"...

Assim a Ucrânia.  Assim o seu povo.  Assim a admiração crescente e indómita que nutro por aquela gente.  Um povo inteiro, uno, de cabeça erguida, de coragem e valor ... um povo que não se verga e que na tempestade encara o vento de frente ... que não aliena a esperança e que do sofrer faz renascimento, como cada Primavera ...

Em Kiev, na precariedade de condições de segurança e no olho de um furacão de medo dos bombardeamentos e explosões que se intensificam, setenta voluntários, na praça central, junto à Catedral de Sta.Sofia ( na maioria, mulheres ), construíram, com mais de um milhão de tulipas, o Tridente Ucraniano Tryzub, símbolo cultural e identitário que consta no brasão de armas do país.
O Tridente é uma representação com significância religiosa, militar e política.
Do ponto de vista religioso, foi introduzido na Ucrânia pelo príncipe Vladimir, no século X, aquando da introdução do cristianismo no país. Representa a Santíssima Trindade.
Política e militarmente é igualmente um símbolo representativo de poder, autoridade e força.

E porque na Ucrânia é tradição, no dia da chegada da Primavera os homens oferecerem flores às mulheres, este tridente agora desenhado em tulipas no chão de Kiev, pretende, desafiadoramente, representar uma indomável celebração espontânea da esperança e uma justa homenagem aos que combatem e à paz que se anseia e acredita alcançar...
... porque até no horror da guerra a poesia pode sempre  iluminar o coração do Homem !

   

Imagem da Internet - Um pardal segura um pedaço de pão num parque de Kiev, no primeiro dia quente de Primavera na Ucrânia.

Anamar

sexta-feira, 18 de março de 2022

" RÉQUIEM PELA UCRÂNIA "

 


Uma vala comum ... 
A escavadora está no topo, em prontidão.  Será seguramente alargada nos limites, pois os corpos não param de chegar.  Caixões não existem, os sacos plásticos fazem-se à terra uns sobre os outros, amontoados, como amontoados chegaram. Gente anónima, talvez vizinhos, talvez amigos ... talvez desconhecidos ... num mesmo fim desesperador. A vala comum alberga todos por igual ...
Adultos, crianças, homens mulheres, na mesma morada final ... sem uma lágrima, sem uma palavra, sem uma flor... A dignidade possível neste retorno à terra gelada !
E silêncio.  Um silêncio profundo, porque silêncio é tão só o que existe entre os que ainda desafiam a sobrevivência.

Mariupol, a cidade mártir na fronteira leste da Ucrânia, paredes meias com o algoz...
A cidade sem água, sem luz, sem energia, sem alimentos.  A cidade em que a neve se derrete para se ter a água que salve da desidratação.  A cidade em que as temperaturas a baixarem, aceleram um fim inevitável.  Um sofrimento e uma dor que assolam o corpo e emudecem a alma.  Já não há forças para resistir, os corredores de evacuação humanitária retrocedem sistematicamente, pois o cessar-fogo não  é respeitado e morre gente nas colunas de refugiados.  Porque em Mariupol continuam os bombardeamentos indiscriminados. Um apocalipse, um extermínio, um genocídio total ...
Há dias, um hospital pediátrico e uma maternidade foram totalmente destruídos. Ontem, um teatro que albergava mil habitantes da cidade sem esperança, também ... E escolas e infantários e zonas residenciais reduzem-se a escombros.  A população acuada, cercada, encurralada ...

O sudeste, na ânsia de ser criado todo um corredor territorial que ligue o Donbass à Crimeia e aos acessos do Mar Negro com o final domínio de Odessa, encerrando dessa forma o acesso da Ucrânia ao mar, parece ser o desígnio neste momento.  Não importa o que se leva pela frente, não importa que preço seja pago para travar esse objectivo terrorista.
Odessa, a "Pérola do Mar Negro", terceira maior cidade da Ucrânia, cujos habitantes se mobilizaram em esforços, protegendo com sacos de areia das praias, os monumentos de valor inestimável, aguardam dia e noite a invasão, presumivelmente por terra, mar e ar.  Na linha do horizonte, um elevado e ameaçador número de fragatas russas, parece estar estacionado, aguardando.  Por terra, a cidade será alcançada depois de dominada a cidade de Mykolaiv, o que ainda não foi conseguido.
Os nervos, por esta espera desesperante, por esta incerteza angustiante estilhaçam mais e mais a determinação dos habitantes que ficaram, já que, também aqui, o êxodo das populações tem engrossado de dia para dia.
Não esqueçamos que Odessa é uma cidade matriz em termos das rotas comerciais. O seu porto de mar, o mais importante da Ucrânia, é a porta de acesso ao exterior.  A cidade, de uma monumentalidade fantástica, aliás como Kiev também o é, está classificada  pela Unesco como património da Humanidade !

Lviv, aonde a imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima chegou ontem, representando simbolicamente a resposta ao apelo da população católica, que vê na imagem de Fátima a protecção mas sobretudo a paz que tanto anseia, acordou esta madrugada também sob bombardeamentos.
Local de encontro dos que fogem, porta de acesso à Polónia, principal fronteira de saída para a Europa, Lviv tem sido o último lugar deixado para trás na Ucrânia, e o primeiro em que os milhões de fugitivos que anseiam "respirar", encontram com alguma dignidade, apoio, socorro, amparo e ajuda.
Para lá da fronteira, equipas de voluntários em toda uma logística montada no sentido de prover às necessidades básicas de quem se desloca com pouco mais do que uma mala, filhos pela mão e ao colo, animais de estimação e os idosos que nunca seriam abandonados, trabalham incansavelmente dia e noite, tentando mitigar a dor da separação familiar dos que partem e dos que ficam ( não esqueçamos que os homens entre os dezoito e os sessenta anos não podem abandonar o país ), a dor do infortúnio que ali os trouxe, o desgosto da perda de toda uma vida ... e o medo, o medo aterrador que se lhes colou na alma e no coração, não só por tudo o que passaram, mas também pela angústia da incerteza e do desconhecido futuro !
E os corredores humanitários progridem bem além das linhas fronteiriças, e atravessam todo um continente solidário, generoso, mobilizado e disponível, até onde haja um tecto, uma cama, um pedaço de pão e quem sabe, um trabalho ... em suma, um chão onde a cabeça possa dormir tranquila, onde as bombas não aterrorizem o sono dos mais pequenos, onde as sirenes de bombardeio não ecoem e onde um futuro talvez possa reescrever-se, no horizonte de cada um ...

Hoje, Lviv amanheceu com a Praça Rynok no centro da cidade, albergando cento e nove carrinhos de bebé, em memória das cento e nove crianças já falecidas neste inferno.  Um imenso vazio  perpassa por ali, uma solidão e um desespero absolutos abatem-se sobre aquela imagem devastadora ... uma revolta despedaça-nos o coração, e não há como impedir que as lágrimas corram pelas faces.  
Cento e nove carrinhos, devolutos, onde jamais se sentarão os inocentes que nos deixaram, vítimas das bombas, dos mísseis, da destruição... talvez da desidratação, talvez do frio, talvez da fome ...
Não estarão para narrarem o que a loucura dos Homens lhes fez.  Não estarão para continuarem a perguntar-nos "porquê" ?!  Como foi possível que tudo isto acontecesse em pleno século XXI, num continente chamado Europa ?! 

Não vou alongar mais este meu texto.  Já não tenho fôlego para ouvir os relatos, ver as imagens, olhar, olhar perdidamente, um país que infelizmente não visitei, cidades que infelizmente não conheci ... enquanto o foram !...
Hoje, dentro de mim, só há silêncio, um silêncio sepulcral, pesado, sufocante, de dor, de vergonha mas sobretudo de perplexidade !!!

Anamar

terça-feira, 8 de março de 2022

" 8 DE MARÇO DE 2022 - DIA INTERNACIONAL DA MULHER "

Hoje este meu post não passa de uma reportagem fotográfica, com recolha de imagens veiculadas na Internet, que me tocaram particularmente, e que do meu ponto de vista, representam momentos, lugares, pormenores, rostos ... em suma, registos de dor e sofrimento da realidade ucraniana ao dia de hoje, em que a guerra parece eternizar-se.

Particularmente, neste Dia Internacional da Mulher, sem dúvida o seu papel neste inferno, estará aqui bem documentado, e estas imagens também serão uma justa homenagem à MULHER !
A mulher, a mãe, a esposa, a que luta, a que suporta, a que protege, a que ampara, a que resiste, engolindo e tentando sempre  subtrair as crianças a um mix explosivo e destruidor de sentimentos e emoções, seguramente indeléveis nas suas vidas !

UCRÂNIA 


































Anamar

segunda-feira, 7 de março de 2022

" E O FRIO POR TODO O LADO ..."

 


E no entretanto só penso no frio ... 
Este frio gélido que se abateu, que se nos entranha nos ossos, que nos cerca o coração !  É um frio por fora, mas sobretudo por dentro, nos meandros da nossa alma !

Também lá ... sobretudo lá, no cenário da guerra, o frio ainda é mais frio, mais impiedoso e indiferente.  Lá, onde há homens a lutar em condições inenarráveis, onde há famílias confinadas a abrigos também eles gelados, caves onde a escuridão procura esconder todos os sinais de vida, o frio torna-se ainda mais carrasco. 
Lá, onde as crianças que já não têm tecto, que já não têm chão, que já não têm respostas porque também parece não terem amanhã, esperam o que ninguém sabe, para quando ninguém sabe ... o gelo invade, maltrata, aniquila ...
A energia eléctrica providenciadora do aquecimento vital à sobrevivência das populações, cortada em muitos locais, é mais um dos crimes desta guerra maquiavelicamente concebida.
Como se sobrevive em temperaturas negativas, no meio duma precariedade total?
Como sobrevivem os idosos ?  Como sobrevivem os recém-nascidos nas maternidades também elas, bombardeadas?  Como sobrevivem os animais e as crianças que com eles dividem o infortúnio ?

Nas bermas das estradas, caminhando a um ritmo muito acima do que as suas pequenas pernas lhes permitem, transportadas aos ombros, em carrinhos, ou nos braços cansados de quem as carrega horas intermináveis, envoltas em cobertores, embrulhadas nas mantas que a solidariedade lhes dispensou, vão indo, pressurosamente, sempre em frente, num êxodo que não se compadece da urgência da chegada ... para um qualquer sítio onde as bombas não caiam, onde as sirenes não ecoem, onde os mísseis não atinjam ... a um horizonte onde haja um novo arco-íris à sua espera !
A neve continua a cair.  Também ela, leve, sussurrante, indiferente ... gelada !
Os rostos são fustigados, o cansaço apela à paragem.  Mas o tempo urge.  Amanhã poderá não haver escapatória, amanhã a lei marcial poderá ser imposta, amanhã as fronteiras podem cerrar-se ... amanhã pode ser tarde de mais para estarmos vivos !...
E não sei como, reúnem as forças que pareciam inexistentes já, e continuam em frente.  Muitos sem sequer terem destino, lugar ou alguém à sua espera ... movidos apenas pelo instinto da sobrevivência, pela esperança num amanhã mais justo e pela fé de que aquele chão, de novo, um dia os voltará a acolher !

Não importa que a neve, na paisagem branca, esteja agora tingida do sangue de tantos que já tombaram, não importa que o amarelo dos campos de trigo continue envolvido na esperança do azul de um céu límpido, em dias sonhados outra vez ... não importa que desígnios obscuros a crueldade dos Homens pareça ter-lhes desenhado ...a terra dos girassóis sempre será o seu berço !!!...

Anamar

sexta-feira, 4 de março de 2022

" AS MÃES DA UCRÂNIA "


A

Amanheceu um sol envergonhado no meio de nuvens dispersas empurradas por vento desabrido, sobre um céu azul por detrás.  São novelos brancos, como se de algodão fossem.
Alguns chuviscos em desacerto, anunciam uma Primavera prematura que espreita anormalmente, já faz tempo.

Mais um dia de guerra.  Mais um dia de mágoa, tristeza, uma angústia mortal com tanto sofrimento e dor, que todos os que estão lá longe, no meio das balas, dos bombardeamentos, da destruição e das chamas, vivem por cada dia, na incerteza do momento seguinte.
Sim, porque a vida faz-se ao instante !
Eu ando por aqui, deambulando pelo emaranhado das notícias, das imagens, de toda a informação que circula nos meios de comunicação social, pela televisão prioritariamente, pela internet também.  As notícias são veiculadas em tempo real e não conseguimos abstrair das mesmas.
Lembro os tempos iniciais da Covid, em que doentiamente, reconheço, vivia pendurada também, de tudo o que ia chegando.  Lembro o medo que sentia, o pavor pelo desconhecido que o futuro nos reservaria, o cerco que nos mantinha reféns dos acontecimentos, dos riscos, dos perigos ...
Era também uma "guerra" contra um inimigo quase desconhecido e invisível.  Mas apesar disso, parecia mais controlável, pois dependia muito das posições, dos cuidados, da prudência, em suma, da consciencialização de cada um de nós, face ao cataclismo.
Também havia um país em comunhão, um continente em comunhão, o Mundo inteiro em partilha de esforços, de entreajuda, de solidariedade.

Mas a guerra que se trava na Europa centro-leste é muito mais atroz, mortal e injusta.  Independe dos esforços das vítimas para a conter, não obedece a nenhuma razoabilidade, sai de cabeças alienadas e psicóticas ... de loucos alucinados e assassinos.  É gratuita, persecutória, é unilateral e subjuga um país que, por buscar um modelo de liberdade e democracia para a sua vida, parece incomodar o vizinho, que se sente fantasiosamente ameaçado e age loucamente, duma forma déspota e bárbara ...
A sanidade mental de Putin e seus coadjuvantes está claramente afectada, pois só alguém desequilibrado, alucinado e incontrolavelmente louco, pode percorrer estes caminhos irreversíveis de violência e crime ...

Esta noite sonhei uma vez mais com a minha mãe.  Sonho quase todas as noites.  
Nos sonhos eu nunca "vejo" as pessoas, só as "sinto".  Sei que estão ali, reconheço as suas presenças, mas infelizmente nunca lhes defino os rostos.
A minha mãe estaria destroçada com tudo o que se vive, com a angústia da incerteza dos tempos vindouros, mas sobretudo com a dor e o sofrimento da população civil, mormente os velhos, as mulheres e sobretudo as crianças ... sobretudo as mães ...  
É uma dor de alma sem tamanho, é um aperto no peito, um nó na garganta e lágrimas incontidas que nos escorrem pelo rosto a cada nova notícia, a cada novo relato, a cada nova imagem.

As "mães" da Ucrânia, emocionam-me, enternecem-me, deixam-me perplexa e rendida.
Falando há dois dias com uma família ucraniana amiga, radicada em Portugal há mais de vinte anos, quando lhes manifestei o meu apreço e admiração pela forma como o seu povo corajosamente enfrenta e atravessa o caos do seu país ... diziam-me, revoltados :" somos um povo pacífico, trabalhador, honesto e muito paciente, mas os nossos valores e a nossa terra, são intocáveis !  Vamos defendê-los até ao fim !"
Essa bonomia, resiliência e força interior transparecem nos rostos. A coragem e a esperança acendem-lhes os olhos, quase sempre azuis.  São pessoas contidas, raramente deixam fugir uma lágrima das que teimosamente lhes assomam, denunciadas pelo embargo da voz. 
Percebe-se serem almas sofridas e doídas que enfrentam o perigo, a dor física, a dificuldade, a falta de tudo ... mas também o desconhecido, a perda das referências, a perda do seu chão, as suas casas, o seu trabalho, os afectos ... a vida !
São mulheres que têm que escolher dolorosa, violenta e desumanamente ... entre os que ficam e os que levam.  Entre os pais idosos e vulneráveis, os maridos, companheiros, namorados ( que ou são obrigados a ficar p'ra lutarem, ou simplesmente se recusam já a  deixar a terra que é a sua ) e que deixam para trás, e os filhos, que têm que ser poupados custe o que custar ...
E fazem-se ao caminho, apesar do risco, do medo, da exaustão, pelas estradas, em comboios apinhados, em autocarros incertos, com "pencas" de crianças entre os braços e os colos. As suas e as dos outros, que lhas entregaram à guarda.
Há que salvá-las do genocídio !!!
E finalmente, nos vidros das carruagens é depositado um último beijo, daqueles que na gare vão olhando o comboio que se esbate na distância ...
Haverá um amanhã ?  Haverá um reencontro feliz ... ou será apenas um último adeus ??!!

Cá fora, o frio é gélido ! A neve teima em cair implacável ... "vai ficar tudo bem !" sussurra-se ... um carinho, uma festa, um afago nos rostos assustados ... "vai ficar tudo bem !"...

Lembrei a  Guerra Colonial ... as "mães" da Rocha do Conde de Óbidos ... Lembrei a Argentina ... as "mães da Praça de Maio" ...

Sempre soube que a coragem, a esperança, a força, a fé e a abnegação, têm em todo o mundo, rosto de mulher ... muitas e muitas vezes, rosto de MÃE !!! 😭😭😭












Anamar

quarta-feira, 2 de março de 2022

" GUERRA NA EUROPA "

 


Século XXI -  Portugal  -  o mais ocidental retalho da Europa

O que parecia impossível acontecer nos tempos que correm, afinal aconteceu bem debaixo dos nossos olhos, aqui na "nossa casa", a Europa : a guerra, outra vez, volvidos já tantos anos após a Segunda Guerra Mundial !
Numa sanha megalómana e uma ânsia de poderio desenfreado, o ditador russo psicopata e louco Vladimir Putin invadiu a Ucrânia, numa agressão gratuita de um estado a outro estado soberano e livre.

O leste europeu, nomeadamente depois do desmembramento da hegemonia soviética, com a independentização das diferentes Repúblicas da ex - União Soviética, sempre configurou um barril de pólvora, constituindo uma ameaça latente e sem descanso para esses mesmos Estados recém-formados, quiçá para o Mundo.
Todo o conhecimento que a História nos disponibiliza é duma insegurança total.  A aproximação ao ocidente nas políticas adoptadas nesses jovens países democráticos e livres, passou a representar uma ameaça real para o Kremlin e para a cabeça doente do ditador.
Depois de já  se  haver revelado nos propósitos  perseguidos, aquando  da  anexacão  da  Crimeia em 2014 e da Geórgia, bem como as Repúblicas do Donbass, Donetsk e Lugansk, Putin não esconde a sua intenção de voltar a alcançar a reunificação da antiga e de má memória URSS.

Como um inimigo na sombra, frio e calculista, preparou cirúrgica e silenciosamente este assalto à Ucrânia, lenta e antecipadamente, reforçando ao que parece, a economia russa em termos de reservas que pudessem fazer face às presumíveis retaliações-resposta, nas sanções impostas pelos países mundiais, à invasão concretizada. 
500 mil milhões de dólares será a almofada económica disponibilizada para fazer face às dificuldades que, em consequência se possam vir a sentir.
O "gigante", arrogante e poderoso, portanto, nem chegará a abanar !...

E de facto, esgotadas as negociações envolvendo os Estados Unidos, Inglaterra, Israel, Japão, Austrália, todos os países da União Europeia, integrando a Nato e não só, como a Suécia e a Finlândia, ela que faz igualmente fronteira com a Rússia ... depois de uma posição de neutralidade e não condenação do ataque por parte da China, Índia e Emirados Árabes Unidos ... na madrugada de 24 de Fevereiro, pelas 5 h , de surpresa, as tropas russas entraram na Ucrânia por várias frentes : Bielorrússia, no intuito de alcançarem Kiev rapidamente, fronteira do Donbass, via Crimeia e nordeste do território.
As sirenes, silenciosas desde a Segunda Grande Guerra, voltaram a ecoar, avisando a população da necessidade imperiosa de protecção em caves, estações de metro, bunkers, igrejas ... enfim, todos os lugares que pudessem representar alguma segurança.
Além das tropas terrestres, os raides aéreos com mísseis e bombardeamentos calculados, alcançaram lugares militares chave, de comando, aeroportos, e centros nevrálgicos importantes.
Mas a população civil também não tem sido poupada e a destruição aleatória operada em zonas residenciais dos arredores de Kiev e de outras cidades importantes da Ucrânia, tem causado perdas materiais mas também humanas.
Desde então o caos tem vindo a espalhar-se por toda a Ucrânia, com as comunicações a falharem, os bens fundamentais a começarem a escassear, o recolher obrigatório e as baixas acentuadas já, dos dois lados.
O assalto a Kiev ainda não foi consumado mas a destruição da cidade é devastadora.  A população em magotes, fustigada seriamente, debanda em direcção à Polónia, Roménia, Moldávia, Hungria e Eslováquia, por todos os meios possíveis ... carros, a pé e em combóios esperados por desesperadas horas e horas.  O espaço aéreo está encerrado. 
São já mais de meio milhão os que sem norte, rumo ou dia de amanhã, simplesmente fogem ao horror dos bombardeamentos! E virão a ser muitos mais.
Levam uma mala, bebés ao colo, crianças de tenra idade pela mão.
Os peluches, uma ou outra referência afectiva são a única coisa que poderá confortá-las, no meio de um desconhecido que não conseguirão jamais entender !
Os animais domésticos, companheiros da vida não ficam esquecidos.  Cães e gatos, também eles sem que o percebam, dividem com todos, os subterrâneos protectores ...
As famílias separam-se, as mulheres, crianças e idosos deixam para trás os homens entre os dezoito e os sessenta anos, impedidos de deixar o país, para que o defendam !
Há mulheres que transportam as suas crianças e as crianças de parentes ou amigos.  Há que salvá-las da barbárie .
Foram distribuídas milhares de armas à população civil e o Presidente Zelensky apela à defesa da Ucrânia por parte de todos !  Ele mesmo, recusou a sugestão  dos Estados Unidos para ser retirado do país :
" A guerra é aqui -  terá dito - preciso de munições, não de boleia ! "

Os apoios humanitários não se fizeram esperar.  No país e nas fronteiras onde chegam, os refugiados têm o apoio possível e o auxílio por parte de Organizações Humanitárias.  
A Cruz Vermelha, a Cáritas, os Médicos do Mundo, a Unicef, são algumas das ONG que desceram ao terreno .
Os países de toda a Europa abrem portas para receberem os refugiados. Em Portugal agilizou-se o mais possível a passagem de vistos de entrada no nosso país. As famílias ucranianas sediadas há anos como emigrantes assimilados na nossa comunidade, aguardam de braços abertos, a chegada de quem foge ao horror.  As autarquias têm criado postos de acolhimento onde tem sido possível.  Angariam-se todo o tipo de géneros e contribuições para poderem acorrer à difícil situação dos ucranianos, que se mantêm.

E o Mundo impotente, reza, chora, paralisa com o terror e a violência gratuita que se abate sobre um povo paciente, resiliente, trabalhador, sério e honesto, habituado a sofrer, e que ainda assim, no meio do inferno encara os repórteres com um sorriso no rosto e pede que não o esqueçam, não o deixem só entregue à sua sorte, porque afinal, o seu crime é exigir o direito à esperança, à liberdade e à democracia !...
O Santo Padre, depois de ter chamado o mundo inteiro à oração, dirigiu-se pessoalmente à representação diplomática russa no Vaticano, intercedendo e apelando à razoabilidade dos dirigentes russos, no sentido de ser rapidamente alcançado o fim do flagelo, serem abertas negociações visando um imediato cessar fogo.

Os desenvolvimentos são ao minuto.  A Turquia, habitual aliada da Rússia, decidiu fechar à passagem da marinha de guerra russa, os estreitos de Dardanelos e Bósforo.  A Suiça, saíu da sua neutralidade e colocou-se ao lado dos países da Nato, corroborando das decisões tomadas.
A própria UE resolveu financiar e enviar equipamento militar com armas letais para as fronteiras da Ucrânia, situação que ocorre pela primeira vez depois da Segunda Guerra Mundial,  já que no terreno não pode ser um parceiro activo.  Pelo menos por ora.  Porque o envolvimento directo, em combate, enfrentando os russos, pode desencadear uma resposta imprevisível, demasiado arriscada e suicida por parte de Putin, que continua a reiterar ir até onde tiver que ir.  
Por alguma razão já fez ameaças claras e muito sérias, sobre a possibilidade de usar o "nuclear", se necessário for.  Para isso já colocou em prontidão o grau dissuasor elevado, no âmbito das cerca de 6500 ogivas necleares em seu poder ! 

Não consigo desligar de todos estes acontecimentos.  O mundo, fragilizado pelos mais de dois anos de uma devastadora pandemia que ainda não nos deixou, vê-se agora a braços com uma guerra feroz, ferindo de morte o coração do velho continente ...
Não esperava vir a viver ainda nada disto, nesta minha curta passagem pela Terra ...

Em suma, pode dizer-se que na Ucrânia falta tudo, menos  CORAGEM !...

SLAVA UKRAINI  !!!






Anamar

sábado, 26 de fevereiro de 2022

" A PROPÓSITO DE MAIS UM DIA ..."



Mais um dia de S.Valentim !
Já houve tempo em que eu tinha a mania que era romântica, mesmo daquela forma pura e dura de jantar à luz de velas, cartõezinhos a condizer, rosas vermelhas nas jarras e sonhos a saírem "pelo ladrão" ...
Já houve tempo em que eu embrulhava esta ideia em papel de presente com laço e fita a condizer, e a aconchegava bem juntinho ao coração ...

Hoje eu sei que tudo isto não passa de mais uma tremenda artimanha do consumismo que nos devora, e também sei que essas paixões desbragadas patrocinadas por um santo que apenas nos caíu no colo há razoavelmente pouco tempo, só existem na imaturidade de adolescências serôdias que lutamos por perpetuar pela vida fora.
Sendo um estado de graça, qualquer paixão é um pacote de vitaminas para a alma.  É a forma mais eficaz de colorir a vida, de adoçar os dias, de os tornar iluminados e leves. E por isso, com ela o caminho atapeta-se, o sol brilha, as flores perfumam mais ainda, o cansaço esfuma-se, o riso inunda os rostos, a alegria emerge como uma onda no areal ... e tudo passa a valer a pena, porque tudo parece tornar-se possível !

Só que, de intensa e fugaz a paixão tem em igual medida. E essa mágica poção que nos torna do dia para a noite invencíveis, poderosos, capazes duma superação permanente, duma felicidade sem limites e duma transcendentalidade absoluta, esvai-se num piscar de olhos, num despertar de madrugada densa, num descerrar de cortinas face a névoas espessas já dissipadas ...
E ficamos assim ... esta coisa desasada, desacreditada, com um amargor no espírito e um peso épico no coração ...

Mas como tudo passa nesta vida, como tudo é relativo e vale o que vale, a tudo o Homem resiste, tudo o Homem ultrapassa, a tudo o ser humano se adapta e habitua ... até mesmo ao descolorido dos dias, ao silenciar da música, ao adormecimento do coração que, pra não sofrer, deita para a sesta hibernante de tempos de crepúsculo...
E porque a biologia é sábia e nada há de mais perfeito que a Natureza, a passagem do tempo vai remetendo tudo aos seus devidos lugares, e até os sonhos se aquietam, porque talvez o seu tempo já tenha passado !
E a alma, contra vontade regenera-se !...

Anamar

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

" DESABAFO "


Porque quem não se sente ...

Aquela que "foi a minha Escola" aniversariou no passado dia 17, comemorando o seu meio século de História !  Não é coisa pouca ...

Entrei na mesma, como professora, no seu segundo ano de vida, no ano de 1974.
Constituía ela então, a única oferta no âmbito escolar, aqui na Amadora.
Anteriormente o Liceu Nacional de Oeiras era a alternativa.  Eu própria o frequentei enquanto aluna.  Assim, o Liceu Nacional da Amadora concretizou portanto, o sonho e a necessidade de uma população discente, num concelho com uma dimensão demográfica esmagadora.

Deixei-o, para a aposentação, 36 anos passados de actividade docente, no ano de 2010.
Cheguei no verdor da juventude, carregando comigo uma pasta de sonhos, de projectos, de esperança, de vontade e com o ânimo e a coragem que caracterizam uma fase da vida em que tudo parece possível, por nisso acreditarmos.
Naquela que "foi a minha Escola", hoje a Escola Secundária da Amadora ( ESA ), passei portanto, os melhores anos da minha vida.  Mais tarde, nela, as minhas filhas cumpririam igualmente o seu percurso escolar.
Nela ensinei, nela aprendi, nela investi o melhor de mim, do melhor que sabia e do que fui capaz.  Em suma, nela, sobretudo cresci !  
Com a entrega e a dedicação a que a noção interiorizada da docência me impunha, nela desenvolvi um trabalho sério, honesto, continuado e isento.
Como destinatários prioritários, sempre os alunos ocuparam a minha determinação, preocupação e esforço.  Num espaço que além de pedagógico privilegiava o companheirismo, a partilha, a entreajuda ... em suma, o afecto, semeei e colhi até hoje, boas memórias, boas amizades, boas histórias recheando a minha própria História.
Mas porque o trabalho do magistério não se faz, nunca se faz sozinho, tive sempre ao meu lado companheiros, pares, colegas ... irmãos.
Nos 36 anos, na ESA, foram muitos e diversos aqueles com quem dividi trabalho, ansiedades, preocupações ... muitas alegrias, êxitos e também obviamente algumas frustrações.
Por isso, guardo até hoje, no coraçao, um punhado de amigos daqueles que nos enchem a alma, amigos de "valer a pena", que sempre presentes, me ajudaram a percorrer a estrada, que me deram a mão se o momento de queda era iminente, que me insuflaram ânimo se o cansaço começava a dar sinais.
E creio poder garantir que, grosso modo, este meu texto poderia ser escrito por qualquer um deles.

Lembro todos, desde os que ocupavam lugares de topo na hierarquia organizativa da Escola, a todos os que foram dividindo comigo, ano após ano, as diferentes tarefas que além da leccionação, nos cabia desempenhar.
Mas porque mais de metade da minha carreira foi desenvolvida no período nocturno, guardo obviamente um carinho muito especial, um apego de afecto e gratidão sentidos e uma memória bem viva dos que, hoje também na aposentação, mais perto ou mais longe fisicamente, não posso esquecer !

Este meu texto não pretende de nenhuma forma ser, nem uma prova documental da minha actividade profissional, menos ainda a apologia narcísica da minha pessoa.
Não ! Nada disso encaixaria no meu perfil personalístico.

Só que ...
aquela que "foi a minha Escola" fez, como dizia, 50 anos de existência ao serviço de toda uma comunidade educativa, geração após geração.
E para promover a efeméride, uma comissão organizadora decidiu e bem, criar um programa criterioso e diversificado de eventos, para a festejar.
Entre outros, a montagem de uma exposição documental do percurso de vida da Escola, patente nas próprias instalações, o descerrar de uma lápide assinalando a data, pelas mãos da presidente da edilidade Dra. Carla Tavares ( ela que também foi aluna da Escola, quando jovem ), assim como o espectáculo " 50 anos da ESA ao serviço da Educação ", com lugar nos Recreios da Amadora e com entrada limitada a convites.

A divulgação deste exaustivo programa das festividades foi contudo restringido, lamentavelmente, à rede social FB ( que obviamente dispensa demais apresentações em termos de idoneidade, categoria e credibilidade ).
Acresce que a generalidade das pessoas ( professores e empregados ) que, já não estando no activo, não estavam em contacto directo com a Escola, não mereceram portanto nenhum outro tipo de informação privilegiada sobre o mesmo, e sem que tal pareça ter constituído alguma preocupação ou acautelamento por parte dos responsáveis.
Só podemos pois lamentar, que tão irresponsavelmente tenhamos sido tão facilmente dispensados e descartados !
Também questiono o critério que terá presidido por exemplo, à distribuição dos convites para o acesso ao espectáculo nos Recreios da Amadora.  Quais foram os "filhos" e quais os "enteados" ?  A quem couberam os "bilhetes premiados" ?  E porquê ?...

Argumenta-se com a Covid e suas restrições.  Não sejamos ingénuos.  Ela explica muita coisa mas não justifica tudo ... escusamos de escamotear responsabilidades !
Penso que o sentimento que nos envolve neste momento, é genericamente de mágoa, tristeza, desilusão e mesmo de indignação !
Afinal aquela que "foi a minha Escola", já não parece ser a "minha Escola" !!!

Não vou alongar mais este meu desabafo.  
Termino afirmando apenas que não me senti nada confortável por ( espero que com razoável antecipação ) parecer ter integrado já, o obituário da Escola !...

É que ... um Homem apenas morre quando é esquecido !!!

Anamar

domingo, 6 de fevereiro de 2022

" A VIDA SEMPRE CONTINUA ..."




Sempre a vida continua !
Igual, indiferente, fria e distante !  Afinal somos tão pouco ...

Desde terça-feira o Mundo ficou suspenso com a notícia duma criança de cinco anos, que caíra inadvertidamente enquanto brincava perto de casa, num poço seco de 32 metros de profundidade, e onde se encontrava prisioneira, em sofrimento, resistindo a uma morte tida como expectavelmente inevitável.
Quase cinco dias, lutando titanicamente ... resistindo além das forças humanamente possíveis !...

Isto aconteceu no norte de Marrocos, na aldeia esquecida de Ighrane, província de Chefchaouen, uma aldeia ignota ... sem história, onde gente sem história acabou fazendo História pelas razões mais adversas da vida !
Afinal, Ryan, cinco anos, era apenas uma criança a quem o futuro foi ceifado.
O seu lugar mobilizou-se, a sua gente mobilizou-se, o seu país mobilizou-se ... o Mundo não pôde ficar indiferente.  E todos sofremos, minuto a minuto, ora acreditando, ora sucumbindo à desesperança e à dor.
Não era nosso filho, não era nosso amigo, sequer nosso conhecido ... era apenas um menino !  E isso bastou para que a solidariedade universal e os melhores sentimentos de que o ser humano é capaz, emergissem dos corações, comandassem os espíritos, accionassem os recursos, e em uníssono, no terreno ou fora dele, se gerasse uma cadeia de esforços, de união, de ajuda, de transcendentalidade !

Mas Ryan não sobreviveu. Esgotou as suas últimas resistências, gastou as suas últimas forças ... e partiu, ironicamente pouco antes, parece, do momento do resgate !...

Não foi minha intenção fazer nenhuma reportagem do ocorrido.  Disso se encarregaram até à exaustão os meios de comunicação social, como sempre desgastantes, excessivos, doentiamente devassadores e desrespeitosos até, da dor e da privacidade mesmo daqueles que mais íntimos, estarão dilacerados e destruídos por dentro.  Os jornais, as revistas, as televisões, enfim, todas as cadeias noticiosas disso se encarregaram, duma forma minuciosa, doentia ... maquiavélica, como urubus sobrevoando a carniça ... porque há que "vender", tenha isso o preço que tiver !!

O ocorrido mexeu-me, incomodou-me, impressionou-me ... como não ?  
E apesar da onda de mobilização geral na busca do impossível, dos esforços sobre-humanos desenvolvidos, das tentativas desesperadas ensaiadas, a sensação de impotência, de pequenez, de incapacidade face a forças e circunstâncias que o Homem ainda não controla, remetem-nos e despertam-nos inevitavelmente para a nossa medida exacta, para  a  nossa  vulnerabilidade incontornável, para  a  nossa  fragilidade  insolucionável ...

Por outro lado ( e mais inquietante ainda ), é a certeza insofismável que esta onda de choque que abalou tudo e todos, este mediatismo que nos colou aos écrans e aos títulos das notícias, de norte a sul, de leste a oeste, que nos deixou de fé esperançosa em suspenso e que conseguiu sobrepor-se a muita da escorrência noticiosa da actualidade durante quase cinco dias, logo logo passará ... 
Iremos ainda falar muito, de alma compungida, sobre o Rayan, iremos lamentar muito, a injustiça do destino sobre um ser de tão tenra idade e lembraremos a dor lancinante que os seus pais estarão a experimentar, iremos colocar aquela expressão doída e realmente sentida ( não duvido ), de incompreensão sobre o porquê de tantas coisas absurdas nas vidas, e depois ... passará uma semana, um mês ... um ano ... nem tanto ... para que o cidadão anónimo tudo esqueça, para que a vida retome o seu percurso, para que as rotinas se restabeleçam ... para que a memória apague ... para que o sorriso volte e as lágrimas sequem ...

... e  sempre  assim,  com  tudo  e  com  todos ... simplesmente  porque "a  vida  sempre  continua ... "

Anamar

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

" PARALELO 66º 33' 44 '' N "

 





Ainda não falei do branco.  Do branco que não o é apenas ... mas que é laranja, róseo, cinza, verde, mas sobretudo azul !...
E aquele branco também não é apenas a cor que reúne e funde todas as outras, de uma vez só .  Aquele branco é cheiro, é luz e é lua, é silêncio, é agreste como o gelo que o reflecte e é tão fofo e macio quanto a neve que se amontoa.  É frio que corta por fora e é calor que conforta por dentro.  É real e é sonho.  É íntimo, é mítico e é místico ... é uma melodia esvoaçante ...
Aquele branco é uma história sem princípio nem fim que se desfia na penumbra dos abetos, na solidão de um lago gelado, ou no mar que se faz estrada, para que passemos.  É ausência e é presença, na luz que se acende na floresta ... Aquele branco é um convite ao irreal, sendo embora real e se sinta.  É um véu de noiva estendido na escuridão, pelos seres imaginários que adivinhamos ... só adivinhamos !
Não sei descrevê-lo, não quero descrevê-lo ... tudo o que eu ensaie dizer fica completamente aquém do que se experimenta.

Tinha uma enorme expectativa sobre esta minha viagem a terras do Círculo Polar Ártico;  era imensa a curiosidade que me invadia.  Afinal a minha relação com a neve é praticamente inexistente.  Não sou habituée de férias em estâncias de sky como tantos fazem anualmente, cumprindo, parece, uma espécie de liturgia ou ritual formal que os acompanha ao longo da vida.  Uma única vez me abalei até à Serra Nevada aqui na vizinha Espanha, e ainda assim não guardo memórias a contento. 
Ao contrário, privilegio destinos quentes, de sol inebriante, com pores e nasceres de cores envolventes.  Destinos de mares espreguiçados em areias mansas, de coqueiros e cheiros doces de trópicos ou equador por perto.  Destinos que convidem à nudez, ao primitivo, à imersão numa Natureza autêntica, onde a mão do Homem não molde ou defina.
Mas desta feita havia uma espécie de apelo à introspecção e ao silêncio, uma busca por um desconhecido promissor de outras sensações, que passavam muito por uma interioridade imaginada, um silêncio provindo de paisagens inóspitas e solidões apaziguantes.  
E lá fui !

A Lapónia é, de facto, qualquer coisa indefinível e simultaneamente mágica.  Há muito, muito tempo  que eu não via com tanta definição e precisão de imagem, um céu totalmente límpido, pontilhado de infinitas estrelas acesas sobre um breu absoluto. Um firmamento iluminado pelo clarão de uma lua cheia imensa, branca de prata, que reflectida pela neve tornava dia, a escuridão da floresta.
Duas horas de dia, no meio da penumbra e da escuridão que se abate depois das treze horas no relógio.
Um por-de-sol olhado longamente, como uma preciosidade imperdível ... venerado como religioso !...
Tudo foi silêncio, tudo foi mistério ... tudo foi irreal ! E o frio gélido que atravessava tudo mesmo, até às fímbrias das nossas almas, era algo puro, purificado ... quase apetecível !
Só sombras contrastavam nas clareiras desenhadas.  Só silêncio se perscrutava no estalido das agulhas dos abetos, pingando cristais de gelo como pequenas luminárias natalícias ...
Tudo tinha uma dimensão inalcançável, porque tudo o que é etéreo foge à mensuração humana ...

E por entremeio deste quadro silente e adormecido, quais fantasminhas irrequietos, as "luzes do norte", as buscadas e ansiadas auroras boreais, dançavam, indiferentes, um baile de máscaras, espreitando e fugindo, pincelando o escuro da noite, como se brincassem de esconde-esconde perante os olhos siderados de quem, estupefacto as aguardava !...




Anamar