segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

"ASSINO EM BAIXO ..."




Fui muito mimada. Fui filha única de pais não novos, direi assim, pai sobretudo mais avô que pai, pois nasci já ele tinha 48 anos e a mãe, de acordo com o normal nesses tempos , com trinta anos também não era já nenhuma jovenzinha.
Subi rapidamente ao "estrelato" naquela família de três pessoas, quase sempre de duas, já que o meu pai, sendo viajante de uma firma de ferragens, passava muito tempo fora.

Para a minha mãe eu era a boneca que lhe preenchia a vida.  Vivia para mim, viveu para mim e assim foi até que partiu.
Eu era boa aluna, reconhecida e premiada e isso deixava-a orgulhosa e dava-lhe profundo sentido à vida. Sempre fui o foco da sua existência, tornei-me a razão dos seus dias. Primeiro eu, segundo o meu pai, depois ela ... Sempre assim em tudo.
E como os "tesouros" por serem únicos e irrepetíveis, a gente guarda, protege, defende e cuida desveladamente, assim eu me tornei uma ave rara numa gaiola dourada. Nada me faltou, de tudo eu tive em excesso, apenas tiveram o cuidado de me cortar as asas, garantia duma protecção considerada imprescindível à vida. Não aprendi a voar ...
O mundo sempre foi visto por mim com olhos mais ou menos facilitadores, dificuldades materiais ou outras sempre me foram contornadas, os caminhos atapetavam-se de relva, ladeavam-se de flores e o céu era quase sempre azul e luminoso.
Deram-me o peixe ... pouparam-me de o pescar ...
Lido mal com a vida. Desajusto-me das suas dificuldades, ultrapasso os sofrimentos com dores acrescidas ... porque não o sei fazer de outra forma ...
Sou desajeitada no viver, não tenho armas para as guerras do dia a dia, a borboleta que há em mim nunca chegou a sair da crisálida ... 
Tornei-me assim um espécime estranho. Sou acusada de ser egoísta, egocentrada dia e noite, não me transcendo por nada nem ninguém, "sei lá o que custa viver" como me dizem, pagando em permanência o ónus de tudo o que não aprendi, sobretudo porque não me deixaram rasgar a carne nas quedas com que infalivelmente a vida não poupa ninguém ...

Em suma, sinto-me uma inábil por cada dia que desperta.  Sinto-me desinserida e não pertença de uma realidade na qual não me sei mexer.
O que me rodeia não me faz sentido, as coisas e as pessoas não me fazem sentido.  A linguagem que falo parece outra, sinto-me a mais numa realidade que custo a descodificar.  É como se me tivessem largado numa praça duma terra cujas pessoas não conheço, cuja língua não domino, cujas regras desconheço ... Uma estrangeira em qualquer lugar do Mundo !...
Sofrer de Alzheimer  deve ser algo parecido com aquilo que experimento, apenas gorando o entendimento daqueles que sabem que não padeço da enfermidade ...

Sinto-me muito, muito cansada !  
Pareço aquela alga que a maré traz e leva no recuo, para voltar a trazer e voltar a levar, porque afinal a maré sobe e desce e a alga não encontra, nos avanços e nos recuos, uma amarra, um cais, um porto  de abrigo que lhe desse descanso ... 
Uma alga à deriva, afinal !...

Em Agosto passado, Alain Delon, um ícone do cinema da minha geração, deixou-nos aos 88 anos, após ter solicitado uma morte medicamente assistida, permitida na Suiça, onde vivia..
Expressara várias vezes que este mundo já nada lhe dizia, e que era penoso viver nele.
"Envelhecer é uma merda!" ... assim expressou o cansaço interior que o tomava. 
Olhando fotos suas de diversas idades, ele que foi dos actores fisicamente mais belos da sétima arte, realmente, só se pode terminar com essa inequívoca e realista afirmação !!!

Anamar

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

" PERDIDA POR AÍ ... "

 



"Maria, põe aí umas florinhas a Nossa Senhora"
"Maria, manda rezar aí uma missa por intenção ..."

A Maria era a minha tia, irmã da minha mãe que viveu toda a vida no Redondo, terra onde a família em maioria nasceu, viveu e morreu.  De cá, em matéria religiosa, ambas sendo crentes mas estando longe, a minha mãe apenas fazia as adequadas solicitações.
A Nossa Senhora de Ao Pé da Cruz é a Santa Padroeira da terra, cuja imagem está juntamente com a de S.João, na Igreja do Calvário da vila.  É a imagem que conheci toda a vida e em cuja procissão, pela Páscoa  fui vestida de anjinho. 
A Igreja do Calvário fica assim numa ponta da vila, está quase sempre fechada e guarda efectivamente as imagens dos santos intervenientes nos eventos religiosos da vila, mormente o Natal e a Páscoa.
Tem,  lateralmente à porta da entrada, uma janelinha bem pequena, onde por vezes se vêem pessoas de joelhos que ali vão rezar.
Existiu desde sempre uma pagela de Nossa Senhora de ao Pé da Cruz que a minha mãe manteve perto da cabeceira da cama. Não sei onde a adquiriu, sei que já a tentei encontrar nas casas de artigos religiosos, em vão.  Era uma única pagela e acompanhou a minha mãe no caixão que a transportou.
De resto tenho apenas uma ou duas fotos de um domingo de Páscoa, nem imagino há quantos anos quando levei a minha mãe de propósito ao Redondo, para assistir à procissão. Penso que foi a última vez que ali foi ...

Hoje, a minha mãe já partiu há meia dúzia de anos, a Maria  já lhe levara a dianteira, a família rareava naquele Alentejo da minha meninice.
Hoje o dia está uniformemente cinzento, o bando de gaivotas deambula baixo por aqui, anunciando que lá para aquela costa que já foi muito minha, anuncia-se  borrasca, mais daqui a pouco.
Hoje é um dia estranho para mim, um dia em que parece, mais do que nunca, que estou de passagem.
Pareço não pertencer a nada nem a ninguém.  Os sítios já não sãos meus, as pessoas também ganharam outros trilhos na vida, e nada, mesmo nada tem esboços de pertença, mesmo as memórias que parecem querer fugir por aí...
Levantei-me perto das 11 e 20 deste dia lastimoso.  Comi uma torrada e um café e regressei à cama. As únicas palavras que me escutei foram dirigidas aos gatos. A casa é um silêncio absoluto.
Saio o estritamente necessário e rápido, pareço uma fugitiva num campo minado... Não me apetece ouvir o já ouvido, não me apetece repetir o já repetido.
A minha filha será operada dia 9, a um cancro de mama . Nunca fui uma pessoa orientada para dizer o que não sinto, fazer de conta que não tenho o pavor que me sai por todos os poros, fingir que, como dizem... "ah, isso hoje já não tem problema"... quando sabemos que numa intervenção de 6 /7 horas, e dada a especificidade da doença, tudo pode ter problema ...
Sinto-me como se estivesse segura e dependurada dum arame fino e ferrugento, e a solidão é a minha única interlocutora.
E é Natal... que raiva que eu tenho que seja Natal ! Apetece-me fechar-me em casa e não estar pra ninguém, não quero lembrar realidades que já foram, já aconteceram... não são mais minhas ... perdi-as por aí ... porquê lembrá-las ??? Nada mais faz sentido !

"Maria, põe aí umas florinhas a nossa Senhora"
"Maria manda rezar por aí uma missa por intenção "!

Só silêncio ... afinal as Marias já cá não estão ... e eu nem sei bem onde e como estou !!!...

Anamar

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

" OUTUBRO ROSA"

 


 Para mim, sempre Outubro protagonizava a verdadeira mudança de estação.  É aquele mês em que nós dizemos :"pronto, o tempo já virou  de vez", e não erramos, seguramente.
Os laranjas, os castanhos e os desnudos das árvores exibem-se, o sol amortece na luminosidade, os dias parecem começar a encarquilhar rumo à estação que promete chegar mais à frente, o chão atapeta-se dos ocres rodopiantes na aragem, a anunciarem o sono e o silêncio que hão-de vir ...
Outubro sempre me cheirou a castanhas assadas, a "pão por Deus", a dias em que já apetecia vir pra casa mais cedo, a miúdos regressados das tarefas diárias, trabalhos escolares a cumprirem-se, até porque a hora mudada, levaria para a cama também mais cedo.
Era assim Outubro, antecedia o mês dos meus anos, o que também particularmente não me entusiasmava sobremaneira, para mim sempre teve uma cara tristonha, esteve sempre associado à partida de alguns familiares conforme ouvia a minha mãe contar ... mês do cair da folha ... em suma, nunca gostei de Outubro !

E confesso, seguramente por distracção, nunca me apercebera, nunca precisara perceber, que por ano, todos os anos havia um "Outubro rosa", rosa de menina, criança ... mulher ...
Rosa de rosas, rosa de perfume, rosa de doçura, de carinho e afecto ...
Rosa de mãe, de filha, de irmã ... Infinitamente, rosa de esperança !...
E esse Outubro justamente, feminino seguramente, é a campainha de alarme para que nós, as mulheres sejamos por isso e nesse momento pelo menos, levadas a pensar no flagelo que se abate sobre milhares de nós, sejamos filhas, mães, amigas, conhecidas apenas, assim, na constatação de uma máquina, que inesperadamente nos apresenta a "ele", a "isso", que sempre nos pareceu coisa distante, coisa que só acontece aos outros ...
E tenhamos vinte, trinta, quarenta ou setenta anos, e tenhamos adquirido mesmo uma certa tranquilidade de já não nos sentirmos ameaçadas, "ele" aí está, fotografado numa máquina gelada de emoções, indiferente e carrasca, que ignora aquilo que acabou de fazer, ameaçar, massacrar e destruir famílias para o resto da vida ...

Como pode ser rosa este Outubro ??
Como pode ter amenidades se até o sol desaparece, como que envergonhado, no nosso horizonte ?

"Piso -1", informaram-me. Mas não seria preciso, se por cima da porta de acesso ao serviço, as letras eram garrafais ...  Talvez as lágrimas mas embaciassem ...
Uma boutique específica no que vende ... alguns produtos farmacêuticos, lenços bonitos, toucas, gorros, turbantes apelativos ... 
Circulam pessoas que exibem cabeças e rostos totalmente despidos de cabelos que esperam p'ra crescer, na proporção da esperança que teima tanto em não se anunciar ...

Como pode ser rosa este Outubro, se quarenta e seis anos é apenas metade duma vida ?  Se sete anos são os anos que ainda pedem colo, se são os anos em que se aprende, duma forma doce e aconchegante, como poderá ser a vida que nos espera, se os alicerces que nos irão espaldar para o já tão difícil, ameaçam derrocada ??!

E porque já não consigo pintar Outubro com as cores que lhe assistem, porque já não consigo, por cada dia que começa, despir a capa do medo, um medo colossal com rosto de monstro que tem a mania de começar o dia comigo e abençoadamente comigo adormecer, graças aos comprimidos que me mantêm em pé, vivo em silêncio, evito escutar tudo o que generosamente me dizem e que eu sei ser o que diria também ... apenas porque ... não há absolutamente nada a dizer ...
Falo com os gatos, pouco desço à rua, silencio o telefone, saio tardíssimo da cama e recolho cedíssimo, além disso durmo, durmo, durmo ...
Esta noite a minha mãe insistiu nos sonhos. Não sei como foram, mas ela esteve lá.  Em todos, que eu sei.  Deve ser porque a massacro o tempo todo, pedindo-lhe a ajuda que lhe pediria se por aqui estivesse, pedindo-lhe  o colo que ainda hoje me falta.

Enfim ... estarei simplesmente a viver o que milhões de almas já viveram. Não sou mais nem menos que ninguém.  Todo o sempre disse ( quase sempre desinibidamente entre amigos ) : " se um dia tiver um diagnóstico de cancro, ele irá acompanhar-me até ao fim... não acredito na cura !"...
Ontem, ouvi da boca duma médica, neste momento também paciente da doença  ( e já o escutei muitas vezes ) ... "um doente oncológico é SEMPRE um doente oncológico. O cancro não se cura " !

Como pode Outubro ser rosa ??!!...

Anamar

sábado, 12 de outubro de 2024

" DE QUE ADIANTA FINGIR ? "

 


Sou uma pessoa emocionalmente apegada às coisas.  Para mim, todas têm uma história, todas têm uma memória, um cheiro, uma palavra, um silêncio ... A minha casa é um repositório exaustivo de momentos, de cores, de lembranças.  Não é o valor material que encerram, mas é a súmula da significância a tudo a que a vida as foi ligando ... onde, porquê e com quê ou com quem, a minha vida as foi prendendo com pequeninos fios invisíveis de afecto.

À minha casa, com um ar depreciativo, já alguém chamou de "museu".  Reconheço que tenho objectos demais, porque não há efectivamente nada demais que eu não valorize.
Um seixo da praia, uma concha ou um búzio do outro lado do mundo, um guardanapo de papel de uma esplanada ou de um jantar especial, um galho seco colhido do arbusto de um caminho, já não falando em fotos largadas a esmo nas mais variadas molduras disseminadas pelas mesas e prateleiras, tudo são "tesourinhos", porque tudo foi e é Vida !
Chego a lembrar com absoluto realismo perante um determinado objecto, o momento, o cheiro, os sons, as palavras se as houve, com a exactidão de quem parecesse estar a vivê-los de novo.
Sou capaz de lembrar se o vento me desalinhava o cabelo, se o mar batia nos rochedos, se as gaivotas gritavam lá por cima, se era felicidade, mágoa ou dor, aquilo que experimentava então ...

Vivo há cinquenta anos na mesma casa.  Vim estreá-la após a construção e aqui fui ficando.
É um andar alto, o topo do edifício sem construções próximas, o que me permite o privilégio de uma amplitude de visão, do meu ponto de vista, absolutamente invejável.
O casario à volta fica distante e a disposição do prédio, nascente-poente, permite que eu veja nascer a lua e pôr o sol ...

O tempo que não se compadece, foi andando, e eu, andando com ele ...
A casa foi sendo a casa das quatro pessoas que constituíam a família, mas também tudo isso se alterou. Primeiro saíu uma para a sua nova vida de casada, depois saíu a outra que ansiava viver no seu espaço próprio, depois saíu o pai das duas porque nos divorciámos, e concluindo, fiquei eu.  Eu e o tal recheio do tal "museu" ...
Fiquei eu, mas bem acompanhada até hoje por dois gatos de cada vez ...
São, como costumo dizer, os meus companheiros de vida.
E depois, tenho o céu quase à altura da minha mão, tenho o que ainda consigo ver de Sintra, mais o que imagino da Serra que lá está na linha do horizonte, tenho o vento que quando sopra de borrasca me traz a chuva para os vidros da janelona mesmo aqui à minha frente ... e tenho o maior bem precioso deste meu varandim... os inenarráveis e ímpares pôres de sol no vermelho do poente com que se pinta !...
Ah, já me esquecia ... e tive uma ingrata gaivota que me rasava a janela e me trazia notícias das areias desertas e rendilhadas de espuma, quando o Inverno era traiçoeiro e por lá só havia silêncio ...
Foi à vida dela, como quase tudo na minha vida, foi também às suas vidas !!!...

O meu prédio acessa à rua por sete degraus.  Dificultam a vida a toda a gente.  
Vivem, respectivamente no primeiro e no sexto andar, duas crianças cuja locomoção se faz apenas por cadeira de rodas.  Têm-se feito démarches junto da Câmara para que a mesma possa pelo menos contribuir para a construção de uma rampa que permita a acessibilidade, já que o condomínio tem fracos recursos para o efeito.  Em vão !
Depois, a faixa etária dos condóminos poder-se-á dizer ser maioritariamente sénior...
Dito de outra forma, qualquer dia, ir à rua começará a não ser fácil.
A minha mãe faleceu com 97 anos, mas passou os últimos tempos de vida, quando também ela se deslocava em cadeira de rodas, em casa da neta onde aliás veio a falecer, e que vivendo numa vivenda, não tinha nenhuma limitação ao acesso à rua.
Essa casa fica na margem sul, eu vivo na margem norte.  A neta, sendo enfermeira, chamou a si generosamente, os cuidados com a avó, no fim da vida, levando-a pra sua casa.

Neste momento, volta a ser preocupação da minha filha, a minha permanência, só, nesta casa.
Hoje ela tem uma criança de sete anos que na altura não tinha, trabalha em dois hospitais, é também ela sozinha, sendo que o pai da menina trabalha fora do país intermitentemente, o que limita brutalmente a disponibilidade da minha filha, e a leva a dizer-me que temos que repensar a nossa situação.  Ela não poderá prestar-me a mim, obviamente, os cuidados que dedicou à avó !
E portanto ...


E portanto desenhou-se abruptamente frente a mim aquilo que todos queremos adiar "sine die", como escolhemos e como podemos preparar o fim da nossa estrada ...
Não que a questão no meu caso particular fosse premente, fosse para resolução rápida ( a minha idade e condição física não me anunciam por ora nenhum tipo de urgência ), só que mercê de outras questões práticas que não vêm ao caso aqui explanar, teria que ser no máximo dentro de um ano que eu deveria deixar esta casa e ficar a viver perto da minha filha, na margem sul, portanto ...


O impacto e o desgaste que tudo isto me tem provocado foi duma dimensão talvez absurda ... mas é a minha, é como eu sinto, como eu interiorizo as coisas.  E eu que já sou dada às angústias, às depressões, ao desânimo, a ver sempre o copo meio vazio, adoeci.  Neste momento é um anti-depressivo e um ansiolítico que vão comandando os meus dias, e já estive pior ...
É o fim que se anuncia, é a mágoa de uma vida de cinquenta anos nestas quatro paredes, rindo ou chorando, sofrendo ou sendo feliz, deixados para trás, são os objectos a escolher porque irei para um apartamento menor, é ir retomar a vida num lugar que nada me diz e onde não haverá um rosto familiar para dizer bom dia ... e depois ... sendo embora o mesmo, serão sempre outros pôres de sol que surgirão por detrás dos pinheiros !!!

Anamar

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

"ISTO É A VIDA ! "

 


Já fui uma devota seguidora das redes sociais.  Umas com um cariz, outras com outros, enfim, passava longas horas no computador sendo que a primeira coisa que fazia ao chegar a casa era abrir o que p'ra mim era uma verdadeira janela para o mundo.

Dominando minimamente as novas tecnologias com que tive contacto, como a maioria das pessoas da minha geração, tarde e a más horas, portanto com profundo desconhecimento da maioria das artimanhas, riscos e subterfúgios que as mesmas envolvem, elas surgiram pra mim como uma brutal novidade e potencialidades fantásticas.
Hoje percebendo ter corrido riscos absolutamente desnecessários e gratuitos, adorava, e fazia-o até às tantas da manhã, percorrer todos os trilhos, becos e avenidas que à minha disposição se ofereciam ao simples clicar de umas teclas.
Desde Facebooks, Linkedins, Taggeds, Instagrams, Twitters, Whatsapp e se calhar outras redes cujo tempo já deletou, por todas passeei , criei perfis, fiz conhecimentos, estabeleci diálogos, conversei com o anonimato que o pequeno écran teoricamente nos garante ...

Tive sorte, reconheço hoje com deslumbramento exaurido, novidade satisfeita, entusiasmo e paciência consumidos, que tive mesmo muita sorte.  As pessoas com quem me cruzei são pessoas que até hoje nunca foram desabonatórias ou aproveitadoras da minha ingenuidade.  Ao contrário, tornei-me amiga de umas e próxima de outras, sem dano ou beliscadura.

Enfim, foram outros tempos, outros anos, outros contextos, bem mais de uma década transcorrida !

Hoje, muitos dias nem o computador ligo, paciência não abunda, e as cores da paleta que me circunda, já são mais a preto e branco do que as luminosas cores do arco-íris de antanho !
Velhice ... penso que esse é o real diagnóstico !  Mas tenho pena que assim seja, garanto. Estava mais viva, então !!!

Mas este foi apenas o preâmbulo do que verdadeiramente queria abordar.
Eu constato, provavelmente todos constatamos que dos contactos de conhecidos, amigos ou colegas simplesmente, que compunham o conjunto dos nossos interlocutores, surgem dois, três, quatro... eventualmente mais, que já não estão entre nós.
Pensando por exemplo no Facebook, uma das mais utilizadas plataformas digitais em Portugal e talvez, além do Whatsapp, a que mais privilegia o contacto das pessoas da minha faixa etária e consequentemente a aproximação das mesmas diariamente, assim de repente, sem precisar de grande esforço de memória poderia referir rapidamente mais de cinco colegas de toda a vida cujos perfis por aqui andam e que infelizmente já nos deixaram.
Há pouco tentei estabelecer ligação telefónica com um contacto do Whatsapp, professor como eu, duma escola tanto quanto sei da zona da Serra da Estrela, que nunca tive o prazer de conhecer pessoalmente mas que me mereceu  o carinho e o apreço de alguém que me tratou sempre bem e com consideração, uma pessoa com grande espírito de humor e que aos poucos fiquei a saber que a sua saúde perigava mercê de uma doença grave que estava a agudizar-se a passos largos.
Entretanto ele foi silenciando qualquer contacto, e apesar das minhas tentativas de saber o que estará ou se terá passado, tudo tem sido em vão. Tentei em desespero de causa o telefone, que também não foi atendido...

Trata-se de perfis que a família não soube ou teve a possibilidade de encerrar, e isso incomoda-me profundamente.
No fundo, servem para que lembremos a nossa irrelevância na vida, que continua dia após dia exactamente da mesma forma, estejamos ou não por aqui !
É um facto que só seremos esquecidos, ou dito de outra forma, só deixaremos verdadeiramente de existir, quando deixarmos de ocupar um espacinho que seja, na memória de alguém. 
O comum dos mortais, aquele que não deixou nenhuma pégada existencial por razão em especial, "planará" por cá, no máximo por duas ou três gerações ... não mais !...
Lembraremos os pais, avós, tios, primos, colegas de profissão, aquele que se cruzava connosco na praceta e de quem demos falta no outro dia ... o vizinho do prédio, alguém que partilhou a vida connosco !  Os nossos contemporâneos apenas aguardam, como nós, lugar na fila ... Apenas!...

E isto é a vida, afinal !

Anamar

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

A " DESENCANTADA" - RITA, UMA HISTÓRIA DE AMOR E PACIÊNCIA

 



Voltei a ter brinquedos espalhados pelo chão, na minha casa.  Brinquedos, quero dizer, bolinhas mais ou menos saltitonas, mais ou menos barulhentas, ratinhos mais ou menos desmembrados, de outros tempos, de outras épocas.
Passo a explicar : voltei a ter um gato que brinca, que corre, que "caça", que espreita, que ensaia a "tocaia" e persegue a "presa" ... 
No caso em apreço e para ser mais precisa, uma gata.

Há largos tempos atrás falei-vos vagamente dela e prometi contar-vos a sua história de vida ... a dela e a minha com ela.  Pois bem, chegou o dia.

A Rita, assim se chama a criatura, anteriormente "Pequenota", baptismo feito pelo seu benfeitor na mata onde nasceu e viveu, veio inopinada e imprevisivelmente ter a minha casa, fruto de um complicado "acidente de percurso".
Nasceu, ao que parece, há cerca de seis anos, na mata onde regularmente realizo as minhas caminhadas semanais, numa colónia de gatos lá residente, tratada por alguém que lhes dedica muito da vida.
A Pequenota ( por ser de facto uma gatinha "mignonne" ) lá vivia feliz e contente.  Era tímida, convivia pouco com os colegas do "condomínio", era reservada e medrosa e não gostava de confusões.
Certo dia apareceu ferida numa pata.  Um rasgão cuja origem não se soube exactamente, se de um ataque de cão ( o local é frequentado diariamente por esses patudos, às vezes com trela, outras sem ), se de uma fuga precipitada pelo meio das silvas.  O que é facto é que apesar da cuidada assistência possível ministrada pelo Sr. Sérgio, a lesão infectou e a Pequenota já caminhava sem se conseguir firmar na patinha.  Havia que recorrer a quem pudesse resolver a situação séria em que o ferimento estava a descambar.
Eu e uma amiga, apaixonada também na primeira linha por gatos, cotizámo-nos e a menina foi assistida devidamente por uma veterinária que parcialmente "pro bono" prestou os seus serviços nesse sentido. Foi intervencionada e esteve internada mais de uma semana.

Corria o mês de Fevereiro, mês de Inverno como se sabe, com chuvas, ventos e sobretudo lama, muita lama na mata, condições adversas a que a Pequenota para lá pudesse regressar após a alta clínica.
Foi um drama arranjar solução para a situação.  Seria no mínimo desumano sujeitar a gatinha de novo ao habitat donde viera, obviamente.
Quer eu, quer a minha amiga, já detínhamos gatos.  Eu perdera o Chico havia meses e jurara que quando o Jonas partisse também, terminaria a geração de felinos na minha casa.  O sofrimento de se perder um ente querido ( é assim que considero os meus animais ) que dividem e partilham as vidas connosco, é duma violência atroz, que quase sempre nos leva a desistir de poder voltar a passar pelo mesmo, futuramente. 
E era essa seriamente a minha intenção.  Mas pôr a Pequenota na mata, de novo, naquelas circunstâncias, fazia-me doer a alma.
Assim, tentei de todas as formas arranjar-lhe um lar, contactando conhecidos, amigos, pessoalmente ou através das redes sociais, alguém que me garantisse a confiança e a certeza de que a gatinha seria bem tratada. Em vão !  Quem já teve não quer mais, quem tem não quer aumentar a população de animais em casa, pelas mais variadas razões e argumentos.  Enfim ... a Pequenota, agora Rita, ficou na minha casa.

E Rita, porquê ?
Simplesmente Rita em memória de um gato que tive há anos atrás e de quem ela é fisicamente uma réplica.  Foi um gato que entrou na minha casa como gata, por equívoco, o qual, decifrado já fora de oportunidade, fez com que Rita ficasse até morrer.
Foi o animal mais dócil, mais querido, mais "gente" ( embora eu ache que até é injusto e ofensivo conotá-lo com "gente" ) que eu tive na vida, um companheiro incrível, incondicional e dedicado de dia e de noite.
A Rita era uma sombra minha, vinte e quatro horas por dia, e deixou-me até hoje um vazio afectivo sem tamanho.

Voltemos à Rita actual.  Entrou dia 21 de Fevereiro, e entrou direitinha para debaixo de uma cama onde, mercê de algumas malas que lá arrumo, encontrou verdadeiros "bunkers" de protecção para os medos que a assolavam.  Ainda por cima o Jonas, residente há doze anos não a hostilizando, marcou devidamente a sua supremacia no território que detinha.
A Rita passou a viver em permanente susto e fui obrigada a criar para ela, naquele quarto, um verdadeiro quartel general com todos os precisos, pois nunca me passou pela cabeça violentá-la a nada.
Comida, água e areia passaram a estar em permanência para sua exclusiva utilização.  Não era portanto necessário deslocar-se ao resto da casa por onde o Jonas circulava.
E este estado de coisas perdurou, perdurou sem fim à vista.
A Rita não saía, o Jonas não entrava, quando eu tentava tocá-la para uma carícia, um miminho, levava uma valente sopradela e a Rita procurava, debaixo da cama, um reduto ainda mais seguro do seu ponto de vista.

Encurtando razões, passou Março, passou Abril, Maio ... e por aí fora e o estado das coisas não se alterou.
Achei então que deveria finalmente forçar um pouco a situação.  Fechei o quarto e obriguei a Rita a circular pela casa, com ou sem Jonas.
E chegámos ao hoje.  
A Rita "desencantou", e ainda muito reticente, passados sete meses de espera e paciência minha, mais sopradela menos sopradela, circula livremente pela casa, dorme na caminha que lhe destinara, partilha a vida com o Jonas, aparentemente sem os temores de outros tempos.
Ele, nos seus doze anos não lhe admite grandes veleidades.  Olha-a sobranceiro achando-a por certo uma "teenager" inconsciente, às vezes persegue-a para uma brincadeira que ela não entende, até ela se enfiar debaixo da cama, outras vezes estão mesmo lado a lado, indiferentemente em total tolerância e pacífica coabitação.

E o mais importante ... brinca, brinca desvairadamente com toda a cangalhada que já não tinha serventia há anos e anos.
De dia, mas sobretudo pelas madrugadas, em "caçadas" infernais, aos ratos já desmembrados, joga à bola com as cinquenta mil que por aqui existiam, honrando as características da boa felina que é, a Rita pouco se importa se eu acordo ou se eu durmo, só que ... nem uma festa, nem um carinho... nada ainda me é permitido !...

Acho que terei que esperar mais sete meses... quem sabe !!...

Anamar

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

DE NOVO OUTONO ...



Chegou o Outono, outra vez ...

Nasci nele mas sempre me angustio ao senti-lo nos calendários.  Na verdade, não é bem angústia daquela doída que nos espreme o coração.  É sim uma coisa mansa e doce manifestamente entristecida, é algo que tem muito de interioridade, de introspeção, de silêncio ...

Parece que tendo o Verão fechado portas, a natureza baixou a luz, reduziu o som, aquietou-se como que preparando um sono repousante e morno para breve.
As cores dulcificaram-se, os tons pastel passaram a imperar, os campos aveludaram nos dourados, nos ocres e já nos primeiros castanhos. 
Agora a pintura é a sépia.
Os cheiros que são de fruta madura no ramo, de compota doce nas prateleiras, de castanhas assadas nas esquinas, enternecem-nos a alma.
Aguarda-nos uma espécie de hibernação, uma sonolência de calma e paz à nossa volta.  Os pássaros já se ouvem menos pela mata, há bandos que em formação migratória atravessam os céus em caminhos definidos, o sol já procura guarida mais cedo lá longe, no horizonte desenhado, e tudo amodorra e silencia ...
O Inverno virá depois, as suas agruras hão-de recolher-nos ao ninho.

É inevitável que o Outono na natureza seja uma extensão do Outono da vida.  É inevitável que à nossa revelia sejamos levados a compará-los, e é talvez por isso que eu fico assim, melancólica e nostálgica.

E passa tão depressa, que já chegou o Outono outra vez !...

Anamar

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

" JONAS, O MEU COMPANHEIRÃO !... "

 



Hoje é um dia estranho, um dia tormentoso em que não controlo mais tudo o que me aperta aqui, no peito sufocado ...

O Jonas, o gato que vive comigo há doze anos e que tem estado hospitalizado há quase uma semana, vai ser intervencionado à bexiga para remoção de cálculos que, obstruindo-lhe a uretra, o impediram de urinar.  É uma intervenção dita simples, pouco invasiva, etc, etc.  Mas é sempre um procedimento obviamente de risco, como o são todos aqueles que envolvam logo à partida, uma anestesia geral.
Ele tem, ao que parece, um sopro cardíaco, não muito preocupante, mas existe, e de todos os exames de diagnóstico que foi fazendo ao longo do internamento revelou-se um quadro condicente com os anos que já viveu.  Uma coisa aqui, outra ali, uma deterioração generalizada da "máquina", um envelhecimento natural, um desgaste expectável, enfim ... como nós, os humanos, sinais do caminho já percorrido ...

Habituei-me a ver o Jonas como um gato todo "arrebitado", vivaço, lampeiro, saudável, brincalhão quando mais novo, lembrando, como eu costumava dizer, aqueles putos reguilas nos recreios da escola, que não param um instante, parecendo estar movidos em permanência a pilhas Duracell, e que apesar de ter sido sempre muito medroso, transpirava saúde e alegria.
Foi contemporâneo do Chico que me deixou há um ano e com quem manteve uma convivência sempre pacífica e amiga.  Eu sei que o Chico era um bonacheirão, queria era sopas e descanso e entre os dois gerou-se um excelente companheirismo.
Eram da mesma idade, tendo entrado aqui em casa com uma diferença de meses, o Jonas em Novembro de um ano e o Chico em Maio do ano seguinte.

Quando o Jonas entrou, veio encontrar um outro gato, a Rita, que na verdade era um macho mas que mercê duma partida do destino acreditámos ser fêmea, sem remissão possível.  Aquando descobrimos o equívoco, Rita continuou, e por Rita respondeu até morrer.
O Chico tinha o dobro do tamanho do Jonas, e era quem lavava insistentemente o Jonas até ele perder a paciência, voltar-lhe as costas e pronto, tudo acabava em paz.
O Chico foi embora e o Jonas passou a ter-me em exclusividade, como dona e companheira, e estando só no domínio total do território, dedicou-se a mim duma forma absorvente e total.  Era a minha sombra, onde eu estava estava ele, para onde eu ia, ia ele atrás ...
De dia e de noite, o Jonas não me dispensava nunca.  No Inverno era o cobertor mais espectacular que eu podia ter, aninhado nas covinhas do meu corpo, ajeitando-se se eu me voltava na cama.  Conversava claramente comigo, entendia praticamente tudo o que lhe dizia, só faltando falar ...
Quando a temperatura começava a subir, deixava a minha cama, mas nunca o meu quarto, perto de mim, nos lugares mais frescos e suportáveis.

Hoje existe um outro gato aqui em casa, ou melhor, desta vez é mesmo uma gata, cuja história contarei um dia destes.  E por ser igualzinha à Rita de que vos falei, batizei-a também de Rita, talvez Rita II, em homenagem àquela Rita que foi tão carismática e marcante na minha vida.
Só que, apesar do convívio entre os dois já remontar a seis meses, ambos medrosos, ela, tímida e apavorada com tudo o que a rodeia, não se tem conseguido normalizar a situação.  
A Rita vive o mais escondida possível, não mia ( penso que, dada a vida anterior que detinha, evitava deixar-se sinalizar ), aparece fugidiamente e quando se encaram, quer um quer outro bufam-se o mais que podem.
Pensei que com o actual afastamento do Jonas aqui de casa, ela se relacionasse com maior normalidade comigo e com o ambiente que a rodeia.  Mas não, pouca evolução parece ter ocorrido.
O  stress existente não beneficia nenhum dos animais e pode, ao que parece, potenciar o surgimento destes sintomas que levaram o Jonas à cirurgia.  Pode não determinar, mas pode favorecer.
Enfim, por vezes prejudicamo-nos tentando ajudar ...

De qualquer forma, é um insustentável vazio aqui em casa !  A ausência dele junto de mim, à noite sobre a minha cama, nos serões silenciosos, as suas "respostas" às minhas interpelações, e os "diálogos" até, criados entre nós os dois fazem-me uma falta atroz e inultrapassável.  Parece que uma luz se apagou por aqui, e só espero que possa retomar o seu convívio outra vez, bem depressa !

Afinal eles são parte da família que criámos, às vezes quase só uma pequena fatia que nos resta !

Anamar

domingo, 28 de julho de 2024

" ÁFRICA ... "

 


Enfim ... África é "aquela coisa " ... Não se descreve, não se explica, só se sente ...
É um misto de sensações e de emoções que nos extravasam e nos deixam impregnados até à alma, de algo invisível que nos desperta os melhores acordes da essência de nós mesmos.

Conheci África nos idos anos 70.  Vi-a mas não a senti, menos ainda a usufruí ... sequer desejei "tê-la".
Pela primeira vez deixara os meus pais, era uma recém-adulta, se é que os vinte anos se podem considerar já, como um período de adultícia.
Rumara a África onde não tinha ninguém, só eu e o homem com quem casara quinze dias antes.
Era uma menina acabada de sair do lar paterno, a minha vida havia experimentado uma reviravolta total.  Tudo mudara, tudo era desconhecido, enorme, avassalador, eu estava verdadeiramente num trapézio sem rede ... e África esperava.me.
Vivi dois anos em Luanda e aprendi, com algum sofrimento, a conhecer aquela terra ardente, de chão vermelho, de acácias e embondeiros, onde os limites e os horizontes estavam sempre mais além, onde o apelo da terra era um chamamento de cheiros, de cores e de sons estonteantes e irrepetíveis em qualquer lugar do mundo e onde a única palavra definidora era liberdade !...

Reencontrei África muitos anos depois, mas igual a si própria, envolveu-me de novo naquele abraço de carinho, de afecto, de calor humano, tão grande quanto aquele que abrasa a savana, tão generoso quanto o céu negro pontilhado de fogueiras acesas em cada estrela que o ilumina, tão misterioso e indizível quanto uma mágica que não se consegue alcançar nunca, porque os mistérios também não se explicam !

África é o cólo primordial, é o útero materno indefectível, é o irrecusável chamamento ás origens ... é o silêncio doce dum berço sem tempo, rumo à eternidade !...

Anamar

quarta-feira, 10 de julho de 2024

" PEDAÇOS "

 


A minha vida amodorrou como já aqui referi vezes sem conta.  É como se tivesse deitado para a sesta, debaixo de um chaparro lá pelo meu Alentejo.
Vivo assim uma coisa pouco "temperada", insossa, desenxabida, cinzentona ... E para mim, não há pior que isso, essa falta de cor, esses dias vividos por viver, numa espécie de mero cumprimento de horário, sem entusiasmo, vontade, alegria, sem perspectiva, sem horizonte ... sem sonho ... sem metas !

Sou uma pessoa de "copo meio vazio", muito desesperançada, sem grande capacidade de luta ou reacção, como o náufrago que acha que já não compensam mais braçadas, ainda que a praia se divise, à distância de mais um esforço.
Soçobro, ou julgo que sim, perante maiores exigências de vida. Não me aprecio particularmente, e tenho-me em pouca estima ou valorização.
Às vezes, quando olho vidas ao meu lado, penso: eu não conseguia, eu já tinha desistido !
Pareço buscar portanto, o mais fácil. Não tenho arcaboiço p'ra grandes coisas, na verdade, mas insatisfaço-me afinal com prestações fracas e pouco exigentes.  Sempre fui perfeccionista, e isso quase sempre arrasou e arrasa a minha vida, porque nunca serei suficientemente "boa" para cumprir os desígnios que teria como ideais, e o meio termo não me faz feliz !
Sou mulher de oito ou oitenta. Sou sôfrega, sempre fui, no viver.  Equilíbrio não é comigo, nunca foi. 
Revigoro-me com emoções fortes, não gosto do trivial, com dificuldade vibro com fasquias "normais" ... coisa de gente, comum, que não me preenche. 
Por tudo isto, e em análise mais pormenorizada e aprofundada, flagro-me como sendo uma out-sider da vida, desajustada às realidades duras e objectivas das pessoas ditas enquadradas.
Portanto, existe uma digladiação constante e objectiva, entre mim e mim, que, costumo dizer, começa de manhã ao pôr os pés fora da cama, e se arrasta até à misericórdia do sossego nocturno.  Um cansaço e um desgaste insano e sem tamanho !

As minhas filhas têm de mim, creio, uma imagem e uma opinião pouco generosa e benevolente.  Acusam-me frequentemente de ter procurado sempre uma perspectiva mais facilitista na vida, acomodada, pouco lutadora e ousada, procurando os caminhos mais acessíveis e menos massacradores.
Penso que acreditam que me posicionei no mais fácil, no mais cómodo, no menos trabalhoso e exigente.
Olham-me como a "dondoca" mimada que de pouco investimento, tirou grandes lucros, a menina sempre poupada às grandes exigências da vida, a qual nunca lhe exigiu esforços titânicos e merecíveis.
No deve e haver, permitem-se mesmo tecer considerandos, analisar e até opinar, quase sempre doutoralmente, sobre realidades do meu percurso pregresso, que obviamente, temporalmente não têm dados para poder avaliar.
Aquela coisa bonita de se ouvir às vezes em conversas ou até entrevistas mediáticas a figuras públicas, em que os filhos manifestam gratidão, ou mesmo enlevo, orgulho e admiração pelos pais que tiveram ... nunca correrá o risco de comigo acontecer ...
Cá está, admito que os meus pais de tudo fizeram pra me aligeirar o piso, filha única que fui, no seio de progenitores cultuando o desiderato típico das suas gerações, proporcionar aos filhos o que eles próprios não puderam usufruir ... uma protecção excessiva e perniciosa que me acompanhou por todo o meu percurso enquanto foram vivos, uma inépcia que me incapacitou de enfrentar com denodo, coragem e sabedoria, a vida real !
Mas que culpa tive eu disso ? Bem ao contrário, o resultado prático foi exactamente o inverso ... não fui preparada para encarar os reais desafios da vida que me esperaria cá fora, quando tivesse que enfrentar o abandono do casulo.  Não ganhei armas nem de defesa nem de ataque para a luta real do dia a dia que me aguardava, em suma fiquei pouco apetrechada para ultrapassar os obstáculos inevitáveis, menos ainda no meio de pessoas traquejadas para isso.
Qualquer uma das minhas filhas tem um "know how", um "savoir faire" em matéria de viver e sobreviver que fica a anos-luz de mim !  Apesar de por vezes lamentar a dureza, fico muito feliz, orgulhosa e tranquila por isso !
Afinal, penso que se calhar não as lesei, não as ajudando tanto quanto me reivindicam ou desejariam ...

Bom, este meu post de hoje foi uma deambulação pelo meu eu interior, deixando que a voz das profundezas do meu coração emergisse , como se me ouvisse, pensando alto ...

Anamar

terça-feira, 9 de julho de 2024

" O QUE FICA ... "

 


Costuma dizer-se que ninguém morre enquanto for lembrado na memória de outro alguém.  Verdadeiramente partiremos quando a sombra em que nos tornamos se vai esbatendo até que ninguém já fale ou pelo menos lembre, aquela pessoa.
E "aquela pessoa" será seguramente lembrada, pela pegada que deixou atrás de si ...

Este fim de semana tive comigo a tempo inteiro, a minha neta mais nova, dos quatro que constituem a minha sucessão. Tem apenas sete anos, mas arguta, atenta e com uma capacidade cognitiva, acredito, que fora de série. 
Hoje em dia, mercê do tipo de vida que se vive, dos desafios, das exigências da mesma, das solicitações, do convívio com que nos confrontamos, dos recursos a todos os níveis de que dispomos, as crianças são na generalidade vivaças, chamadas em permanência  à intervenção familiar e social, solicitadas a uma posição constante de afirmação e posicionamento face aos desafios diários que se lhes apresentam.  Por isso a Teresa será por certo par para os amiguinhos e colegas seus contemporâneos, da vida do dia a dia ...
Eu é que sempre me maravilho com isso ...

Quando a minha mãe partiu, a Teresa tinha apenas dez meses.  A minha mãe vivia então na mesma casa, onde a minha filha era cuidadora informal da avó, e onde veio a falecer rodeada do cuidado e do carinho inesgotável que lhe era dispensado em permanência, com cuidados redobrados ou não fosse a minha filha uma enfermeira totalmente e sempre dedicada a esse papel, acrescidos pelo facto de se tratar da avó.
Assim, desde que nasceu, à Teresa foi propiciado um convívio com a "Bi", de aproximação extrema, ainda que a saúde mental da minha mãe infelizmente viesse progressivamente a degradar-se. 
Chegada da clínica, quando nasceu, logo a mãe a deitou ao lado da bisavó, na cama articulada que ocupava, nunca subtraíu a filha ao amor e ternura que ela lhe devotava, preocupava-se em fingir que a Teresa era cuidada pela Bi, tentando assim ter uma atitude pedagógica em prol da avó, que dessa forma se sentia responsável pela bebé, fazendo-a sentir útil, valorizando o seu papel, o que no meio da demência que se veio acentuando, era um lampejo de felicidade para a minha mãe.

Como disse, quando a minha mãe nos deixou, a Teresa era apenas um bebé de dez meses, mas em permanência e para todo o sempre, a memória daquela avó persistiu na recordação da Teresa.
São as fotos, os vídeos, os lugares, as coisas da Bi... o que a Bi dizia, o que fazia, como fora, o que falava sobre a Teresa ... tudo é perguntado cem vezes ...
"Avó, posso beber café na chávena da Bi? "  "Esta é a árvore da Bi " ( referência ao jacarandá que permanece no jardim e que era o encanto da minha mãe ), "A Bi também tinha uma máquina igual a esta !" ( comentário a uma Singer existente numa casa onde entrou ) ...
A Bi está "na estrelinha", segundo as informações fidedignas 😌😌... a Bi até fala com ela de quando em vez, e aí pelos três anos, ter-lhe-á atirado uma boneca cá para baixo ... Nos jogos de futebol, a Bi, aficionada que só, "está triste, ou alegre, ou mesmo muito contente", face aos resultados alcançados, pelo seu Sporting, pela Selecção de Portugal ...
Enfim ... a Bi tornou-se completamente imortal !...

Reflicto sobre tudo isto.  Prendo-me a pensar como é o percurso humano nesta passagem por aqui...
É certo que a minha mãe sempre foi muito presente na vida das netas e depois na dos bisnetos. Generosa, bem disposta, prestável, disponível, com uma fonte inesgotável de amor para todos, sempre a família foi o único objectivo da sua vida.  Por ela vivia, por ela sofria.  Os seus sucessos eram a felicidade da sua existência, os seus desaires, fonte de preocupação doída.
Ao seu modo foi feliz ... uma felicidade que analiso, às vezes, como doentia e obsessiva.  Comigo, um pouco castradora mesmo ...
Os meus avós não lembro de nunca ter amado assim, ou sequer de eles terem permanecido na minha vida, com esta presença e esta força.  Do meu avô ainda lembro algumas imagens de ternura e carinho que se me perpetuaram, apesar dos sessenta anos que decorreram.  À minha avó não me liga ou ligou sequer um resquício de afecto até hoje.  Ao contrário, penso que não conseguiu deixar-me rigorosamente nada ...
Invejo a relação a que assisto entre avós e netos, na vida de pessoas amigas que estão por aqui, de como as suas presenças são indispensáveis e insubstituíveis, de como a ligação se cultiva, se alicerça, progride e se consubstancializa, de como a partilha se materializa e levará por certo "ad eternum", a presença dos avós na vida dos que ficam depois daqueles, um dia, terem também subido "à estrelinha" !...

O que resta de nós, o que nos sucede, o que nos fica em rasto é afinal apenas o que fomos, como fomos, como deixámos a pegada enquanto por aqui estivermos, de acordo com a capacidade que a nossa impressão digital tiver de se impor com alguma definição e nitidez ... absolutamente nada mais !...

Anamar

quinta-feira, 4 de julho de 2024

" TALVEZ SEJA URGENTE ... "


Dia 2 de Junho passado, foi, ao que consta, o último dia em que postei algo por aqui.  Mais de um mês entretanto decorreu.

Tenho tido um problema de saúde que pareceu mais grave do que afinal será, contudo trata-se de uma questão algo incapacitante na medida em que é limitativa da locomoção, além das dores que transmite.
Contudo o meu maior receio, que seria a existência de uma hérnia discal, dissipou-se, e as dores têm-se atenuado com as tomas sistemáticas e ininterruptas de analgésicos e anti-inflamatórios. 
No fundo trata-se apenas de um problema de comprometimento a nível da coluna, afinal apenas típico da idade, fruto dos maus tratos que ao longo da vida infligimos a nós mesmos e que nem sempre acautelamos ou valorizamos.
Toda essa situação me tem retirado ainda mais a disponibilidade física e emocional durante as últimas semanas, e se o meu estado de espírito nos últimos tempos não tem facilitado ou propiciado a minha vinda a este espaço, nestas circunstâncias, obviamente menos ainda.
O malfadado PDI, com que brincamos tantas vezes, mas que com o avanço do tempo, mais e mais se acentua na nossa realidade de vida !

Entretanto deixei também de fazer as caminhadas mais ou menos programadas na minha rotina semanal, o que não ajuda nem física nem psicologicamente a vivência de um percurso saudável .
A natureza, o ar livre, a mobilidade que activa todas as funções orgânicas e que durante a pandemia da Covid 19 consegui manter e respeitar integralmente, desapareceram, e se eu já atravessava um período propenso ao isolamento, à ausência de convívio, ao confinamento doentio entre as paredes desta casa, à falta de paciência  para ouvir mas também para falar ... agora tudo se agravou.
Exaspero-me facilmente com as conversas, diminuí drasticamente a tolerância aos diálogos e busco no sono o conforto de uma tão almejada quanto doentia paz.
Cada dia me levanto mais tarde, o que reduz os dias a um acordar seguido quase de um deitar, vingo-me e busco arrego numa alimentação desregrada, pois a compensação e o conforto vêm duma procura insana e desenfreada, sobretudo de doces ...
Sejam bolachas, sejam gelados, sejam sobremesas nas refeições, tudo o que for doce me aconchega e conforta ... 
Depois vêm os problemas de auto-análise, de auto-censura, de raiva pela inércia, pela  incapacidade absurda de ausência de reacção, como se me estivesse nas tintas pela falta de controle, de resistência e de lucidez face a um cavalgar de descalabro nos meus posicionamentos.
O peso mostra-se descontrolado, o desgosto face à devolução da imagem por parte dos espelhos, o desamor por mim própria, remetem-me a uma espécie de política de terra queimada em que até pareço castigar-me voluntária e masoquistamente, em que pareço querer punir-me selvaticamente de uma culpa fantasmagórica qualquer ...

E vivo triste, num crescendo de uma desistência face à vida, como se nada já me valesse a pena.  Apenas esperar que se cumpra o que me estiver destinado, num descrédito e num desapreço face a este pântano fétido onde me sinto mergulhada.
Nada me motiva, os sonhos inexistem, a esperança que nos ergue todos os dias sossobrou também, vivo como em hibernação, como se nada valesse a pena começar, porque já não tenho tempo útil de qualidade para o usufruir.
Espero, portanto ...
Os meus dias são assim, descoloridos, sem encanto ou fé ! Amanheço e anoiteço ... não faço quase nada além de deixar rodar os ponteiros do relógio.  Vivo estritamente de emoções passadas, de memórias e de mágoas também ...
Ah ... e de medos, como se um ameaçador monstro perverso me aguarde e me mostre que garantidamente, sempre será pior ... 

E assim arrasto os meus dias em silêncio, neste abandono doentio e assustador, com uma incapacidade sentida de conseguir driblar este percurso anunciado ...

Sei que estou doente.  Este calvário é muito meu conhecido, infelizmente, só que agora abate-se no caminhar do Inverno da vida, onde a escuridão já se instala, onde a via sacra ainda é mais dura de percorrer e as forças também já faltam ...

Terei que lançar um grito de socorro ... talvez seja urgente !...

Anamar

domingo, 2 de junho de 2024

" HOJE O DIA É DELES ... "

 




Junho apresentou-se hoje no calendário, ou seja, o mês que vai dobrar o ano de novo ao meio, iniciou-se com um tempo absolutamente estival.
Temperaturas acima dos trinta em vários pontos do país, céu limpo, ausência de qualquer perturbação atmosférica, lembram que apesar de ainda ser Primavera, o Verão está a espreitar à distância de três semanas.

Dia 1 de Junho é uma efeméride mais, no calendário dos Homens ... a comemoração do Dia Mundial da Criança.
Como sabemos, as Nações Unidas aprovaram a 20 de Novembro de 1959 a Declaração dos Direitos da Criança, proclamando-os mundialmente.
Assim, este dia tem por objectivo centralizar a reflexão na criança e nos problemas que exponencialmente, creio, afectam muitas delas em todo o Mundo.
Insere uma obrigatoriedade de pelo menos hoje, repensarmos estes seres que serão a continuidade, o caminho, o futuro !...

Quando eu era menina, pelo menos no meu núcleo familiar, este dia não era assinalado de nenhuma forma.  Não era mencionado, festejado, menos ainda beneficiado com as actuais prendinhas que hoje em dia se tornaram "obrigatórias ".
Já na geração seguinte, sou eu, que sendo adulta e já mãe, acorro a providenciar  a comemoração da data, sem grandes festejos, mas sem dúvida, não a ignorando.
Depois vieram os netos, as escolas lembram, se nós esquecêssemos o dia, a sociedade fomenta e lucra como com todas as datas propagandeadas em benefício próprio, e a tradição continua.
Pelo menos até que os mais novos comecem a olhar para a própria sombra, que é como quem diz, se comecem, com a pressa habitual dos jovens, a achar "gente muito crescida" ... e desvalorizem então a causa.  Se calhar, só até que eles próprios venham a ser directos intervenientes, agora já noutra condição.

Hoje, com 4 netos respectivamente com idades de 23, 20, 17 e 7 anos, na realidade só escapa a benjamim, e suspeito que talvez já não por muito tempo, tal o ar, os jeitos e mesmo a maturidade , que exibe, pouco espectável para a idade ...
Significa isto que a "calha" impiedosa do tempo avança, nesta " linha de montagem" que não se compadece com quem vai ficando pelos apeadeiros da vida !...
E apercebemo-nos que na realidade, o nosso protagonismo enquanto avós, já foi chão que deu uvas ...
Cada um segue os seus rumos, os seus sonhos, os seus projectos.  
As células familiares que habitam, quase sempre longe fisicamente das residências dos avós, não facilitam acompanhamentos regulares, presença expressiva, partilha em tempo real, da maioria dos acontecimentos das suas histórias.
Eles têm pouco tempo, a nós sobra-nos muito ... eles têm energia, força, vontade, sonhos ... nós estamos noutro timing ... eles vêem os projectos, os destinos que perseguem, a busca do amanhã, com os olhos e a fé  de quem acredita e tem um imenso amanhã ao dobrar da esquina ... O nosso amanhã já não é bem esse !...
Quase sempre me sinto / julgo dispensável ... quase sempre me sinto carta fora do baralho, quase sempre me sinto sem janela, balcão ou camarim donde possa assistir em privilégio, ao desenrolar das suas vidas ... quase sempre me sinto a "estorvar" ... 

Contudo, não quero / gostaria de ser injusta nas análises, tendenciosa nas conclusões.  Se calhar não será bem assim ... mas é o que sinto.
Precisaria ou gostaria de saber como é com os outros.  Gostaria de perceber até que ponto cometo erros de análise ou injustiças não cabíveis.  Mas fecho-me, isolo-me, silencio-me.
Cada vez mais reduzo os meus desgostos aos meus silêncios.  Não busco responsáveis ou culpados de nada.  Talvez os erros me sejam imputados exclusivamente a mim, que não semeei o necessário ... logo, não colhi o suficiente !...
Às vezes, muitas vezes, penso e repenso tudo isto, nas minhas insónias das cinco da manhã ...
No entanto penso também que não posso ser demasiado carrasca comigo mesma, demasiado intolerante com os meus erros, as minhas omissões ou os meus mal-feitos ... Afinal a vida tem tantos meandros, tantos vectores que convergem e determinam resultados dolorosos e imperfeitos ...

Bom, mas este post não ficaria completo para mim, ou não se justificaria, se nele eu não lembrasse as crianças de todo o mundo, particularmente aquelas para quem o melhor presente do dia de hoje, seja a concessão da vida, por mais um dia...
Refiro-me obviamente aos filhos sem pais, àqueles cuja realidade é o troar das bombas, dos explosivos, dos aviões que sobrevoam, dos mísseis que caem nos prédios que desabam...
Refiro os que lutam, tão pequeninos ainda, nas filas para a compaixão de umas conchas de sopa na lata que transportam ...
Refiro os que convivem com a morte, com a "normalidade" de caminhos sem rumo, com a dor da orfandade, da perda, do abandono, da solidão ...
Refiro os meninos que sonham em voltar às escolas que ficaram lá atrás ... os meninos que desenham sóis, arco-íris, flores e borboletas em pedaços de papel ... onde os aviões são transformados em pássaros livres e soltos ...
Ou apenas os meninos maltratados, violentados, negligenciados, abusados ... esquecidos, por uma sociedade sem amor, indiferente, de violência, miséria e sofrimento ...

E afinal, todos são crianças num mundo hipócrita, num mundo de faz de conta, cruel e quase sempre indiferente !... 





Anamar

segunda-feira, 27 de maio de 2024

" PERDIDA NAS CATACUMBAS ..."




"Nunca falámos muito, acho que nunca falámos nada. E não sinto necessidade de começar agora. O que poderia dizer? Existem séculos e séculos de silêncio entre nós e, debaixo dos séculos do silêncio, ocultas lá no fundo, se calhar esquecidas, se calhar presentes, se calhar apagadas, se calhar vivas e a doerem-me, coisas que prefiro não transformar em palavras, coisas anteriores às palavras..."

António Lobo Antunes


Este texto de Lobo Antunes caíu-me no papel, caíu-me no coração, caíu-me na alma. Logo hoje em que os cacos estão espalhados pelo chão !... Porque há dias assim ...
Não choro. Sequei por dentro. Que coisa estranha, pareço ter empedernido até às fímbrias do meu ser.
Pareço já não ser gente, vazia de emoções há muito despidas, como se um casaco fossem, sem serventia ...

Desisistir seja do que for, é difícil, é violento, é contra-natura, é como se nos amputássemos. Percebermos que o caminho parece ter fechado depois daquela curva e que não continua para nenhures, é desesperançoso, quase sempre dói muito.
Percebermos uma cerração densa, pesada, irreversível, cega-nos o coração.
Desistir é um acto de perda, de desaposta, de descrédito, de deitar a toalha ao chão, na percepção de fim de linha. Mas também de cansaço, às vezes dum cansaço mortal.
Desistir, surge-nos como uma fraqueza, uma incapacidade, uma inabilidade, um insucesso gigantesco. Uma fotografia rasca, uma história de déficit, um vazio atroz !
Mas ter envergadura para o entender, o olhar, o aceitar e o conseguir suportar nas costas, esse sim, um acto de coragem, um acto de humildade, um acto de submissão à vida.
Sim, porque esta nunca se compadece. Ordena, dita, decide. E cada um, aguenta-se ou cai ...

Desistir de pessoas então, é monstruoso. Sangra, deixa-nos em carne viva. Esfacela-nos por dentro.
Desistir de filhos ... não há palavras ditas ou inventadas, capazes de o traduzir.
Morre-se, morre-se mesmo por dentro. Sem remédio ou solução. Sossobra-se ao cansaço do determinado.
A princípio tenta perceber-se. É o período das interrogações infinitas, intermináveis. É o período da busca da compreensão, o período em que se revira o destino de trás para diante e de diante para trás, na busca de uma luz. É o período em que se esmurram as paredes que se nos erguem pela frente, em que se pontapeiam as pedras na esperança de as remover, em que se golpeiam as mãos na incapacidade de enfrentar as pontas das facas do que não se entende e em que uma impotência avassaladora é mais onda, que onda de borrasca em noite de tempestade !...

Mas a vida vai seguindo, coxa, aos trancos e barrancos, levando nas mãos um crer sem crer na verdade. E se o hoje ilumina o horizonte, o amanhã destrói toda a ânsia, toda a esperança, toda a convicção ancestral de que sempre depois da tempestade, o bom tempo se avizinha ...
E não se sai do mesmo sítio. E percebe-se a dureza das coisas, consciencializam-se os silêncios, a incompreensão das linguagens, a desafinação dos valores, o desacerto dos azimutes ... os silêncios de palavras estioladas nas gargantas ! Sem conserto, sem sentido, sem escapatória, em linguagem de surdos ...

E tanto para se dizer ... E tanta dor no coração para se cuidar. E tanta precisão de um olhar, de um afago, um mimo, um carinho ... um cólo ... tanta precisão de nos darmos no calor de um abraço ...
Impossível ! Já percebemos então, que impossível !...
Não há volta, não há solução, não há já verdades ! Uma irreversibilidade total instalou-se e tudo se transforma em desconhecido !

Cansaço, só cansaço ficou.
"Existem séculos e séculos de silêncio entre nós ... e lá no fundo, talvez apenas as tais coisas anteriores às palavras, que prefiro não transformar em palavras ... e que doem, doem horrores "
Mas tenho pena ... pena de perder esta batalha, talvez a última !...

Anamar

quinta-feira, 25 de abril de 2024

" MEIO SÉCULO PASSADO ..."



Hoje, 25 de Abril de 2024 , fui impelida a escrever. 

Sinto um misto de sentimentos e emoções que não sei muito bem explicar. Um aperto no peito, uma angústia, uma espécie de tristeza, um vazio, um buraco aqui dentro ... uma esquisita sensação de orfandade ... talvez nem eu saiba porquê ...

Festeja-se no país uma data absolutamente histórica, uma data indelével ... "a data" ... a primordial, a determinante, a matriz de um Portugal que nos arrebatou, nos envolveu e nos ensinou a sonhar, naquela  madrugada de Abril, faz hoje exactamente meio século.
Convidaram-me pra festejar, pra recuar no tempo, pra me deixar ir pelo sonho, Avenida da Liberdade abaixo, no que, estou certa, estará a ser uma nova expressão de unidade, de partilha, de felicidade colectiva.  Afinal, é o que se sente quando uma onda nos envolve, nos mergulha em turbilhão, numa embriaguês que nos transporta adiante, que nos aturde e nos leva do riso à lágrima, só porque a emoção é arrebatadora demais ...
São expressões inquestionáveis, são manifestações de massas que não precisam de justificações.  São fenómenos que acontecem, irreprimíveis, proporcionais àquela felicidade avassaladora que nos toma, que nos faz falar com quem não conhecemos, dar o braço a quem está ao lado, gritar até que a voz se oiça, cantar até à exaustão.  É como se um "porre" nos tomasse, como se o cérebro parasse e apenas quiséssemos viver o momento antes de acordar outra vez !
Recordo o Maio de 74, a que assisti, então por impossibilidade pessoal, apenas das janelas.  Engraçado, que, ao longo do tempo sempre lastimei assim ter sido.
Desta vez, fui eu que declinei.  E sem que o lamente !

Já escrevi alguns textos sobre o 25 de Abril, aquele, o de 74, aquele em que tudo pareceu possível, em que tudo foi tão intenso, que as águas oníricas  rebentaram as comportas  fechadas de uma vida,  extravasaram e inundaram.   
Já poemei sobre a avalanche que me submergia, já senti vezes sem conta um nó de ferrolhos na garganta e a escorrência incontida rosto abaixo, de lágrimas de emoção.
Já acreditei tanto em tudo, como a menina que antevê a felicidade que há-de experimentar com a boneca que acabou de ganhar ...
Eu ainda choro se escuto o Hino, choro se os acordes da "Grândola, vila morena" se ouvem ... choro se vejo pela décima vez  as reportagens de Salgueiro Maia à frente das tropas revoltosas ... nessa madrugada distante. 

Mas mudei, mudei muito.  Endureci, insensibilizei-me, tornei-me indiferente.  Acho que a velhice e o pragmatismo com que comecei a encarar a vida, me estão a roubar a parte mais bonita de mim, a parte mais encantatória e interessante, que advinha, creio, da capacidade de sonhar e acreditar. Uma espécie de faceta infantil, ingénua e pura.
Seguramente sou eu que não estou bem.  A minha mãe até ao fim da vida sempre foi doce, crédula nas coisas e nas pessoas, tolerante com as situações e esforçada por entender e aceitar o mundo possível.
Emocionava-se facilmente, tinha o coração ao pé da boca, como "soi dizer-se".  De lágrima fácil, sempre preservou valores e sentimentos de que nunca abdicou. 
Hoje, perante o rememorar das imagens da Revolução dos Cravos, quantas lágrimas já teria vertido pelo seu país !!!
Mas a minha mãe era uma pessoa boa !...

Anamar

quinta-feira, 4 de abril de 2024

" E AS SAKURAS AINDA DORMIAM ... "


Hoje, dia 1 de Abril, decidi descer ao terreno e escrever alguma coisa, neste absurdo e ruidoso silêncio que tem povoado os meus últimos tempos. 
Hoje até é o Dia das Mentiras, reza a nossa tradição popular.  Ainda assim, resolvi tornar verdadeiro este meu desígnio.

Em parte, na vida tudo tem uma explicação.  Sempre há uma lógica que preside a qualquer situação, consigamos ou não descobri-la e entendê-la.
Desta feita, a minha ausência neste espaço ( pela primeira vez na vida, desde que em 2008 iniciei as minhas andanças como hipotética escritora por estas paragens, criando este blogue intimista, sem qualquer pretensão assumida que não fosse apenas pôr no papel os meus estados de alma ) ultrapassou o razoável e até o aceitável ... um mês inteiro totalmente em branco !
Nem eu mesma, se mo referissem como possível, acreditaria em tal despautério !

Ora bem, uma série de eventos, de coincidências, de acontecimentos, estão na base deste meu desligamento das lides literárias.
Tinha marcada para o meio do mês de Março, uma saída para o outro lado do mundo, nove fusos horários para oriente, ao país do sol nascente, no cumprimento de um sonho antigo, não só conhecer um país, um povo e uma cultura totalmente distintos de todos os que conhecemos aqui pelo nosso quintal, mas fazer o dois em um com esta viagem :  agregar a este desiderato, o sonho de poder desfrutar de um espectáculo que suspeito único no mundo ... a floração das sakuras, ou seja a floração inebriante e incomparável das cerejeiras, árvore endémica proliferante em todo o Japão.
Este acontecimento anual prevê-se acontecer por todo o país, entre meados de Março e Abril, com início variável de cidade para cidade de acordo com a sua localização geográfica.  Constitui, por assim dizer, um marco histórico que para os japoneses define como  o início da sua Primavera, sendo mesmo o dia 27 de Março, considerada a sua data oficial.
As famílias reúnem-se em parques e jardins, fazendo piqueniques debaixo das árvores, cuja floração não dura mais que uma semana a dez dias, após o que os espaços se atapetam das pétalas brancas e rosa numa imagem idílica e onírica.

Pois bem, adoeci algum tempo antes da partida, tendo sido inclusive colocada em risco a concretização da mesma.  Pela primeira vez, do que me lembro, uma afecção respiratória conseguiu levar-me à cama. 
Muita medicação tomada, com a agressividade terapêutica imposta na urgência do tratamento, desorganizou-me por completo todo o equilíbrio orgânico, fragilizando-me e retirando-me consequentemente as resistências.  Fui portanto para o Japão com as capacidades físicas a cinquenta por cento, o que obviamente, só por si, me prejudicou toda a dinâmica da viagem.
Tive que enfrentar uma rotina exigente e inteiramente diversa, um clima inesperado e excessivamente frio em relação ao previsível, uma alimentação completamente adversa para quem ainda por cima é dificilmente adaptável a novos cardápios, ritmos de sono igualmente complicados não só por curtos mas porque vividos no fuso oposto ao habitual ... em suma, as exigências de uma viagem em grupo, experienciada não nas melhores condições físicas.

E depois, há ainda a considerar, pelo menos assim o senti, a difícil gestão das expectativas, colocadas numa fasquia, confesso que elevada.
Sempre vivo o que me motiva, a duzentos por cento.  Só assim, a perseguição e a concretização dos desejos, se me justifica.
O Japão está como se sabe a muitas milhas de distância, a muitas horas de voo ... a muitos sonhos sonhados em noites de insónias ...

Mais que conhecer um país que me impressionou em organização, disciplina, inovação, capacidade laboral ... um país a sério na planificação e na concretização, descobri uma terra de espiritualidade, interioridade, delicadeza e contemplação. 
"Precisamos de muito pouco para sermos felizes !"  ou, "Temos muito mais do que precisamos !" ... valores difundidos pelo xintoísmo e reiterados pela filosofia budista, norteiam e orientam o povo japonês no trilho da mitologia em que o Céu e a mãe Terra são as principais divindades e em que o Homem está em permanente ligação com o culto e o respeito  pela natureza.

Ironia do destino ... embora globalmente faça um saldo positivo desta minha viagem, não pude concretizar o sonho primordial que ao país do sol nascente me levou : o deleite da visão de uma terra totalmente engalanada e pintada de branco e rosa, em abóbodas fascinantes de sakuras em flor.  Anormalmente fria esta época do ano, em que até mesmo a altitudes invulgarmente baixas apanhámos neve, motivou a que, contra o expectável, na generalidade as sakuras ostentassem apenas  borbotos fechados ao longo das ramagens ainda despidas, e não mais.  
Pontualmente algumas árvores já exibiam flores abertas, mas não é isso que torna icónico e único o espectáculo que está na base da demanda ao Japão, de turistas de todo o mundo, nesta época do ano ...
Portanto, a razão maior pela qual enfrentei não nas melhores condições esta aventura, frustrou-se completamente. 

O Monte Fuji, que também era para mim, um ponto alto da viagem e que vê-lo ou não, é perfeitamente aleatório, dependendo das condições atmosféricas com que sejamos presenteados, também esteve em risco, com a persistência duma cerração quase total.
Felizmente, depois de um dia de tempestade indescritível e chuva copiosa que nos roubara todas as esperanças, amanheceu uma nova madrugada, corroborando a certeza de que também no Japão, depois da tempestade vem a bonança !... 
Um dia claro, imaculado, de céu azul, sem uma nuvem no horizonte e iluminado por um sol radioso, desvendou-nos, manhã cedo, assim do nada, como se de um quase milagre se tratasse, a tão desejada montanha coberta de neve perpétua, grandiosa e altaneira ... o Monte Fuji, aos nossos olhos numa aparição compensatória, como se me pedisse desculpa pela tristeza com que regressei, de um país onde já não voltarei seguramente !...

Anamar

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

" A MARCHA DOS DIAS "


" Quem nos faz novos, são os velhos ... e quem nos torna velhos, são os que vão partindo"... 

Mais ou menos foi esta a frase ou pelo menos o sentido da ideia que li, algures, escrito também por alguém cuja autoria já não consigo reportar.

A correcção do pensamento exposto é duma assertividade absoluta que contudo escapa quase sempre à nossa reflexão.  Poucas vezes, ou nenhumas, pensamos que nas nossas vidas nos sentíamos jovens, novos, esperançosos e com horizonte, enquanto tínhamos uma "linha da frente" que ocupava a prioridade dos lugares de partida.
De facto, enquanto a fila à nossa frente, largamente recheada ia caminhando com a lentidão desejável, não nos sentíamos "em perigo". Afinal, porque desígnios absurdos do destino haveríamos de saltar lugares, desrespeitar a ordenação ditada, antecipar ilogicamente o expectável ??!!
Éramos então jovens, quando os pais, os tios, os avós, às vezes até os bisavós, respondiam à chamada por aqui.  Éramos novos, não cabia nas nossas conjecturas sequer, a suposição que poderia ser subvertida a chamada "ordem natural" das coisas ...

E o futuro ... porque existia muito futuro então, com mais de dois terços para andar contra apenas um terço já percorrido ... espreitava risonho, sem demais sustos, medos ou mesmo preocupações.
Era o tempo dos sonhos, dos projectos, das ideias fantásticas em apostas de caminhos bem sucedidos.  
É o tempo dos amores, das emoções avassaladoras, da entrega sem restrições, em dádiva total, acreditando, sem nuvens a escurecer o céu ...
Era o tempo do valer a pena, o tempo em que a energia e a disposição nos emolduram os dias, os tempos em que para cada preocupação ou dificuldade, parece existir ao virar da esquina uma solução satisfatória, e em que o cansaço não nos desarma ... nunca !
Somos novos, o timing é agora, a esperança ilumina-nos a alma e somos craques no salto de obstáculos ...
Acreditamos que tudo tem solução, tudo se ultrapassa ... claro que com mais ou menos trabalho e dedicação obviamente, mas em que nada nos parará ...

É a Primavera da vida.  Manhãs radiosas, promissoras, em que de tudo somos capazes, em que parece haver uma possibilidade ilimitada para as realizações que perseguimos, pessoais, familiares, profissionais e outras ... Em que acreditamos ... fácil, fácil ... claro que somos capazes ... porquê não ??

E assim, com aquele ímpeto, aquela aposta, aquela alegria com que despertamos em cada manhã, saltamos da cama com a determinação de vencer mais uma etapa, mais uma prova ... Não é hoje, é amanhã ... não é agora, será mais tarde ... mas lá chegaremos, afinal há tanto chão para andar !...

Só que os dias passam céleres, os anos correm depressa demais, a fila que era compacta começa a desfalcar-se ... para desgosto nosso.  Partem os avós, partem os tios, depois os primos mais velhos ... partem os pais ... partem os primeiros amigos, os vizinhos que nos compunham o quadro relacional diário.
Começa a haver demasiadas ausências de resposta à chamada ... demasiados lugares vazios ...
"Mau ... o que é isto "? Como não demos por isso, distraídos que estávamos ?!...
Por cada um que sai, outro dá um passo em frente ... E lá vamos nós, continuando na engrenagem ...

A casa envelhece, as pessoas que cruzamos envelheceram, os corpos, os cabelos, os olhos, os ouvidos, os dentes ... até as mãos, as benditas mãos que eram esguias, elegantes, sensuais no que faziam e no que tocavam, deram em se pintalgar sobre a flacidez que se acentua ... tudo, de um dia para o outro parece, deu em nos fazer negaças e sinais de luzes ... Atenção, confiram o lugar na fila ... analisem os espaços devolutos já, à frente dos vossos pés !!!

E deixámos de ser novos.  Os que partiram encarregaram-se de nos projectar adiante !
Se dúvidas tivéssemos, aí estão as dores, as limitações, o caminhar com esforço, o arfar se o caminho se encomprida, as insónias que se tornam companheiras inseparáveis ... 
Aí está a solidão, a mágoa pelo percebido, o cansaço, a falta de paciência para nos suportarmos e suportarmos os outros ...
E progride um recolhimento interior e uma desmotivação, mesmo pelas coisas que nos mobilizavam, com as quais vibrávamos, nos levavam a sorrir, empolgados quase sempre, não há assim tanto tempo atrás ... parece ...
E percebemos que envelhecemos definitivamente quando já não temos mais ninguém por quem chorar ...

Não será assim com todos, eu sei.  Há pessoas que, felizmente para elas, sempre vêem o "copo meio cheio", plenas de uma positividade permanente, face mesmo às contrariedades. Abençoadas maneiras de ser e sentir !
Eu sou uma pessoa extremamente negativa, dificilmente ultrapasso as barreiras sem um desânimo e um sofrimento atroz.  Reconheço que talvez exorbitando a dimensão dos obstáculos.  Antecipando-os mesmo, o que nada de saudável tem.  Fui demasiado protegida talvez. Tive os caminhos demasiado acolchoados também, o que indiciaria um golpe de sorte no destino. 
Engano.  Bem ao contrário, quem me quis ajudar, ou facilitar a marcha, acabou retirando-me as armas e os mecanismos para a luta e para a confrontação na selva diária que é a vida.  Acabo com menos capacidades a todos os níveis, do que quem aprende a esbracejar, a cair e a levantar, a não sucumbir.
Olho as minhas filhas, artilhadas até aos dentes para enfrentarem com denodo aquilo que lhes boicota os caminhos, que nem sequer têm sido de brisa e água fresca ...
E elas lá vão ... Tem dias que me pergunto como ?!

E assim vamos.  Assim vou... Penitencio-me pelo que escrevo.  Reconheço serem "uma seca" estes desabafos cansativos, enjoados e saturantes, como aquelas pessoas que encontramos na rua e sempre e só puxam do cardápio das doenças e só delas falam ... 
Eu sei que é assim, mas estou "atolada" em sentimentos negativos, colados à pele, os quais não consigo sacudir da alma e do coração, que me esgotam e exaurem inapelavelmente.
Afinal é esta a marcha dos dias ...

Anamar