terça-feira, 10 de novembro de 2009

ESTÓRIAS DA "HISTÓRIA" OU "SE BEM ME LEMBRO..."






Se o meu pai fosse vivo, comemoraria hoje, sessenta anos de casamento com a minha mãe. Essa, não esqueceu a data, e eu também não.
O casamento dos meus pais foi sempre algo singular com que convivi, mas que eu assimilei pacificamente, também não sei porquê...Talvez porque não fosse cabível nessas gerações,  serem equacionadas certas questões, menos ainda, colocadas.
Era assim, porque foi assim...nada a acrescentar.

O meu pai, filho maior de cinco irmãos, deixou a escola, não faço ideia com que escolaridade atingida, e com sete anos já era moço de recados ou marçano de armazém, como sempre lhe ouvi dizer.
Alentejo profundo, muitas dificuldades, famílias grandes, época de fome mesmo...havia que trabalhar no que, e como se podia, para ajudar em casa.
No caso do meu pai, a troco de comida, porque os préstimos de uma criança de sete, oito anos, são parcos.
O meu avô, que não conheci, era sapateiro, mas costumava acabar as tardes de pouco trabalho, na mesa da taberna da aldeia, presumo que o único luxo que se permitia. Era o tempo do "pé descalço", e as botas, se existiam (robustas e cardadas para durarem), tinham que ser poupadas.

A pobreza grassava numa terra de meia dúzia de senhores. Trabalhavam-se os campos se o tempo o permitia, debaixo de sol impiedoso nos Verões torturantes do Sul ; mas os Invernos rigorosos e muito longos, traziam a fome às mesas, e quando na janta havia uma açorda de pão dormido, quantas vezes sem azeite por a almotolia já o não ter, e os "lavradores" nem sempre se compadecerem da aflição, já era confortante...
Piores eram as noites em que se ia para a cama mal o sol se punha, por não haver lenha para a lareira e o estômago roncar, de vazio...

O meu pai fez-se gente, "criou" praticamente os irmãos, saldava as dívidas do próprio pai e partilhava o que podia, com a mãe, que também não conheci, mas que das fotos a que tive acesso, sempre me pareceu uma velhinha pequenina, sofrida, frágil, infeliz...inertemente infeliz!...

O meu pai casou e a mulher com quem o fez, morreu três anos mais tarde...tísica, doença vulgar na época, como sabem (estou a falar  sensivelmente do meio da década de 30).
Nunca chegaram a viver em coabitação, dado que a senhora foi permanentemente sujeita a tratamentos em termas e sanatórios.
Ficou então o meu pai, muitos e muitos anos viúvo, tantos que chegaram para que conhecesse a minha mãe, desde os três anos de idade (os meus avós maternos detinham um estabelecimento hoteleiro que o meu pai frequentava, devido à sua actividade profissional ).
Acabou casando com a minha mãe, tinha ela já vinte e nove anos, e ele...mais dezanove...

Será escusado dizer que a minha existência terá representado para ele, uma relação de avô-neta e não de pai-filha. Sempre fui tratada, como já aqui descrevi sobejamente, com os desvelos, as preocupações, os "apaparicamentos" de um avô e não de um pai.
Estava pouco tempo em casa, pois era viajante de um armazém de ferragens, que com mais dois sócios, conseguiu concretizar. Assim, por esse Alentejo fora, de "camioneta da carreira", de comboio, de "carruagem" (ainda as  havia), até de burro...como "caixeiro-viajante, perambulava de terra em terra, e se estava mais afastado, nem os fins de semana vinha passar a casa.
Fui, portanto, cuidada quase exclusivamente pela minha mãe, que tinha sobre si, a total responsabilidade da minha educação e formação.

Quando era um fim de semana em que o meu pai estava, sentia-me mais acompanhada, talvez protegida. A maior parte do tempo, a casa era excessiva para nós as duas.
Habituei-me a isolar-me, a viver "para dentro"; a minha mãe, com o brio da mulher alentejana, tinha aquelas exigências de ordem, limpeza, organização, desmedidas e por vezes sem sentido.
Assim, o seu tempo era passado num permanente afã com a casa, com o meu arranjo, com o meu desempenho escolar, a minha alimentação...tudo como se tivesse que prestar contas a algum "patrão".

Não se criou nunca uma cultura de diálogo, de cumplicidades entre nós as duas. Eu diria que cada uma tinha o seu mundo.
Eu pensava "para dentro", se sofria, era comigo mesma, se tinha dúvidas, inquietações, alegrias ou mágoas, também teria que ser entre mim e mim.
Era uma "mulherzinha" pequena; uma criança com responsabilidade de adulta; sabia que não podia defraudar as expectativas com que me investiram. Lembro-me de ser sempre muito sozinha.
A minha casa não era frequentada por outras crianças, nem eu ia a casa de possíveis amiguinhas. A minha mãe sempre achou que não se devia "maçar" ninguém, e em casa havia que manter a arrumação e a ordem, coisa difícil, com duas ou três crianças juntas.
Lembro uma festa de aniversário de uma colega do colégio, filha do Presidente da Câmara da cidade, a Elisinha...e lembro, o meu ar aparvalhado quando vi que a Elisinha tinha um quarto de brinquedos, só para ela e os amiguinhos brincarem, um mundo onde ela reinava!.... Aquilo para mim, era demais...eu achava que só existia nas histórias contadas nos livros...

Ocupava assim os meus dias, a estudar (para ser uma aluna referenciada e premiada no liceu que frequentava), a ler ( o mais que podia), a escrever e a esconder o que escrevia (porque tinha vergonha de mostrar aquilo que passava para o papel) e a sentir sempre que se a vida era só aquilo, não valia muito a pena...
Passava horas a ver a minha rua, da janela do primeiro andar. Em frente havia uma chaminé em tijolo, de uma fábrica, e nessa chaminé, em cada ano, um casal de cegonhas sempre regressava para aí nidificar.
Eram "figurantes" de guiões de filmes que eu recriava na minha cabeça...eram companhia para mim...e como eu ficava feliz, quando numa bela manhã, acordava e elas estavam lá...
Eu ficava tão grata, mas tão grata...e elas nem sabiam!!...
Sempre que volto a Évora, faço questão de passar na "minha rua", à "minha porta"...e na primeira vez que isso aconteceu, de imediato o meu olhar procurou a chaminé...Ela já não existia...mas eu também já não era mais uma criança!!...

Lembro ainda, e não deixa de ser interessante que o lembre...(hoje deu-me pr'aqui...), que o meu caixote de brinquedos "jazia" na despensa da casa, bem arrumada, como seria esperável, e só de lá saía quando o humor da minha mãe se "compadecia" com as minhas lamúrias. Mas, depois de na cozinha, atrás da porta, eu ter armado a "cantareira"...logo se esgotava o tempo concedido. Havia que arrumar tudo de novo e voltar a colocar na despensa, porque a cozinha não era para estar desarrumada...

A Lolinha, uma boneca de porcelana daquelas com mola na barriga, que quando se balançavam p'ra frente e para trás faziam um "pseudo-choro" mais aproximado a miado de gato, era demasiado mal empregada para que sequer eu lhe mexesse muito, não fosse desastradamente parti-la...o que seria uma verdadeira calamidade...
Realmente, a Lolinha vestia de cetim, tinha olhos azuis com pestanas, que abriam e fechavam, tinha cachos de cabelos louros, que a tornavam uma espécie de princesa ; foi a primeira boneca que o meu pai me ofereceu, (num Natal em que veio a Balanço de fim de ano, à Firma), deixando-me louca de felicidade. Ainda lembro o papel que embrulhava a caixa que a transportava...era branco com florzinhas soltas, azuis, e lembro com total nitidez a chegada do meu pai, vindo de viagem de Lisboa,  à cozinha, e o balançar da caixa, para que a Lolinha "miasse"...Talvez eu tivesse os meus 5, 6 anos...e uma estupefacção e alegria sem tamanho...
A Lolinha dura, por tudo isto, até hoje. Hoje, sim, religiosamente guardada por todas as razões do mundo, numa vitrina, na companhia de outros objectos da minha "história", que sobreviveram estoicamente ao tempo. Um deles, é um serviço mínimo de chá, em porcelana, decorado com figurinhas do Walt Disney, com que me presentearam mais tarde e com o qual, obviamente, também nunca brinquei.

Quando penso em brinquedos e brincadeiras...brinquedos e brincadeiras felizes, logo os associo aos dias de férias, passados em casa dos meus avós maternos ou tios complacentes.
Nessas férias é que eu me "esbaldava" a brincar, simplesmente porque os meus brinquedos eram então cacos de loiça partida, frascos e frasquinhos sabe-se lá do quê, latas e caixinhas, bocados de espelhos...verdadeiras preciosidades, catadas numa montureira de objectos inúteis lançados num terreno baldio.
Essa montureira era para mim uma verdadeira "arca do tesouro". Não havia prazo para se desmancharem as casinhas construídas;  porque já estavam partidos, os "tesouros" das minhas brincadeiras, não corriam o risco de se partirem mais...porque não eram de ninguém, ninguém os queria de volta.
Com eles, erguia salas, quartos, cozinhas...verdadeiros palácios do meu imaginário infantil. Eu usava "salto alto" com os carrinhos de linhas da minha avó, atados aos sapatos e colocava óculos escolhidos entre os quinhentos mil pares, redondinhos e de tartaruga, que existiam num cesto, comprados nas feiras, para solucionar urgências de oftalmologia, e que já ninguém queria...

Essas férias eram felizes; eu andava solta, de casa de tios para casa de primos, para casa de avós, para casa de amigas (porque lá, como se percebe, já era inócuo que eu tivesse meninas para brincar, sujar-me, esfolar joelhos...).
Eu era disputada por toda a família e todos me queriam fazer um agrado ; era o "brinhol" - a tradicional "fartura" -  que o meu tio comprava para o meu pequeno almoço, era a romã, arranjada com açúcar numa tacinha para o lanche, eram os pratos principais que eu mais gostava, era o "pirolito" de berlinde no gargalo, bem geladinho do poço do quintal...enfim, até tinha uma tia, que me pesava quando eu chegava, para que ao partir, eu tivesse uns quilitos a mais...
A minha mãe, rodeada pelos pais, irmãos, tios, sobrinhos e amigas, até me esquecia, e eu transformava-me numa cabrita solta e feliz!
Nesses dias havia gente, havia conversa, mesa cheia, risos, histórias contadas, notícias dadas...família!...

Em Évora, havia nós duas e uma casa de dois andares com nove divisões, que sempre me pareceu imensa, triste e escura.
Se estávamos na cozinha, o resto da casa tinha logicamente as luzes apagadas. O corredor que terminava na escada para o piso de baixo, tinha sempre a luz apagada e só se acendia se fazia falta.
Eu dormia com a minha mãe, quando o meu pai não estava e sempre me parecia ver sombras, vultos, figuras fantasmagóricas que se agigantavam ao longo das paredes.
E eu tinha medo...lembro-me de ter medo daquela casa...

Eu disse há pouco que a relação dos meus pais era singular...
Hoje, pensando nela, verifico que o sentia, mas nunca o coloquei em causa ou o interroguei. Não recordo os meus pais dialogarem ou sequer conversarem normalmente, como julgo que os casais fazem ou devem fazer.
Nunca vi sequer uma troca de carícias mais ou menos íntima, entre eles.
De facto, o meu pai representou-me sempre uma figura hermética, que cruzou a minha vida e que acabei não conhecendo.
Nunca identifiquei ou reconheci uma sexualidade normal entre aqueles dois. E penso que isso me marcou e me fez encarar as relações afectivas, a ligação num casal, a abordagem e a vivência sexual dentro do mesmo, de uma forma muito particular, até muito tarde, ou pelo menos, até que a maturidade real, me catapultasse a uma capacidade de análise das coisas, mais objectiva e correcta.

Casei com dezanove anos...e tenho a certeza que o meu casamento foi atropelado ou mesmo dinamitado pela menina que eu fui, pela adolescente em que me tornei...pela adulta profundamente inacabada ou imperfeita que fui capaz de formar!...

E pronto!
Estas "estórias" da parte primeira da minha verdadeira história, já vão longas!....
Tudo o que se lhe seguiu e de que recolho até hoje, entre fruta apetitosa, muita fruta bichada....irá acompanhar-me inevitavelmente sem capacidade de grandes alterações já, enquanto por cá andar, pois afinal, mesmo sem pedirmos, há inumeráveis determinantes exógenas, que talham por vezes mais profundamente um indivíduo, do que as próprias marcas genéticas...

Anamar

5 comentários:

Anónimo disse...

ops...li com muito agrado esta prosa, rica e talentosa. Uma menina um pouco parecida com uma outra, que eu conheço, em muitos aspectos (eu também não podia brincar com os meus brinquedos estava tudo em caixas, longe de mim, a desarrumação era proibida).

Cresci muito reservada...ao contrário de agora que sou uma espalha brasas como bem sabes.
Foi uma época que nos marcou a ambas, nota-se.

beij

Maria Romã

Anónimo disse...

Olá Ana,
a descrição da tua infância fez-me recuar até à minha...e deve talvez ser uma questão de geração... a minha tambem foi muito solitária, mas apesar de tudo feliz.
Tambem tive uma boneca semelhante à tua Lolinha. Essa já não existe.
Tenho ainda um daqueles bébés chorões, tão fofos e tão diferentes das desenxabidas barbies que agora fazem a felicidade das meninas.
A infancia era mesmo um "lugar" bonito!
Beijinhos

Ana Oliveira disse...

Curioso...como tantas coisas vão passando, sem querer, de geração em geração...

Ana Oliveira disse...

E mais uma vez hoje PARABÉNS!!!! Daqui a um ano tem que haver uma grande festa!!!

Anónimo disse...

Olá Ana

Percebi que hoje é o teu aniversário.
Um beijinho

Fernando