sexta-feira, 6 de novembro de 2009

"QUEREM MAIOR CLARIVIDÊNCIA??..."



"Encontrei" um sósia mental...
Eu explico: um sósia mental meu, é alguém que pensa, sente, interpreta as realidades, os sofrimentos, a vida, igualzinho, igualzinho a mim....
E digo "encontrei", porque me veio parar às mãos, um texto seu, que me fez exactamente...parar!
Até a linha um pouco sarcástica e clarividente, de analisar e de exprimir o que nos povoa a alma e nos lança inquietudes no espírito, é muito "colada" à forma como eu  sinto, exponho, entendo.
O sabor agridoce da sua interpretação da vida, até me deixou um pouco mais tranquila...e agora, a dúvida existencial que se me coloca, é se estou mais para ET, como referia no último post, ou se mais para louca, desinserida, "outsider", como um girassol que tivesse nascido vermelho-papoila, num campo "normal" de girassóis amarelos-sol!!...

Como o "meu sósia mental" tinha um nome que não me dizia nada (seguramente ignorância atroz da minha parte), fui indagar na NET e sei agora, tratar-se de um psicanalista, teólogo, filósofo, escritor (tanto em prosa como em poesia), brasileiro, do Estado de Minas Gerais, com 76 anos.
É ele Rubem Alves...um psicanalista heterodoxo como se auto denomina, um "mergulhador" na alma humana, diria eu...

Girassóis amarelos..."normais"...
"Normal"...mas o que verdadeiramente é o normal?

"Toda a pessoa com saúde mental aparente, é um psicopata latente"...

Esta frase de clarividência e desassombro totais, é um desafio à tomada de consciência de uma convicção absoluta generalizada e acomodada, de que o ser humano para se enquadrar, deve posicionar-se nos figurinos e nos arquétipos pré-determinados.

Rubem Alves é a "pedrada no charco", é a "contra-corrente", é a coragem de assumir o diferente, é a força e a frontalidade de dizer "não"...
Tanto haveria para ser dito...Eu fiquei fascinada com a polivalência de uma mente sã e um espírito genuíno!

Não resisti a passar-vos dois textos seus, que dispensam, creio, demais comentários...

"SAÚDE MENTAL"
Fui convidado a fazer uma prelecção sobre saúde mental. Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico.
Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski.
E logo me assustei.
Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se. Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakoviski suicidou-se.
Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.
Mas será que tinham saúde mental? 
Saúde mental, essa condição em que as ideias se comportam bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado; nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, bastar fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme) ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, a coragem de pensar o que nunca pensou.


Pensar é uma coisa muito perigosa...
Não, saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idosos de gravata. 
Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental. Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego numa empresa. Por outro lado, nunca ouvi falar de político que tivesse stress ou depressão. Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas. 
Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos. 

Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interacção de duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente "equipamento duro", e a outra denomina-se software, "equipamento macio".
O hardware é constituído por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito. O software é constituído por entidades " espirituais"-símbolos que formam os programas e são gravados nas disquetes.
Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos do cérebro, os neurónios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória.
Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo "espirituais", sendo que o programa mais importante é a linguagem.

Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software.
Nós também.
Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou.
Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fendas. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar dentro dele.
Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso dos símbolos. Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podem ser poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo psicanalistas. 

Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo,é sensível às coisas que o seu software produz.


Pois não é isso que acontece connosco? Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos de Drummond e o corpo fica excitado. Imagine um aparelho de som. Imagine que o gira-discos e os acessórios, o hardware, tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e se comover. 
Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta e se arrebenta de emoção!
Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei no princípio: a música que saia de seu software era tão bonita que seu hardware não suportou.

Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de oferecer uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, saúde mental até o fim dos seus dias: Opte por um software modesto.
Evite as coisas belas e comoventes. A beleza é perigosa para o hardware. Cuidado com a música. Brahms e Mahler são especialmente contra-indicados. Já o rock pode ser tomado à vontade. Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento.
Se há livros do doutor Lair Ribeiro, por que se arriscar a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais. E, aos domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do Gugu Liberato.

Seguindo essa receita você terá uma vida tranqüila, embora banal. Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já terá se esquecido de como eles eram...

Autor: Rubem Alves



"A GENTE É VELHO"
A gente é velho quando, para descer uma escada, segura firme no corrimão. E os olhos olham para baixo para medir o tamanho dos degraus e a posição dos pés.

Quando eu era moço, não era assim.
Não segurava no corrimão e não media degraus e pés. Descia os dois lances de escada do sobrado do meu avô com a mesma fúria com que um pianista toca o prelúdio 16, de Chopin. Ele, pianista, não pensa. Se pensasse, não conseguiria tocar, porque o pensamento não consegue seguir a velocidade das notas. Toca porque seus dedos sabem sem que a cabeça saiba. O pianista se abandona ao saber do corpo.

Assim descia eu as escadas do sobradão do meu avô. Mas no dia em que o pé começou a tropeçar, a cabeça compreendeu que eles, os pés, já não sabiam como sabiam antes. Agora é preciso o corrimão. Depois virão as bengalas, corrimãos portáteis que se leva por onde se vai.

A gente é velho quando, no restaurante, é preciso cuidado ao se levantar. Moço, as pernas sabem medir as distâncias que há debaixo da mesa. Mas, agora, é preciso olhar para medir a distância que há entre o pé da mesa e o bico do sapato. Há sempre o perigo de que o bico do sapato esbarre no pé da mesa e o pé da mesa lhe dê uma rasteira, você se estatelando no chão. 
Quando se é velho, até uma pequena queda pode se transformar em catástrofe. Há sempre o perigo de uma fractura.

A gente é velho quando é objecto de humilhações bondosas. Como aquela que aconteceu comigo 25 anos atrás. O metro estava cheio. Jovem, segurei-me num balaustre. Notei então que uma jovem de uns 25 anos me olhava com um olhar amoroso. Olhei para ela. E houve um momento de suspensão romântica. Minha cabeça e meu coração se alegraram. Até o momento em que ela se levantou com um sorriso e me ofereceu o seu lugar. Foi um gesto de bondade. Com o seu gesto ela me dizia: "O senhor me trás memórias ternas do meu avô..."

A gente é velho quando entra no polibain do chuveiro com passos medrosos e cuidadosos. Há sempre o perigo de um escorregão. Por via das dúvidas, mandei instalar no polibain da minha casa, uma daquelas barras metálicas horizontais que funcionam como corrimão.

A gente é velho quando começa a ter medo dos tapetes. Os tapetes são perigosos de duas maneiras. Há os pequenos tapetes de fundo liso, que escorregam. E há os grandes tapetes que ficam com as pontas levantadas e que fazem ondas. O pé dos velhos movimenta-se no arrasto e tropeça na ponta levantada do tapete ou na armadilha da onda.

A gente é velho quando começa a ter medo dos fotógrafos. Fugir das fotos de perfil porque nelas as barbelas de nelore aparecem. Nelore é um boi branco. Os pastos estão cheios deles, vivos, e as mesas também, sob o disfarce de bifes. E eles têm uma papada balançante, as barbelas, que vai da ponta do queixo (boi tem queixo?) até ao peito. 
Velhice é quando as barbelas de nelore começam a aparecer. Aí vem a humilhação conclusiva. Prontas as fotos, eles nos mostram e dizem: "Como você está bem!"

A gente é velho quando, tendo de subir ao palco para dar uma palestra, tem sempre uma jovem simpática que nos oferece a mão, temendo que a gente se desequilibre e caia. A gente aceita o oferecimento com um sorriso. Nunca se sabe...

A gente é velho quando perde a vergonha e se desnuda, fazendo as confissões que acabei de fazer...
Autor: Rubem Alves


Anamar


2 comentários:

Ana Oliveira disse...

Muito bom...

Tens que seguir os conselhos e ir com calma com o software...para não afectares muito o hardware!

anamar disse...

Brinca, brinca....
No meu caso, o software há muito está afectado....quanto ao hardware....é só uma questão da resistência dos "materiais"....verás!
Beijo