sábado, 28 de novembro de 2009

"A SOLIDÃO É O EXPOENTE MÁXIMO DE LIBERDADE"



"As ruas da amargura" ou "Ruas de amargura"é um filme-documentário de um realismo impressionante.
Na verdade não nos põe à frente dos olhos nada com que todos os dias não tropecemos, em qualquer esquina, em qualquer vão, em qualquer escada mais protegida...ou em última análise, em qualquer banco de jardim, se a noite prometer ser mais prazenteira.

As razões porque são utentes da rua neste momento, os sem-abrigo da cidade, também não são muito diversas, todos as conhecemos mais ou menos, e todos deveremos pensar, creio, que qualquer um de nós, com uma vida aparentemente estruturada, equilibrada, sólida até....pode, por vicissitudes imponderáveis,   também chegar lá!...

Eu penso assim muitas vezes...

Impressionou-me particularmente o espírito corporativo criado entre pares que afinal dividem o mesmo tipo de dificuldades, o respeito pelas hierarquias que acabam estabelecidas, a partilha da própria miséria...

Impressionou-me igualmente, apesar da maioria aparentemente lutar para recuperar uma vida dita "normal", sentir-se nalgumas personagens (que são figuras reais das nossas noites de Lisboa, e não figurantes), uma certa resistência a um qualquer cercear do estabelecido, e a sujeição a regras e normas que lhes seriam impostas em qualquer instituição de reinserção.
Tal como se o romantismo duma vida de pássaro livre, de galho em galho, não tivesse preço e não pudesse sequer ser  questionável...
Contrariando Bécaud, ("La solitud ça n'existe pas"), a canção do "Moedas", meio filósofo, meio boémio, meio louco, deixa claramente passar para o espectador, a noção de que é na solidão que se vivencia o expoente máximo de liberdade ...

E se pensarmos a propósito, o que deixa aqueles homens e mulheres, enteados da sorte, verdadeiramente livres, é o inevitável despojamento de todos os pertences materiais, a total ausência de explicação ou justificação para comportamentos não padronizados, a total ausência de "uma gravata social" apertada no colarinho...

O seu pensamento é tão livre quanto o seu corpo ; a demência que já os domina, não é mais do que uma defesa biológica, para que lhes seja lógico tudo o que para nós surge aberrante, desgraçado, injusto...
Tem sido essa a erosão deixada na herança de anos e anos de vinho, de drogas, de fome, numa marginalização que já nem enxergam...

Perto de mim, há anos atrás, "vivi" a remake deste filme: o sr. Quintas, escanzelado, pestilento, com um cheiro que se sentia à distância, piolhoso...vivia numa carrinha abandonada, repleta de papéis e jornais, cujo objectivo era que lhe tornassem as noites menos agrestes, com uma matilha de cães abandonados (tão miseráveis quanto o sr. Quintas).

Ia sendo deslocado na cidade, por reclamação dos moradores, de lado para lado, enquanto se tentava "negociar" com ele, o acolhimento numa instituição adequada.
Esta situação já se repetira, e ele sempre acabava desaparecendo e voltando à rua.

Ganhámos a confiança do sr. Quintas, eu e a minha filha, o que era extremamente difícil, até porque, por qualquer suspeição da sua parte, em relação a si ou aos cães, apedrejava quem se aproximava.
Começámos por alimentá-lo quase diariamente, começámos a conversar longamente com ele, e a ouvir as suas histórias.
Segundo a sua versão (e tudo levava a crer que sim), fora professor de filosofia.
Aliás, recordo que recebia uma pensão de reforma ou invalidez, não sei bem. Mas independente de o ter sido ou não, o sr. Quintas era mesmo um filósofo. Contava histórias incríveis dos tempos da primeira guerra mundial, dissertava sobre variados temas, e cheguei a levar-lhe lápis e caderno para que fosse apontando tudo o que lembrasse...

Trouxe-o a minha casa, onde lhe dei banho, fiz a barba e cortei, como pude, o cabelo. Vesti-o com roupas lavadas do meu pai, que falecera pouco antes... A sua roupa, ao roçar os azulejos da casa de banho sujara-os de tal forma, que careceram de uma desinfecção total...
Enfim, cativámos como pudémos o sr. Quintas, ele confiava em nós e já "exigia" a nossa visita na carrinha. Via-se que ficava muito feliz...

Houve várias reuniões com a Delegada de Saúde, a Assistente dos Serviços Sociais, comigo, com o vereador da freguesia onde "habitava"...O sr. Quintas nunca cedeu...

Foi encontrado um dia, morto dentro da carrinha, com os seus "amigos", numa rua escusa da cidade, para onde lhe rebocaram o carro, por ser mais deserta, e ter, portanto, menos moradores incomodados...

Era uma manhã de Primavera...e o sr. Quintas era igual ás andorinhas, que sempre chegavam e sempre partiriam....
Afinal, ele também sabia que "a solidão é o expoente máximo de liberdade!!... "

Anamar

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