domingo, 30 de maio de 2010

"CONVERSANDO COMIGO MESMA"



"Até amanhã"...
e arrastando os pés, o homem saiu. Tinha estado a tomar café e a ler o jornal da casa, que se aprestou a deixar depois, à saída, para outro utente usar....
Saiu como digo, arrastando os pés... os seus mais de oitenta a isso o obrigavam. Esteve sentado numa mesa atrás daquela onde me sentei e deixou o jornal a uma senhora na mesa depois da minha.
Nessa mesa estava a tomar café e a ler, uma mulher, muito modestamente vestida, cabelo sem cabeleireiro por perto (via-se), na casa dos cinquenta anos, talvez. Fazia intervalos frequentes na leitura, algo desatenta, portanto, como que em "viagem", regressando depois...como quem tem todo o tempo do mundo. Olhava para longe como quem olha...mas não vê...

É sábado, não disse. O Escudeiro, hoje, excepcionalmente fechou, e estou a tomar o pequeno almoço, naquele a que eu chamo "o café dos velhos".
É um café muito antigo e carismático cá da terra, por acaso ao contrário do Escudeiro, com muito mais luz (valha-nos isso), frequentado por pessoas da faixa etária sénior e "extra-sénior"...
Os pigarros ouvem-se constantemente, as conversas entre mesas (sim, porque os clientes são sempre os mesmos), andam  à roda das doenças, inevitavelmente, e as despedidas fazem-se "até amanhã"...

Eu, que ao acordar, quando ainda estamos naquele dorme acorda, faço sempre o balanço do dia que me espera, pensei: "que dia é hoje? Sábado...", e sábado é o primeiro de dois dias absolutamente terríficos, neste momento, para mim, que formam o fim de semana, e o fim de semana para mim, é devastador!
Se nos outros dias da semana, tenho sempre algo a fazer ou a tratar, aos fins de semana, que se "cheira" no ar a ociosidade de quem trabalha toda a semana, é um vazio e uma angústia a amarinharem por mim, porque me pergunto a mim mesma: " vou fazer o quê?  e de facto, não consigo (e não sei como fazê-lo), arranjar eventos, pessoas libertas ou que alinhem comigo.... fica aquela coisa das horas a passarem, o sol a cumprir a sua obrigação (que é caminhar até se pôr), e depois, bem, e depois é uma noite mais para dormir... ainda há tão pouco me levantei...

Lá vem a D. Madalena essa já conhecem)....ainda a não vejo e já lhe ouvi a inconfundível voz, lá para a entrada do café.
Obviamente só podia ser utente deste café, claro. Quase tem lugar cativo...
Encontrou logo um "amigo", um compincha que dialogava com ela, com uma bonomia, como se a D.Madalena, por ser atoleimada, fosse uma criança....

Tive o azar de que se sentaram na mesa atrás de mim, que entretanto vagou...
Claro que a minha concentração foi "p'ro espaço"!!!!!
Porque a D.Madalena quando vem, é p'ra ficar, e o dia está completamente cinzento, com uma aragem desagradável, não há sol e portanto os bancos da minha praceta não "convidam" ninguém... Assim, dos seus dois  poisos possíveis, este, é o viável para a D.Madalena no dia de hoje.

Vamos agora ver este filme ao contrário, que será o que muita gente dirá: "coitadinha, está deprimida porque não tem programa para o fim de semana, porque está só, angustiada, porque não tem ninguém afectivamente próximo a quem se ligue!!!...
Não deve ter os problemas económicos que arrasam as famílias deste país...não deve ter que aproveitar o fim de semana para fazer os trabalhos que a maioria das mães de família e donas de casa têm, porque durante a semana correm para os empregos, não deve ter que minimamente analisar o andamento escolar dos filhos, porque também é quando têm tempo para isso....não deve ter que ir correndo para as grandes superfícies abastecer-se, por ser mais barato!
Se está no café, não está no hospital,  portanto deve ter por certo, saúde razoável que lhe permita essa disposição, e certamente algum dinheiro para gastar...."

Na realidade tudo isto é verdade, e eu devia ser tão agradecida seja lá a quem for, porque, no fundo, os reais e sérios problemas da vida  das pessoas, aqueles que, por desespero levam tantos ao suicídio, levam tantos jovens a deixar os estudos prematuramente, para entrar no mercado de trabalho, levam tantas vidas familiares a desmembrarem-se, levam tantos doentes de carácter urgente a morrer pela impossibilidade de recorrer à saúde privada, marginalizam e atiram para caminhos de desgraça, pessoas  na desesperança da sobrevivência... esses problemas eu tive a sorte de de facto não viver..

E sinto, sinto que devo agradecer por poder ir ao café ( mesmo "dos velhos"), acordar para um sábado (mesmo cinzento),tentar achar que o vazio que está cá dentro e origina o vazio exterior terá que ser preenchido de alguma forma, e que eu não posso sossobrar, e não posso toda a vida dar-me o luxo de pagar semanalmente oitenta euros a uma psicoterapeuta (que  efectivamente é extraordinariamente fundamental e devia ser acessível a qualquer pessoa ) e mais oitenta euros de quando em quando ao psiquiatra, para me entupir de químicos, que tornam mais azul o esmaecido do meu céu...

Tenho que festejar estar viva porque possivelmente estando viva, terei acesso a usufruir essa natureza gratuita que nos oferecem, na simplicidade e beleza de uma flor à beira da estrada, no som do mar e nos salpicos da espuma nos rochedos, no sol a deitar-se ou a espreguiçar-se, na chuva que me encharca e no calor abençoado do sol, que me seca a seguir, na melodia do canto dos pássaros, na melopeia do vento nas searas no meu Alentejo, na beleza esfuziante duma borboleta...tudo sem eu pedir, tudo sem eu eu sonhar, tudo sem eu merecer sequer...

Bem, a minha crónica de hoje é uma crónica de paz, porque, não me perguntem porquê, hoje sinto-me pacificada por dentro, como se uma turbulência destrutiva estivesse a deixar-me, para que eu tivesse direito finalmente ao sossego do sono da criança que ainda sou...

Amanhã não sei como será......mas pelo menos hoje, sinto-me assim, e amanhã é outro dia!...

Anamar

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