sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

" COMO É QUE SE FAZ ? "


Ontem Ary dos Santos fez parte do meu espaço.

Nem sempre este lugar é apenas um lugar exclusivamente pessoal, de reflexões e sentires meus.
Sempre este lugar é um lugar de divulgação e partilha de tudo que considero válido, seja meu, seja de outrem, desde que importante, desde que me faça sentido.

Hoje trago outra figura nacional, da nossa literatura, sobejamente conhecida e referenciada, creio que por todos : Miguel Esteves Cardoso, vulgo MEC.

Não conheço cabalmente a sua obra publicada ; conheço-o por me "cruzar" com ele, em crónicas avulsas, que publica em colaboração noutros espaços.
De qualquer forma, a ideia que tenho formada sobre a sua escrita, é de que é sempre uma escrita "aberta", clara, picaresca, algo controversa, desassombrada, quase sempre provocatória ... aquela pedrinha que jogamos à água para ver as ondinhas que se formam, ou aquele elemento que numa reunião levanta intencionalmente uma questão polémica, para que os espíritos se agitem.

A sua postura na vida, em sociedade, creio também corresponder a este registo.
É uma figura não acomodada, tem uma visão curiosa e segura do que expõe ...a sua ironia inteligente, sempre cirúrgica ...

O texto que aponho neste meu post, impressionou-me particularmente.
Ao lê-lo, a minha identificação com o escrito foi de tal ordem, que quase existiu uma "promiscuidade" de sentires, entre mim e ele.
Dei por mim, linha por linha, a dizer em surdina : "eu teria escrito isto" !...  "bolas ... exactamente a expressão do meu pensamento" !...

Parecia tão simplesmente, que eu era ele e que ele era eu !

Para lá dessa razão, e àparte este aspecto particular que refiro, considero o artigo digno de uma leitura atenta, isenta ... digno de uma apreciação ponderada ...

Leiam com os olhos, mas sintam com o coração !!!...


"Como é que se Esquece Alguém que se Ama?  

Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?
As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguem antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar.
É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si , isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução.
Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha.
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado.
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.
"

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'


Anamar

1 comentário:

Anibal disse...

Olá Anamar,
Gostei do seu post, o MEC o do Independente é um escritor com caracteristicas muito próprias e gosto de o ler. Pessoalmente e porque me cruzo com alguma frequencia com ele, tem vindo a degradar o seu aspecto pessoal.