quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

"O TEMPO PASSOU E ME FORMEI EM SOLIDÃO"

Tentava redigir um post.
Um post com os meus desassossegos, as minhas frustrações, as minhas inquietudes ...
Tentava organizar ideias, encarrilar raciocínios, afivelar conclusões !...
Exactamente em mais um dos exercícios que sistematicamente faço, que sistematicamente cultivo, cultivando exactamente, sem pensar muito, a minha "formação em solidão"!

Mas fui à caixa de correio, deste correio imaginário, sem rosto, sem pena, sem envelope ou selo.
E fui brindada, pela bondade de uma amiga, com este "estrondoso" texto, que de imediato me "obrigou" a parar a pequenez do meu relambório, para partilhar convosco a grandiosidade de todo o realismo, ternura, saudade mesmo ... porque de facto, era exactamente assim ... e de repente me vi naquela sala, na soleira daquela porta !

E de repente também, me senti velha, gasta, desiludida, saudosa, melancólica mesmo ... e pensei como foi possível ter deixado passar por cima de mim, tanto do tanto que ficou lá atrás, e já quase esquecemos por desábito ?!...

No tempo em que ainda, de facto, não nos "formávamos em solidão" !!!...

-" Vamos marcar uma saída.... -Ninguém quer entrar mais."

"O TEMPO PASSOU E ME FORMEI EM SOLIDÃO" 

José Antônio Oliveira de Resende - ( Professor de Prática de Ensino de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras, Artes e Cultura, da Universidade Federal de São João Del-Rei/MG ).

Sou do tempo em que ainda se faziam visitas. Lembro-me de minha mãe mandando a gente caprichar no banho porque a família toda iria visitar algum conhecido. 
Íamos todos juntos, família grande, todo mundo a pé. Geralmente, à noite. 
Ninguém avisava nada, o costume era chegar de páraquedas mesmo. E os donos da casa recebiam alegres a visita. Aos poucos, os moradores iam se apresentando, um por um. 

- Olha o compadre aqui, garoto! Cumprimenta a comadre. 

E o garoto apertava a mão do meu pai, da minha mãe, a minha mão e a mão dos meus irmãos. Aí chegava outro menino. Repetia-se toda a diplomacia. 

- Mas vamos nos assentar, gente. Que surpresa agradável! 

A conversa rolava solta na sala. Meu pai conversando com o compadre e minha mãe de papo com a comadre. Eu e meus irmãos ficávamos assentados todos num mesmo sofá, entreolhando-nos e olhando a casa do tal compadre. Retratos na parede, duas imagens de santos numa cantoneira, flores na mesinha de centro... casa singela e acolhedora. 
A nossa também era assim. Também eram assim as visitas, singelas e acolhedoras. Tão acolhedoras que era também costume servir um bom café aos visitantes. 
Como um anjo benfazejo, surgia alguém lá da cozinha - geralmente uma das filhas - e dizia:

- Gente, vem aqui pra dentro que o café está na mesa. 

Tratava-se de uma metonímia gastronômica. O café era apenas uma parte: pães, bolo, broas, queijo fresco, manteiga, biscoitos, leite... tudo sobre a mesa. 
Juntava todo mundo e as piadas pipocavam. As gargalhadas também. 

Pra quê televisão? Pra quê rua? Pra quê droga? A vida estava ali, no riso, no café, na conversa, no abraço, na esperança... Era a vida respingando eternidade nos momentos que acabam.... era a vida transbordando simplicidade alegria e amizade...
Quando saíamos, os donos da casa ficavam à porta até que virássemos a esquina. Ainda nos acenávamos. E voltávamos para casa, caminhada muitas vezes longa, sem carro, mas com o coração aquecido pela ternura e pela acolhida. 
Era assim também lá em casa. Recebíamos as visitas com o coração em festa... A mesma alegria se repetia. Quando iam embora, também ficávamos, a família toda, à porta. Olhávamos, olhávamos... até que sumissem no horizonte da noite. 

O tempo passou e me formei em solidão. Tive bons professores: televisão, vídeo, DVD, e-mail... Cada um na sua e ninguém na de ninguém. Não se recebe mais em casa. Agora a gente combina encontros com os amigos fora de casa: 

- Vamos marcar uma saída!... - ninguém quer entrar mais. 

Assim, as casas vão se transformando em túmulos sem epitáfios, que escondem mortos anônimos e ossibilidades enterradas. Cemitério urbano, onde perambulam zumbis e fantasmas mais assustados que assustadores. 
Casas trancadas.. Pra quê abrir? O ladrão pode entrar e roubar a lembrança do café, dos pães, do bolo, das broas, do queijo fresco, da manteiga, dos biscoitos do leite... 

Que saudade do compadre e da comadre!

Anamar

4 comentários:

Anibal disse...

Adorei.

anamar disse...

Olá Aníbal

Tanto melhor....

No entanto o mérito não é obviamente meu!

Um beijinho

Anamar

Anónimo disse...

Gostei muito fez-me lembrar o tempo dos "assaltos" no Carnaval.
Realmente foi-se perdendo muita coisa simples e boa que existia em tempos relativamente recentes, é pena.
Jonas

anamar disse...

Olá Jonas

Efectivamente, a Vida, que ainda por cima é tão curta, parece ser feita de mais perdas que ganhos ...
e é pena... como você diz!

Um abraço

Anamar