domingo, 29 de janeiro de 2012

" O UIVO DO LOBO "


O céu estava escuro ... não se via uma só estrela.
Podia dizer-se que era uma noite de breu, não fora aquela imensa bola, prenhe de luz, que iluminasse o recorte da mata, junto à casa.

Cá dentro, era apenas a luz da lareira ainda acesa que iluminava a penumbra da sala.

Íngride "cutucava" as últimas brasas do lume, para as "espertar".
Adorava aquele pedaço de dia / noite, em que naquela cabana da montanha, feita totalmente da madeira dos pinheiros, abetos e faias que a rodeavam, se fazia finalmente silêncio, e a paz reinava.
Todos já haviam ido dormir.
Ali, estava só ela, a luz difusa das últimas chamas bruxuleantes, um CD a tocar como que "ao longe", os seus pensamentos, as suas reflexões.
Normalmente, nessas noites de silêncio e paz, de ausência de "vida", a sua, costumava desfilar-lhe, feito um filme que deslizasse lentamente frente aos seus olhos.

Era uma noite de lua cheia, daquelas em que, sendo noite cá dentro, reinava uma poalha clara, que inundava toda a floresta, e a montanha por detrás da cabana.

Íngride sabia de cór aqueles sítios.
Poderia caminhar lá fora agora mesmo, que traria no cesto as mesmas braçadas de flores silvestres que colhia durante o dia.
As bétulas, os mirtilos, azevinhos, amoras silvestres ... os musgos, os líquenes, sabia-os à volta da casa, ladeando os caminhos da mata.

A montanha ainda guardava os gelos perpétuos, do Inverno rigoroso da Noruega, que cobre tudo com as neves que sempre lá ficam, ano após ano, mesmo sendo já Março, e os dias amanhecendo claros e luminosos.
As sombras dos abetos, dos pinheiros , das faias e dos carvalhos, adensavam-se à medida que a montanha subia.

Íngride sempre os ouvia nestas noites.

O seu uivo territorial, ecoava no silêncio da madrugada.
Os lobos sempre uivam à lua cheia.  É um cântico ou um choro ... é algo mítico, com uma magia própria ... uma canção inacabada ... uma dor não descrita.

Desde criança, quando subia à cabana para passar algum tempo, que "convivia"  inevitavelmente com a sua presença .
Ela não os via, mas sentia-os claramente . Havia uma "cumplicidade" entre ela e eles, uma conivência, uma familiaridade.
Eram presenças mágicas na sua cabeça, desde as histórias infantis , e habituara-se a amá-los e a respeitá-los ...
Março era época de acasalamento. Os machos alfa delimitam território e escolhem fêmea.
Os lobos acasalam para toda a vida . Têm um sentido gregário e familiar poderosíssimo, e isso também a fascinava . Os lobos, também nisso ensinam os humanos ...

Colocou um xaile de lã sobre as costas, abriu mansamente a porta da cabana para que não rangesse nas dobradiças, e esgueirou-se pela noite gélida, lá para fora .
As sombras envolviam tudo e envolviam-na também, e a luz daquele imenso luar, projectava-lhe uma sombra agigantada e fantasmagórica, no caminho.

Íngride teve sempre, sem o perceber, uma relação estranha com a lua cheia. Eram duas "mulheres" que se "entendiam", que se "desafiavam", que se "provocavam".
Vieram-lhe à memória as histórias contadas entre dentes pelo povo, dos homens que nas encruzilhadas, viravam lobos, em noites de lua cheia, para só voltarem à condição de humanos quando o dia raiasse ...
O "lobisomem" é uma figura da mitologia, que atravessou gerações ...

Apoiou-se displicentemente na cancela, e ficou simplesmente ali, estática, a "escutar" o silêncio, a ver o fumo que ainda saía da chaminé da sala, a deixar-se inundar por aquele clarão, que tornava a noite em dia, e "sentir" no cimo do monte, a presença deles ... os reis da floresta ... e o seu "choro" ou o seu "grito", lançado lugubremente à lua ...

Em criança, a sua avó, também à lareira, também numa noite como essa, também naquela cabana de gerações, contou-lhe a lenda do "uivo do lobo", em noites de lua cheia.
Era uma história tão linda, tão comovente e tão enternecedora, que jamais a esquecera ...

Segundo a lenda, em tempos remotos, um lenhador e sua mulher viviam junto a uma floresta.
Haviam tido uma filha linda, tão linda, que decidiram preservá-la de qualquer contacto humano, por receio que pudesse ser raptada, coisa que os senhores poderosos costumavam fazer nessa época.
Assim, a jovem cresceu no estrito convívio de seus pais e dos animais da floresta, que amava por demais.
Sempre que alguém se aproximava da casa, corriam a trancar a filha numa cave, que haviam construído para esse fim.
Inevitavelmente nestas coisas, há um dia em que elas falham ...
E um dia, com os pais atarefados e distraídos, um jovem pastor aproximou-se da casa deles, e encontrou a menina no quintal.
Por seu lado, pela primeira vez, ela viu um rapaz da sua idade.
O espectável aconteceu, e apaixonaram-se um pelo outro.

A moça, cheia de avisos e reprimendas dos pais, sobre o deixar-se ver por alguém, correu a esconder-se, não sem que antes, os olhares trocados entre eles, deixassem uma promessa muda.
O tempo foi passando, e sempre arranjavam oportunidades para se verem e falarem, sem que os pais dela se apercebessem.
Como a situação se tornava cada vez mais insustentável, o pastor encheu-se de coragem, e foi falar com os pais da menina, pedindo-a em casamento.

Irritados e desgostosos pela desautorização havida, reagiram muito mal,  e resolveram castigar os dois namorados.
Disseram ao pastor que voltasse à noite, para ter a resposta, e como a mãe da menina era conhecedora dos poderes e segredos de todas as plantas da floresta, preparou uma infusão com poderes de encantamento.
Bebendo-a, o rapaz transformar-se-ia num animal da floresta, e dessa forma separavam-no da sua filha.

Assim foi.

À noite, quando o pastor voltou, ofereceram-lhe a bebida, dizendo ser um licor caseiro por eles preparado, e logo ali ele se transformou num lindíssimo lobo, que desesperado, fugiu.
A menina, contudo, da sua cave vira pelas frinchas das tábuas o que acontecera ao seu amado, e mal os pais a libertaram, sem que tivessem tempo para a impedir, bebeu o resto da poção mágica, na esperança de se juntar ao seu amor.

Apenas o feitiço produzido no rapaz não foi igual para a menina, e esta transformou-se ali, numa imagem fugaz, semelhante a um raio de luar.
Brilhou por momentos, e logo que algumas nuvens cobriram a lua, desapareceu.
Entretanto o lobo encantado que voltara para perto da casa,  soube o que havia acontecido à sua amada, lançando então um atormentado grito de dor, desespero, saudade e tristeza ... um uivo doloroso que ecoou por toda a floresta.

E é por isso que, desde então, os lobos uivam ao luar.
Julga-se que o encantamento nunca foi desfeito, pelo que, cada vez que um lobo uiva à lua, há um raio de luar em forma de mulher, que o vem banhar de luz ...
E os amantes, acabam assim, por se reunirem de novo, em cada noite de lua cheia, e por toda a eternidade ...

Íngride não deu pelo correr do tempo, mergulhada que estava no seu pensamento.
Também não deu pelo entorpecimento álgido que lhe tomara o corpo, pelo frio atroz da noite ...
Igualmente não se apercebeu, que também nessa noite as nuvens subiram no céu e cobriram a lua ...

Apenas despertou do "torpor" mágico que a dominava, quando bem à sua frente, na clareira do bosque junto à cabana, um lobo, um imenso lobo cinzento de olhos doces e tristes, a olhou longamente ...
Era uma figura imponente, era um ser superior ... parecia um ser de solidão e sofrimento ...

Ergueu a cabeça em direcção aos pálidos raios de luar que ainda atravessavam o firmamento escurecido, e de uma forma doída, sentida, desesperada e saudosa, lançou um uivo doloroso e profundo que ecoou por toda a montanha ...

Nessa noite, Íngride não teve mais dúvidas ...

                               
Anamar

12 comentários:

Anónimo disse...

Os Lobos seres magnificos,dizem que os cães descendem dos lobos domesticados, seres nobres, história magnifica, musica magnifica.
Por favor publique em livro as suas histórias.
Parabens.
Jonas

Anónimo disse...

Sabe os Lobisomens fazem mesmo parte d imaginario Português.
Os Lobos são seres fiéis aos principos e sofrem por o serem.
A sua crónica é muito bonita, apreciei.
Wolf "um solitario"

anamar disse...

Olá Jonas

Seres nobres....absolutamente certo!

As minhas histórias??? Quem sabe, um dia??!!

Se o fizer, prometo dizer-lhe!
E p'ra mim, promessa é lei!

Beijinhos

Anamar

anamar disse...

Olá "Wolf um solitário"...

Os "lobisomens" atravessam diferentes culturas, e são figuras absolutamente lendárias.

Discordo consigo em auto-denominar-se de solitário. Os lobos não o são! Acasalam uma única vez, e para toda a vida.

O facto de serem animais superiores(do meu ponto de vista), nobres e independentes, sugere-nos, a nós os humanos, como sendo sinónimo de "solidão".

Por isso, aprecio o seu "petit nom" - Wolf... Solitário, não o queira ser!

Um abraço

Anamar

Anónimo disse...

Olá,
Um dia convido-a, esperando naturalmente que aceite, a vir visitar esta beleza impar e unica de mancha florestal, onde predominam muitas especies animais. Entre as quais os lobos e cães selvagens.
Lamentavelmente todos os anos esta zona é devastada por incendios florestais.
Gostei muito desta sua crónica.
Um seu admirador
Lourenço

anamar disse...

Olá Lourenço

Quanta gentileza sua em convidar-me, não percebi exactamente para onde... Estrela? Gerês? ...

Depreendo que se tratará de mais uma das áreas do nosso país, flageladas infelizmente por verdadeiros atentados, que são os fogos, na maior parte das vezes intencionais e provocados.

Conheço ambas as zonas, e sou apaixonada por qualquer uma delas. Aliás a Natureza na sua forma mais natural e selvagem, sempre me fascina!

Um abraço

Anamar

Anónimo disse...

Ola Anamar,
falo da zona serrana de Castelo Branco-Distrito, Concelho da Sertâ, perto de Tomar, Barragem de Castelo de Bode, a tal que abastece Lisboa de àgua pura.
Terei o máximo gosto de a receber nesta zona.O convite está feito.
Lourenço da Beira

Anibal disse...

Olá Anamar,
Gosto mesmo muito do que escreve.Continue por favor.
Publique

anamar disse...

Ok Lourenço

Uma vez mais os meus agradecimentos.

Se alguma vez calhar a ir para esses lados que devem ser paradisíacos, prometo que lhe direi.

Um beijinho

Anamar

anamar disse...

Obrigada Aníbal

Talvez um dia publique ... mas também aquilo que abordo nos meus escritos, na generalidade são assuntos irrelevantes ... ao correr da pena, apenas

Beijinho

Anamar

Adriana disse...

Os lobos acasalam uma única vez? Ou acasalam com o mesmo companheiro para o resto da vida? Não compreendi direito. Texto lindíssimo, há tempo sou apaixonada por essas criaturas tão fascinantes, adoraria ver este texto em um livro na minha prateleira!

Anónimo disse...
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