terça-feira, 4 de junho de 2013

" BASTA ESTAR VIVO !... "



Já escrevi muito sobre este café. Ele também é casa minha, de todos os dias.
Pr'aqui caminho, à hora de sempre, para o pequeno almoço de sempre ( igual todos os dias ), encontro os rostos de sempre, irrito-me com as coisas de sempre ... e sempre penso, e sonho, e reflicto ... e até choro ... não sempre ... algumas vezes !
Este café é a casa possível, é a família próxima, possível.

Temos a outra. A que está lá fora. A que trabalha, faz a vida, tem os filhos, as responsabilidades, a realidade sempre corrida.
Aquela que se faz sentir, de longe, pelos telefones, quase sempre. "Mãe ... está tudo bem ?"... "Mãe, estás com voz chocha !"... "Não tenho nada ... que disparate ! Está tudo normal !"...

E o que é estar tudo normal ?
É garantir que os dias não trouxeram até ao momento, demais sobressaltos ou sustos, que a mansidão, a mornidão, o adormecimento, o entorpecimento ... a solidão e o desânimo, vão dando para aguentar por aqui.
É respirar, é dormir, acordar, é entrar, é sair de casa,  é rodar na engrenagem ( porque ela tem que girar, não pode parar ) ... é velar p'ra que nada significativo desequilibre, este instável e sempre precário equilíbrio, que é Viver...

E é tentar não remexer muito nos "baús" interiores. É conter a tempo e horas, esta onda corrosiva que tem a mania de amarinhar pelo peito, que acelera os tique-taques cá dentro, que estrangula a garganta, que continua a trepar, põe os olhos incontroláveis ... e sobe mais ainda ... e amarfanha a alma !
É quando tudo desaba, como aquele castelo que os meninos conseguiram construir com cartas, e uma corrente de ar matreira, deita por terra, juntamente com os seus sonhos e a sua alegria .
Quando isso acontece, tudo rebenta, como os diques de levada ... e nós ficamos sem condição de nos aguentarmos.

Hoje estou assim !

Cheguei ao café, e contaram-me que a D. Madalena, de quem já falei algumas vezes, e sobre quem já escrevi sobejamente, está hospitalizada, por ter sofrido um acidente doméstico, e ter ficado muito maltratada.

A D. Madalena, aquela senhora "pata-choca" no andar, com óculos de fundo de garrafa, de voz em falsete, que sempre ri atontadamente, que tem a bonomia da inconsciência dos apoucados ... vive só, com um cãozito, sua única companhia, depois da morte do marido, depois da morte da mãe, depois do caniche branco ... depois de ter envelhecido ... mais ...

A D. Madalena vive actualmente na minha praceta, frequenta os meus sítios, e é impossível não se gostar dela  ( um gostar envolvido em alguma benevolência, quiçá comiseração ... )
A D. Madalena era a última pessoa merecedora que lhe tivesse acontecido uma desgraça ( se alguém merece ter desgraças na vida ).

E agora ?  Como se irá desenrolar a sua vida, à mercê da boa vontade dos vizinhos, dos conhecidos, dos amigos de café ou de missa?
Como será estar tolhida na sua cama, talvez com o cachorro solidário aos pés ( porque eles nunca nos abandonam ), alongando o olhar pela folhagem das árvores da praceta ( que lhe alcançam o nível da janela ), vendo o azul do céu lá fora, neste Junho que amanheceu quente ... esperando que uma alma caridosa lhe meta a chave à porta, e lhe leve da rua, um pouco da vida que se faz cá fora ?

Como será fazer parar a correnteza do presente, pensar a incerteza do futuro, colocar o existir em banho-maria ...  assim, num ápice, do dia para a noite, como uma onda gigante que submergisse tudo ... até os sonhos que julgo a D. Madalena não ter ??!!

Chega estar vivo, p'ra se morrer a seguir ... verdade de La Palice .

Há muitas formas de se começar a morrer, em vida ...

Anamar

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