domingo, 11 de agosto de 2013

" É ASSIM ! "



Vivo num couraçado ... encaixotada numa cómoda de gavetas, sufocada pelo betão !

A minha casa não tem campo, não tem mar ... resta-lhe o céu.  O céu, ela tem, e com ele, o sol e a lua.
Até as estrelas são tímidas e fogem, mesmo não sendo cadentes.  As luzes humanas apagam-nas, no firmamento.
E porque tenho o céu, tenho às vezes a minha gaivota, embora haja muito, que a não vejo ...  Deve estar a banhos, para outras bandas !

E tenho o privilégio dos pôres-de-sol ... isso eu tenho !...
... lá longe, onde Sintra se queda nas faldas da serra, e onde eu adivinho o mar, que agora é manso, e no Inverno brame, enraivecido.
Sempre antes de dormir, quando a penumbra começa a descer, naquela hora indefinida em que tudo se aquieta, ele despede-se de mim.
Agora, numa fogueira laranja, de boca de fornalha, incendiando a linha do horizonte, onde o recorte das construções e de algumas árvores esparsas, desenham esfinges negras já adormecidas ;  no Inverno, brincando por entre castelos amontoados, de borrascas iminentes.
Porque também é de lá, do lado do mar, que as tempestades avançam.

E vivo num prédio de silêncios.  Um prédio de solidões, como são todos os cogumelos das grandes cidades.
São prisões que prendem sobretudo a alma, porque confinam os olhos, limitam a mente, tolhem a respiração e esmagam o coração.
São masmorras "douradas", aparentemente quentes pela proximidade humana, em tulhas de gente amontoada, mas não ...
São geladas, vazias, incapazes de sentimentos ou emoções.  São construções musculadas, que matam o sonho, com portões blindados, intransponíveis, que derrubam as pontes sobre os fossos que as rodeiam, e não deixam voar o pensamento, soltar o riso, espalhar a felicidade ...
São castelos assombrados, inacessíveis, tirados das histórias das bruxas e dos gigantes ...

Depois, no que a vista alcança, o campo nunca é à séria.
Os jardins são de plástico, desenhados e arquitectados a régua e esquadro, a lembrarem aqueles de brincar, colocados nas maquetes dos artistas, ou nas cidades em movimento, das mega-construções da Legolândia, que  pasmam  a vista, pelo pormenor, pela criatividade e paciência, mas que não são para mexer ...
Aquelas em que os combóiozinhos nos deliciam sobre os carris, os bonecos mexem os braços, os semáforos acendem e apagam, uma fonte ou riacho corre ... e é tudo a fingir ... tudo a enganar ...

Ao pé de mim não há verde de verdade, não há água a serpentear livre, não há cheiro a caruma, nem a sombra, nem a mata.
Não tenho castanheiros, nem eucaliptos, nem abetos, nem pinheiros, nem árvores centenárias com troncos fofinhos, com musgo e líquenes a cobri-los ...
Não nascem urzes, nem pilriteiros, nem mimosas, estevas ou carrasquinhos ...
Ao pé de mim, não há rochas, nem pedras, nem sequer terra.  Daquela autêntica, onde se metem as mãos e se sente vida.
Só há calçada arrumadinha, e alcatrão, muito alcatrão, que não dá nem uma flor ordinária ...

Ao pé de mim, os pássaros não cantam.  Aliás, nem há pássaros ...
As andorinhas partiram há muito, para a quietude das aldeias, onde há beirais, que aqui também não há ...
Há pombos ... pombos de cidade, que até esqueceram já, como é arrulhar !
E depois, há um ou outro canário ou periquito, nas janelas, ainda mais prisioneiros e desesperançados que eu, em grades dentro de grades ... a sonhar que lá fora há liberdade ...

Ao pé de mim, não há "gente" ... Porque "gente" conhece-se, ama-se, sofre junto, ri junto ... cumprimenta-se, pergunta-se pelo pai, pela mãe, pelas coisas ... as nossas coisas, as nossas vidas ... com vontade, com preocupação verdadeira ...
"Gente", partilha-se, dá-se, divide-se ...  "Gente", está lá ... de dia e de noite !
Aqui, a porta fecha e separa os mundos !...

Eu vivo para o céu.  Eu vivo para cima.
Passeio-me  pela  alameda  de  azul,  que  tenho  à  frente  da  minha  janela ...
À tardinha,  converso com Vénus, quando ela abre a noite, e despeço-me do sol, quando ele me acena em despedida ...
A lua, há muito me conhece.  Com ela tenho um diálogo privilegiado.
É tão louca quanto eu, tão versátil quanto eu, tão sonhadora quanto eu ... tão nostálgica quanto eu ...
E finge, consegue fingir sempre, nos rostos que me mostra.  Diz que não está, e está, diz que cresce quando mingua e que mingua quando cresce, e desafia-nos os sentidos, quando, bem cheia, na escuridão, se abandona, lasciva,  lânguida,  e provocadora se desnuda, atentando-nos despudoradamente ...
É mulher !!!...

Vivo num couraçado ...
Mas o destino não me prende !  Derrubo todos os muros que me cercam, com o sonho, que é livre ...   Viajo pelas copas das árvores, que vêem o Mundo de cima ...  subo ao alto das penedias com as águias reais e os grifos ...
Invento o cheiro da mata, das clareiras da serra, e da terra molhada ... para dormir em paz ...
Banho-me nas águas incessantes nos rochedos, e perfumo o meu corpo, com alfazema e maresia ...
Acredito que oiço os pássaros, a pipilar pelos galhos ... e escuto o piado das corujas, no silêncio das madrugadas ...

E oiço os lobos ... tenho a certeza que oiço os lobos ...
Eles estão lá, nos alcantilados da minha mente, a uivar, quando a lua cheia sobe no céu, e me faz descer uma lágrima ...

Vivo num couraçado ...
E estou a enlouquecer aos poucos ... que eu sei !!!...

Anamar

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