quarta-feira, 21 de agosto de 2013

" A RUÍNA "



O caminho serpenteava, desde o portão ...

Sempre serpenteiam, os caminhos ... não se percebe porquê ...
Talvez na intenção onírica, do Homem projectar naquela vereda, a sinuosidade de um rio de sonhos e devaneios.
O óbvio, o directo, o despido de mistério, são de evitar.  Afinal, a vida também tem curvas, também tem esquinas, também tem cotovelos que escondem o imprevisível, e que só se desvendam depois de virados ...

Por isso, aquele caminho ondulava pelo meio das terras bravias.
Há muito abandonadas, haviam respeitado a estrada, caminho de pé posto já só, e ladeavam-no de silveiras, amoras bravas cobertas de pó, e flores que não carecem de justificação para nascerem.
Os aloés livres, na agonia da morte, faziam subir aos céus, a haste erecta que lhes garantiria a disseminação da espécie, pela libertação das sementes, ao vento e aos pássaros.
E parecia realmente um grito de desespero e solidão, mas também de resignação e entendimento ... ali, no alto da falésia silenciosa, em recorte no mar ...

As piteiras bravas, carregavam-se de figos coloridos pelo amadurecimento, e saciariam as aves que por ali rasavam.
Os muros de pedra sobre pedra, imemoriais, aguentavam-se como podiam, com desenho aleatório, a esmo pelos campos.
Talvez já tivessem protegido culturas, dos ventos desabridos .  Agora,  já só amparam o mato rasteiro, e acoitam animais selvagens, e caçadores que se atrevam ...

De resto, é apenas a brisa abençoada que corre por ali  ( como uma criança em recreio de escola ), é o zumbido de um ou outro zângão, que pouse nas flores amarelas dos cardos de ninguém, é o volteio de uma borboleta passante, e claro ... é o voo espreguiçado e dolente das gaivotas, que desafiam a mente humana, e levam consigo, presos das asas esticadas na aragem, os sonhos mais insatisfeitos do Homem, que sempre voa com elas, com o olhar que alonga e estica, até onde o horizonte lho permite ...

Lá muito em baixo, o mar, como um luzeiro prateado, acende-se pelo sol, que o pincela de turquesas transparentes, verdes intensos e azuis ...

Da casa, já só existia uma ruína, que o vento destelhara, e as silvas e urtigas dominaram.
As janelas esventradas, ainda exibiam aqui e ali, a caixilharia de madeira podre, pela chuva dos Invernos rigorosos, pela maresia e pelo salitre do mar ...
Ironicamente, alguns vidros ou apenas pedaços, permaneciam nas molduras, lembrando que através deles, os olhos atravessaram de dentro para fora e de fora para dentro, há muito ...
Da chaminé imensa, outrora, restava já só um amontoado de pedras, que servia de ninho aos passaritos, ou talvez a roedores ou rastejantes.
As teias de aranhas adivinhadas, eram cortinas e rendas  pesadas, dependuradas das traves, nos cantos e  nos barrotes do tecto ...

O que fora o pavimento, era agora um emaranhado de ervas, raízes, silvados, musgos e líquenes ... urzes e zimbros, plantas bravias, que espantosamente floriam, no meio do silêncio, do abandono e da morte ...

As divisões ainda se demarcavam claramente.
Agora, sem paredes que as limitassem, caminhava-se de umas para outras, livremente ...
Do quarto para a cozinha, com a lareira definida, da sala virada a poente, para o alpendre das buganvílias, em que  o banco de encosto,  talhado num tronco centenário, ainda jazia, onde ficara adormecido ...
A mó de moinho encostada cá fora, tombara, e fora tomada pelo tempo, também ... a floreira das lavandas era um destroço, e o seu aroma e a sua cor, existiam já só no coração e na mente dela ...

Por que fora até ali ?  Por que percorrera o serpenteado do caminho, até àquela ruína ???...
Não voltara mais,  desde então !  Não passara nem por perto, como se aquele ar e aquele chão, a queimassem por dentro ...

Mas agora que ia partir, um apelo estranho de despedida, chamara-a até lá ... como se quisesse certificar-se, de que embora  partisse, a certeza de perenidade ficava ali ... naquelas pedras, naquele silêncio, naquela morte que rondava ...

... onde pululara vida, onde se construíram sonhos, se ouviram sons, se contaram histórias, se chorou, se gargalhou ... se existiu ... antes do Tempo ser apenas Tempo !...

Hoje, ela sabia que a sua vida era igual àquela ruína ...



Anamar

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