sexta-feira, 30 de agosto de 2013

" O PIGALLE "



O Pigalle está a morrer aos poucos.

Com uma existência de mais de cinquenta anos, este "dinossauro" da Amadora, tem ido dando sinais de que o seu tempo está no fim.
O seu espaço físico "demodé", não foi renovado, ou se algumas benfeitorias sofreu, foram desfavoráveis ao cativar de clientela.
Cheira-se no ar uma desaposta ao investimento, sente-se um clima de doença terminal, exactamente nessa fase ... terminal !

Como uma árvore das matas cerradas, de troncos alargados e recobertos de musgos perenes, que  nas intempéries dos Invernos, vão perdendo braços e folhas, assim este espaço tem ido sendo amputado, de valências que detinha.
Não que fosse um café que se impusesse, actualmente, nem pela qualidade do serviço, que se degradou ( pelo menos nos largos últimos anos ), nem pelo espaço físico em si, que nada de prazeiroso possui,  ou  sequer pela frequência.
À semelhança dele mesmo, a vetustez  dos "habitués", é a nota dominante.
É portanto e simplesmente, um café de tradição, transversal a gerações ... o rosto de uma cidade !...

É um café de silêncios. De silêncios interiores, e não exteriores.
Um café de gente que fala entre si, dos assuntos desagradáveis da vida, das suas dificuldades, das doenças suas, do futebol e do país ... porque esses são os temas privilegiados, pela faixa etária para que está vocacionado, e o frequenta.
Ou então, de gente que não fala, porque simplesmente se isola em mesas, que ao longo dos tempos se tornaram  quase  "reservas" de alguns utentes, ao ritmo do próprio café, e que lê, escreve, ou  se isola ouvindo música, e se afasta do que a cerca, por desinteresse.
Espantosamente existem clientes fiéis, dependendo da hora.
São resistentes, que aparecem por hábito, rotina, comodismo, ou porque os sapatos já os orientam no caminho, tenho a certeza.
Cumprimentam-se, cumprimentamo-nos, por vezes temos saudações mais ou menos cordiais, alguns diálogos curtos, nada que justifique um convite para partilha de mesa ... ou oferecem-se jornais ou revistas, depois de lidos ...

De resto, o tempo amodorra  por aqui, na escuridão das salas, já que  de espaço interior se trata, apenas iluminado por luz artificial ... e dorme-se, ou morre-se um bocadinho todos os dias ...

O Pigalle, o velho Pigalle dos bilhares, ponto de encontro da tertúlia amadorense, anos passados, local onde cadetes da Academia Militar se desfardavam às sextas-feiras, antes de iniciarem o rumo de regresso a casa, aos fins de semana,  local onde muitos jovens desta terra se encontraram, se conheceram, e onde iniciaram futuras relações familiares ...  o Pigalle, de pastelaria excelente e variada, dos serviços de casamento em sala própria ... foi-se "apagando" aos poucos.
Os bilhares desapareceram há muito, os empregados foram "sumindo", mesmo aqueles que eram rosto do café ...
As mesas deixaram de se cobrir com toalhas de pano, desapareceu o espaço inicialmente destinado a fumadores, os televisores ( três ), reduzem-se apenas a um, a funcionar.
O ar condicionado raramente é ligado, mesmo quando o calor torna incómoda a permanência, e hoje, por aviso afixado na sala, soube-se que a partir de amanhã, o serviço será em regime de pré-pagamento ao balcão, sendo os clientes a transportar a sua própria bandeja, para as mesas .
Já não há serviço de cozinha, porque a única empregada da copa, que garantia a confecção dos pratos, também saíu ...

Quase ninguém na sala ...
Vive-se um clima de morte anunciada.  Os empregados que restam ( dois, apenas ), exibem rostos fechados, penalizados, apreensivos ...
Não podem, obviamente,  falar de nada ... mas percebe-se ...

Tenho um aperto no peito.  As lágrimas assomam-me aos olhos.
Pode parecer que exagero.  "Estupidez" ... dirão alguns.
Mas sinto exactamente como se mais uma parte  de mim, se fosse,  no vórtice do Tempo, na injustiça da crise, nas dificuldades da Vida !
É como se um pouco da minha identidade se desmoronasse também, porque afinal, o Homem é uma súmula de tudo o que forma o seu edifício estrutural, em todas as vertentes da sua existência !...

O " gigante ", quiçá o café mais emblemático da Amadora, que atravessou épocas e gerações, que prestou o seu indiscutível serviço à cidade, com o carisma típico dos anos 50/60, não teve uma bóia de salvação que lhe deitassem, ao contrário de tantos outros espaços congéneres  ( lembro a Brasileira, a Versalhes,  o Califa, o Galeto, o Café Saudade ( Sintra ), o Martinho da Arcada, o Tavares Rico, o  Café Arcada ( Évora ), a Mexicana ) ... e claudicou de cansado, desistiu, e breve morrerá !...
É pena que as autarquias, que deviam estar atentas a estas situações, na obrigação de preservação do  património cultural dos Municípios,  património esse que não pode dispensar também, estes locais, não estejam atentas  a  encontrarem soluções de reversão , não apostem na reabilitação e na preservação dos mesmos, já que tudo isto é também, sem dúvida, a memória de um povo, o espólio de um País ...

Não sei por que venho aqui.
Creio que é por imobilismo, por encolher de ombros, acomodação ... espantosamente, alguma saudade já percepcionada ...
Acho injusto, que depois do Escudeiro ter fechado portas há já alguns anos ( e com ele, porque foi minha "segunda casa", como costumava dizer ... se  ter selado um grande pedaço de mim, e da minha história ), o Pigalle, "adoptado"  por mim, com alguma resistência inicial ... vá agora, despedir-se também, apagando-se mais um rosto identitário desta cidade, que aos poucos, está a perder a sua história, a alienar as suas memórias, a entristecer os seus mais velhos habitantes, aqueles a quem restará  tão só, olhar as  fotografias  a sépia ou a preto e branco, para recuperarem na mente e no coração, tantos recantos e locais, que foram ...

Apenas já só ... FORAM !!!...

Anamar

domingo, 25 de agosto de 2013

" A BOLA DE BERLIM "


E ali estava eu, como em menina, deliciada e lambareira, a comer uma Bola de Berlim ...

Há quantos anos eu deixara de as saborear ?!

Recordo que em Albufeira, sete, oito anos, tempos de praia em férias sem fim ( parecia ... nessa altura ), era repasto de areias. 
Eram trazidas nos cestos de verga com duas tampas, revestidos por toalhas alvas, enfiados nos braços da vendedeira, a sra. Júlia, descalça e também ela vestida de branco, que calcorreava a praia de ponta a ponta, com os pés enfrentando a areia escaldante.

A "Bola de Berlim", a  batata frita  e "olha ó Olá" ... ecoavam, e eram pregões obrigatórios, das praias de então ... ah ... é verdade ... e a "Língua da sogra" ou "A bolacha amaricana", também ...

Ainda  não  havia  sogras,  ainda  não  havia  angústias, ainda não havia a gordura, a celulite ... o dia de amanhã !...
Era o tempo, em que debaixo do toldo se jogava ao prego e ao anel, era o tempo do balde de lata vermelho com bonecos, da pá, do ancinho, e das forminhas para os bolinhos de areia, em folha, também !
Era o tempo das construções sonhadas e mágicas, dos castelos encantados, decorados com algas e conchas da maré baixa.
Castelos com fossos à volta, com água de verdade e pontes, e com bandeirinha na torre de menagem ...
Era o tempo dos grandes mergulhos, e da bóia obrigatória, no banho.
Tive uma, amarela, com uma cabeça de pato ... lembro-me bem !
E "maillot" ... usava-se, e dizia-se,  "maillot" ...  O biquini ainda não existia.
Os meus, eram sempre azuis.  A minha mãe devia gostar dessa cor.
E ela, bom, ela não vestia fato de banho.  Ela usava vestido ou saia, e subia-os, pudicamente, quando ia vigiar-me à beira-mar, e aproveitava para molhar os pés.

Eu tinha um chapéu de palha amarelo, como o dos chinezinhos, e não havia ordem de o tirar da cabeça, por razão nenhuma, não fosse o sol molestar-me.
Ia-se para a praia cedinho.  Vinha almoçar-se a casa, depois do que eu deveria fazer sesta obrigatória.
Pelas cinco da tarde, regressava-se à praia, para completar o dia.
As senhoras faziam rendas, e trocavam entre si, segredos e amostras das mesmas ...
A garotada brincava em bandos ... e era feliz !!!

Bom, e ali estava eu !
Agora,  com o mar em fundo, e a praia lá em baixo, aos pés, no fundo da arriba.
Não estava em Albufeira, não !
E também, se estivesse, já lá não estava aquele marzão azul, aquela areia, aquele sol ...
Os meus castelos, já teriam ido, há muito, levados pelas ondas e pelo vento, tal como o foi também, aquela que eu era, arrastada no vórtice do tempo !

A "barrigudinha" do maillot azul, chapéu amarelo na cabeça, e balde de lata na mão, já não existe há séculos ... ela, e os seus sonhos de menina !
Outra vendedeira,  no lugar da  sra. Júlia, talvez percorra o areal, mais ou menos da mesma forma, com os pregões imortais, e transversais às gerações.
A criançada, já não joga ao prego nem ao anel.  Passa demasiadas horas, a gastar os olhos, nos jogos electrónicos, nos IPads, tablets, e todas essas maravilhas da tecnologia, cujos nomes e variedade não conheço ...
As construções na areia, já não têm o mesmo virtuosismo.
São os pais que as fazem, para os mais pequeninos, sem suspeitarem, que na verdade são eles que procuram o seu passado, outra vez, nas areias da rebentação ...

E no alto da falésia, sentada numa pedra, das muitas que por ali se semeiam a esmo, com o mato rasteiro e as flores bravias à minha volta, com a brisa a desalinhar-me o cabelo, e as gaivotas grasnindo e rasando o monte ... com o olhar perdido na distância e no tempo que correu ... deliciada e lambareira ... exactamente como então, ali estava eu, a comer outra vez, uma Bola de Berlim !!!...


Anamar

" QUANDO A PALAVRA É SOLIDÃO ... "



Todos os dias, à mesma hora, oiço a mesma música, no mesmo café, com as mesmas  pessoas  presentes, quatro ou cinco ... com as mesmas histórias ... com as mesmas sensações a atropelarem-me .

Todos  os dias  faço "rewind"  no  mp3, para buscar exactamente os mesmos temas musicais, como uma espécie de ladainha ou terço, que devesse desfiar ... e  não sei porquê ...
Talvez  porque são acordes mansos, doces e magoados, como uma espécie de eco do meu eu interior ...
Porque são molduras perfeitas para o silêncio que me percorre ...
Porque são melodias como o som do vento no meu cabelo, quando me sento numa pedra e apenas olho o mar ... Passa, afaga-me, não me agride, não me exige, não me acorda ... só me embala ...

Todos os dias vejo os mesmos rostos, troco os mesmos olhares, devolvo as mesmas saudações, numa harmonia perfeita ... mais que perfeita ...

E por isso, quase adivinho o que vão dizer a seguir, qual a cor dos seus sorrisos, ou o porquê da circunspecção  dos seus semblantes ...

Todos os dias cruzo a minha história com histórias que não conheço, tranço a minha solidão com solidões vizinhas, pinto o meu  desamparo  com o vazio de desconhecidos, e falo, e conto e digo, apenas para dentro de mim, cem vezes, mil vezes ... um milhão de vezes ... digo tudo e digo nada ... só por dizer ...
E por isso, existe uma solidariedade institucional,  muda e secreta, entre mim e todos eles, aqueles anónimos que por ali pairam !...
E de repente, sinto ânsias de narrar àquele homem que se senta de costas na mesa seguinte, o meu  conto de vida, o que me estrangula a garganta e me sufoca o peito .... que não lhe interessaria, mas que eu não tenho com quem partilhar ...

Mas afinal, para quê ... se ele terá certamente outro, para trocar com o meu ?...
Outro igualmente desinteressante, injusto, descolorido, de silêncios e solidões também !...

E de repente, sinto urgência de abanar os que me cercam, e gritar-lhes : " porra ... estou aqui ...estou a passar por aqui, e ninguém me vê, ninguém me sabe, ninguém me sente ...
A minha vida é esta ... Eu sofro e choro e desespero-me, e morro ... morro um bocadinho em cada instante que passa !...  Nada disso interessa ... mas é a minha vida ... e eu ... sou gente " !...

Oh vã prosápia, arrogância desmedida ... oh tonteria absoluta ... oh loucura inconsciente !!!...
"Eu ... sou gente " !!!
Mas o que é isto ... "eu sou gente" ?  E isso lá é alguma coisa ? Isso tem alguma relevância ?
Menos que um grão de poeira no deserto ... menos que uma poalha estelar do Universo ...
Hoje, matéria ... amanhã, nada !
Que diferença faz a volatilidade da Vida, o fugaz da existência ?!
Nascemos condenados ao esquecimento, ao silêncio, ao nada !
Circulamos numa praça gigante, onde somos tantos que nem nos vimos, nem nos olhamos, nem nos falamos, apenas nos acotovelamos, nos esbarramos, nos atropelamos !
Somos desconhecidos até de nós mesmos.  Somos anónimos no meio de anónimos.  E circulamos como autómatos, como fantasmas, distantes, imateriais ... quase transparentes !
E quando um falta, o equilíbrio mantém-se inalterável, porque nenhum é suficientemente importante, nenhum é determinante, nenhum é suficientemente alguém, ou mais que nada ... apenas NADA !...

E quando (  porque  o tempo corre e se escoa na contabilidade temporal dos humanos ), partem, sinto-me estranhamente defraudada. Sinto-me lesada ... como se me tivessem deixado à deriva,  como se  tivessem  largado  uma criança na esquina de uma rua, desprotegida,  como  um  náufrago que perdesse o tronco salvador ... sozinha, mais sozinha ainda !...

E é quando percebo, que vou ter que enfrentar mais vinte e quatro horas,  para , à mesma hora, no mesmo café, ouvir a mesma música, com as mesmas pessoas presentes, com as mesmas históriias,  e povoada das mesmas sensações ...

E é quando realmente percebo, o que significa a palavra "solidão" !...

Anamar

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

" A RUÍNA "



O caminho serpenteava, desde o portão ...

Sempre serpenteiam, os caminhos ... não se percebe porquê ...
Talvez na intenção onírica, do Homem projectar naquela vereda, a sinuosidade de um rio de sonhos e devaneios.
O óbvio, o directo, o despido de mistério, são de evitar.  Afinal, a vida também tem curvas, também tem esquinas, também tem cotovelos que escondem o imprevisível, e que só se desvendam depois de virados ...

Por isso, aquele caminho ondulava pelo meio das terras bravias.
Há muito abandonadas, haviam respeitado a estrada, caminho de pé posto já só, e ladeavam-no de silveiras, amoras bravas cobertas de pó, e flores que não carecem de justificação para nascerem.
Os aloés livres, na agonia da morte, faziam subir aos céus, a haste erecta que lhes garantiria a disseminação da espécie, pela libertação das sementes, ao vento e aos pássaros.
E parecia realmente um grito de desespero e solidão, mas também de resignação e entendimento ... ali, no alto da falésia silenciosa, em recorte no mar ...

As piteiras bravas, carregavam-se de figos coloridos pelo amadurecimento, e saciariam as aves que por ali rasavam.
Os muros de pedra sobre pedra, imemoriais, aguentavam-se como podiam, com desenho aleatório, a esmo pelos campos.
Talvez já tivessem protegido culturas, dos ventos desabridos .  Agora,  já só amparam o mato rasteiro, e acoitam animais selvagens, e caçadores que se atrevam ...

De resto, é apenas a brisa abençoada que corre por ali  ( como uma criança em recreio de escola ), é o zumbido de um ou outro zângão, que pouse nas flores amarelas dos cardos de ninguém, é o volteio de uma borboleta passante, e claro ... é o voo espreguiçado e dolente das gaivotas, que desafiam a mente humana, e levam consigo, presos das asas esticadas na aragem, os sonhos mais insatisfeitos do Homem, que sempre voa com elas, com o olhar que alonga e estica, até onde o horizonte lho permite ...

Lá muito em baixo, o mar, como um luzeiro prateado, acende-se pelo sol, que o pincela de turquesas transparentes, verdes intensos e azuis ...

Da casa, já só existia uma ruína, que o vento destelhara, e as silvas e urtigas dominaram.
As janelas esventradas, ainda exibiam aqui e ali, a caixilharia de madeira podre, pela chuva dos Invernos rigorosos, pela maresia e pelo salitre do mar ...
Ironicamente, alguns vidros ou apenas pedaços, permaneciam nas molduras, lembrando que através deles, os olhos atravessaram de dentro para fora e de fora para dentro, há muito ...
Da chaminé imensa, outrora, restava já só um amontoado de pedras, que servia de ninho aos passaritos, ou talvez a roedores ou rastejantes.
As teias de aranhas adivinhadas, eram cortinas e rendas  pesadas, dependuradas das traves, nos cantos e  nos barrotes do tecto ...

O que fora o pavimento, era agora um emaranhado de ervas, raízes, silvados, musgos e líquenes ... urzes e zimbros, plantas bravias, que espantosamente floriam, no meio do silêncio, do abandono e da morte ...

As divisões ainda se demarcavam claramente.
Agora, sem paredes que as limitassem, caminhava-se de umas para outras, livremente ...
Do quarto para a cozinha, com a lareira definida, da sala virada a poente, para o alpendre das buganvílias, em que  o banco de encosto,  talhado num tronco centenário, ainda jazia, onde ficara adormecido ...
A mó de moinho encostada cá fora, tombara, e fora tomada pelo tempo, também ... a floreira das lavandas era um destroço, e o seu aroma e a sua cor, existiam já só no coração e na mente dela ...

Por que fora até ali ?  Por que percorrera o serpenteado do caminho, até àquela ruína ???...
Não voltara mais,  desde então !  Não passara nem por perto, como se aquele ar e aquele chão, a queimassem por dentro ...

Mas agora que ia partir, um apelo estranho de despedida, chamara-a até lá ... como se quisesse certificar-se, de que embora  partisse, a certeza de perenidade ficava ali ... naquelas pedras, naquele silêncio, naquela morte que rondava ...

... onde pululara vida, onde se construíram sonhos, se ouviram sons, se contaram histórias, se chorou, se gargalhou ... se existiu ... antes do Tempo ser apenas Tempo !...

Hoje, ela sabia que a sua vida era igual àquela ruína ...



Anamar

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

" CINCO LETRAS APENAS "



 Hoje, sem nenhuma vontade de escrever, sem nenhuma inspiração, sem nenhuma razão válida para o fazer, e relendo Eugénio de Andrade, o "poeta triste" como lhe chamo, pelas palavras de quem, sinto tão bem passarem as minhas ... escolhi este poema, de que gosto particularmente ...

Talvez já o tenha trazido a este espaço.  Não sei !
Talvez  já  tenha  achado, que  ele  representava  sabiamente  um  instante,  uma  etapa,  um  timing da  minha  vida ...

Afinal, as vidas são feitas de despedidas ...
A cada momento dizemos adeus a alguém, alguma coisa, algum  lugar,  algum sentimento ... ou tão só, a palavras ditas que ficaram  para  trás ... ou  mais  ainda,  à  pessoa  que  somos, e  deixamos  de  ser,  por  cada  frémito  de respiração ...

                        ADEUS

"Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus."


Eugénio de Andrade, in “Poesia e Prosa”


Anamar

terça-feira, 13 de agosto de 2013

" PINTOU-SE O CÉU, COM ESTRELAS ... "



A minha mãe diz-me que está farta de viver.

E pergunta-se por que tem que o fazer, se a falência das "ferramentas" para o efeito, se acentua de dia para dia, e se já não faz gosto nisso ?!

Perante factos, não haverá argumentos !

E eu, vejo-me tolhida e limitada,  na persuasão que tento imprimir ao meu discurso, na convicção que tento exibir a responder-lhe, e que, pelos vistos, não tem qualquer eficácia.

Quando se inicia uma caminhada, deve estar-se devidamente apetrechado para o efeito.  Deve dispor-se do equipamento próprio, dos artefactos adequados,  de robustez física, e de motivação para fazê-la.
Haverá seguramente, um objectivo que nos norteia, quando nos propomos iniciá-la ...

Ora,  não existe jornada de maior grau de dificuldade e exigência, que a Vida !
Ainda por cima, somos largados na linha de partida, sem que o seja  por "moto próprio".  Nada nos é perguntado, da vontade de seguirmos no percurso, menos ainda do desejo de atingirmos a meta, lá para diante  ...
Por outro lado, é uma caminhada de grau de dificuldade que não podemos discutir, ou sequer adaptar às nossas capacidades, vontades ou escolhas, e que decorre à nossa total revelia.

E pronto ... com um automatismo que passa pela sobrevivência, armamo-nos em "Pepes rápidos", engrenamos, e seguimos.
Frequentemente, com um automatismo adquirido. Quase sempre automaticamente, sem nos questionarmos, como se fôssemos bonecos de corda, que vão caminhando ininterruptamente, enquanto esta existir.
Alucinadamente muitas vezes, atordoadamente quase sempre, simplesmente como um desígnio a cumprir ... exactamente isso ... uma sina, um determinismo, uma programação, a que não podemos furtar-nos ...

E continuamos, e continuamos sempre ... ainda que exaustos  !
Como se de um tapete rolante se tratasse ... em que os que nos antecedem, nos empurrassem, à mais pequena paragem, à mais leve tentativa de repouso, de um repouso curto mesmo, para descanso da cabeça numa pedra do caminho, para nos dessedentarmos, ou adormecermos por instantes ...

Não !  Há que seguir na vertigem, há que ir em frente.  Não podemos encravar o sistema ...

E seguimos, ainda que as pernas claudiquem, que os olhos falhem, que os ouvidos nos atraiçoem ...
Seguimos, ainda que as forças enfraqueçam, que o corpo se arraste, que uma esclerose generalizada se instale ...

E se a mente não se degrada ao ritmo do corpo, se o coração continua a sentir, com a força e a determinação de outros tempos, aí temos nós um desajuste total, uma incapacidade de progressão, uma tristeza, um cansaço e uma desistência, que nos tomam conta .
A minha mãe está nesse ponto do percurso ...
Eu, mais atrás um pouco, não consigo convencê-la do contrário, porque a bem dizer, para mim também não há "contrário".
Com clareza, objectividade, com pragmatismo,  com desassombro e sem lamechices, eu também não enxergo argumentos válidos, para a dissuadir de querer partir !
Acho que o "boneco" que componho, para expor razões em que não acredito, não é pertinente, não é convincente, não é suficientemente "real", se calhar não é justo sequer ... não é credível, em suma ...
Eu entendo-a.  Claramente eu entendo-a, e talvez a ajudasse, se pudesse ...

Entretanto as "lágrimas de S. Lourenço",  brincaram pelo céu !...
No firmamento de breu, lá onde a luz humana não perturba, e apenas a clareira prateada da luz da lua em quarto crescente, traça uma estrada no mar incessante, as Perseidas, "exigem-nos" o pedido de um desejo, por cada uma que corta fugazmente o céu ...

Sempre assim ouvi, desde menina, quando as via correr, desenhando setas de luz, no céu muito escuro e pouco iluminado, do largo da minha avó,  no Alentejo da minha infância.
E sonhava ... e acreditava então, que elas haveriam de concretizar na Vida, a realização dos desejos que lhes solicitava ...

Costuma dizer-se, que por cada ser que abandona a Terra, mais uma estrelinha se acende lá em cima ...

Tenho a certeza, que essas estrelinhas endiabradas e fujonas, feitas diabinhos à solta, brincam, travessas, num qualquer jardim do Éden, e carregam numa mochilinha, sobre as costas diáfanas, todos os desejos dos comuns mortais, todos os pedidos daqueles que por aqui continuam a caminhar no "tapete", e que ainda não tiveram o privilégio, de passarem a ser uma "lágrima de S. Lourenço" !!!...

Neste fim de semana, quando a Terra cruzou a órbita do cometa Surft-Tuttle   ( o que acontece normalmente por volta de 10 de Agosto, dia de S. Lourenço ), libertou uma vez mais, uma chuva de meteoros, as Perseidas, que anualmente, em fenómeno atmosférico repetido, nos pintaram, literalmente, numa chuva de estrelas cadentes,  romântica,   mágica   e   sonhadora  ...  o  céu ... com  estrelas !!!...


  Anamar

domingo, 11 de agosto de 2013

" É ASSIM ! "



Vivo num couraçado ... encaixotada numa cómoda de gavetas, sufocada pelo betão !

A minha casa não tem campo, não tem mar ... resta-lhe o céu.  O céu, ela tem, e com ele, o sol e a lua.
Até as estrelas são tímidas e fogem, mesmo não sendo cadentes.  As luzes humanas apagam-nas, no firmamento.
E porque tenho o céu, tenho às vezes a minha gaivota, embora haja muito, que a não vejo ...  Deve estar a banhos, para outras bandas !

E tenho o privilégio dos pôres-de-sol ... isso eu tenho !...
... lá longe, onde Sintra se queda nas faldas da serra, e onde eu adivinho o mar, que agora é manso, e no Inverno brame, enraivecido.
Sempre antes de dormir, quando a penumbra começa a descer, naquela hora indefinida em que tudo se aquieta, ele despede-se de mim.
Agora, numa fogueira laranja, de boca de fornalha, incendiando a linha do horizonte, onde o recorte das construções e de algumas árvores esparsas, desenham esfinges negras já adormecidas ;  no Inverno, brincando por entre castelos amontoados, de borrascas iminentes.
Porque também é de lá, do lado do mar, que as tempestades avançam.

E vivo num prédio de silêncios.  Um prédio de solidões, como são todos os cogumelos das grandes cidades.
São prisões que prendem sobretudo a alma, porque confinam os olhos, limitam a mente, tolhem a respiração e esmagam o coração.
São masmorras "douradas", aparentemente quentes pela proximidade humana, em tulhas de gente amontoada, mas não ...
São geladas, vazias, incapazes de sentimentos ou emoções.  São construções musculadas, que matam o sonho, com portões blindados, intransponíveis, que derrubam as pontes sobre os fossos que as rodeiam, e não deixam voar o pensamento, soltar o riso, espalhar a felicidade ...
São castelos assombrados, inacessíveis, tirados das histórias das bruxas e dos gigantes ...

Depois, no que a vista alcança, o campo nunca é à séria.
Os jardins são de plástico, desenhados e arquitectados a régua e esquadro, a lembrarem aqueles de brincar, colocados nas maquetes dos artistas, ou nas cidades em movimento, das mega-construções da Legolândia, que  pasmam  a vista, pelo pormenor, pela criatividade e paciência, mas que não são para mexer ...
Aquelas em que os combóiozinhos nos deliciam sobre os carris, os bonecos mexem os braços, os semáforos acendem e apagam, uma fonte ou riacho corre ... e é tudo a fingir ... tudo a enganar ...

Ao pé de mim não há verde de verdade, não há água a serpentear livre, não há cheiro a caruma, nem a sombra, nem a mata.
Não tenho castanheiros, nem eucaliptos, nem abetos, nem pinheiros, nem árvores centenárias com troncos fofinhos, com musgo e líquenes a cobri-los ...
Não nascem urzes, nem pilriteiros, nem mimosas, estevas ou carrasquinhos ...
Ao pé de mim, não há rochas, nem pedras, nem sequer terra.  Daquela autêntica, onde se metem as mãos e se sente vida.
Só há calçada arrumadinha, e alcatrão, muito alcatrão, que não dá nem uma flor ordinária ...

Ao pé de mim, os pássaros não cantam.  Aliás, nem há pássaros ...
As andorinhas partiram há muito, para a quietude das aldeias, onde há beirais, que aqui também não há ...
Há pombos ... pombos de cidade, que até esqueceram já, como é arrulhar !
E depois, há um ou outro canário ou periquito, nas janelas, ainda mais prisioneiros e desesperançados que eu, em grades dentro de grades ... a sonhar que lá fora há liberdade ...

Ao pé de mim, não há "gente" ... Porque "gente" conhece-se, ama-se, sofre junto, ri junto ... cumprimenta-se, pergunta-se pelo pai, pela mãe, pelas coisas ... as nossas coisas, as nossas vidas ... com vontade, com preocupação verdadeira ...
"Gente", partilha-se, dá-se, divide-se ...  "Gente", está lá ... de dia e de noite !
Aqui, a porta fecha e separa os mundos !...

Eu vivo para o céu.  Eu vivo para cima.
Passeio-me  pela  alameda  de  azul,  que  tenho  à  frente  da  minha  janela ...
À tardinha,  converso com Vénus, quando ela abre a noite, e despeço-me do sol, quando ele me acena em despedida ...
A lua, há muito me conhece.  Com ela tenho um diálogo privilegiado.
É tão louca quanto eu, tão versátil quanto eu, tão sonhadora quanto eu ... tão nostálgica quanto eu ...
E finge, consegue fingir sempre, nos rostos que me mostra.  Diz que não está, e está, diz que cresce quando mingua e que mingua quando cresce, e desafia-nos os sentidos, quando, bem cheia, na escuridão, se abandona, lasciva,  lânguida,  e provocadora se desnuda, atentando-nos despudoradamente ...
É mulher !!!...

Vivo num couraçado ...
Mas o destino não me prende !  Derrubo todos os muros que me cercam, com o sonho, que é livre ...   Viajo pelas copas das árvores, que vêem o Mundo de cima ...  subo ao alto das penedias com as águias reais e os grifos ...
Invento o cheiro da mata, das clareiras da serra, e da terra molhada ... para dormir em paz ...
Banho-me nas águas incessantes nos rochedos, e perfumo o meu corpo, com alfazema e maresia ...
Acredito que oiço os pássaros, a pipilar pelos galhos ... e escuto o piado das corujas, no silêncio das madrugadas ...

E oiço os lobos ... tenho a certeza que oiço os lobos ...
Eles estão lá, nos alcantilados da minha mente, a uivar, quando a lua cheia sobe no céu, e me faz descer uma lágrima ...

Vivo num couraçado ...
E estou a enlouquecer aos poucos ... que eu sei !!!...

Anamar

sábado, 10 de agosto de 2013

" NAÏVE " ( Os agapantos )



Os agapantos da serra, murcharam no meu jardim,
como morreu o amor que pensavas ter por mim ...

Os agapantos traziam o canto livre das aves,
traziam a paz  do monte, nas singelas flores lilazes ...

Acabaram por morrer, como tudo nesta vida ...
Só eu, vou levar comigo nessa hora de partida,
os meus sonhos de menina, os meus sonhos de mulher ...
O meu jardim ficou triste,
já nem mesmo sei se existe ...
não mais me sorri, sequer !...

A serra guardou consigo, tudo o que nela inventei ...
onde julguei ser feliz,
aquilo que o vento diz,
e em que eu acreditei ...
Ela conhece os segredos que guardei no coração ...
Guardei-os mal guardados  ... eram sonhos só sonhados...
E os agapantos morreram, como morreu a paixão ...

Por que os não regaste, amor ?!
Não lhes deste de beber ?!
Por que não lhes deste a esperança, que os faria renascer ??!!

Olho p'ra eles e penso, que não  quero  viver assim ...
Os agapantos da serra, morreram no meu jardim !...

Os agapantos partiram ... Apenas, não percebi,
que te levavam com eles,
que te roubavam de mim ...
Que partias sem olhar, que dobraste aquela estrada ...

Os agapantos se foram ...
e, amor ... fiquei sem nada !!!...



Anamar

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

" PENSANDO ALTO ... "



A gente vê quando as pessoas têm ânimo, quando a vida lhes ganhou cor, quando uma qualquer luz lhes iluminou o túnel, o horizonte, a estrada ... o que quiserem ...
A gente vê, quando as pessoas têm objectivos, sonhos e esperanças por que lutar, e não arrastam simplesmente dias descoloridos, compostos por horas compridas, que se vão desfiando ao sabor dos ritmos do Universo ...
A gente vê, quando é madrugada na vida das pessoas, quando já é meio-dia dado, e quando o crepúsculo se instala, porque a tarde começa a descer ...

A gente vê ...

E  vê  também,  como  tudo isto em que estamos mergulhados, é grotesco, profundamente grotesco ... risível ( para não chorarmos ), pelo absurdo.
Porque tudo isto por aqui, é uma piada seca, de mau gosto, que nem um esgar amarelo nos faz aflorar aos lábios.  Tudo isto, está mais para filme de terror, e de má qualidade !...

Acho que carreguei , na alma, o silêncio e a solidão do Alentejo .
Acho que rever lugares, pessoas, cores, cheiros ... sentir o calor do sol a pino, sobre as terras secas e adormecidas, sentir a sombra de árvores esquálidas, também elas mortas de sede ... me instalou de novo, no coração, um olhar melancólico e magoado, sobre a Vida, a minha vida, este caminho  "trágico" que percorro, de "estação" em "estação", num calvário declarado, rumo ao meu  Monte das Oliveiras ... esta jornada que não pedi, que não gosto, que não quero ... que não aceito ...

Não gosto de acordar por cada manhã ;  brigo com a imagem que o espelho me devolve ... enraiveço-me porque não vejo, não oiço, porque não sei por onde anda a agilidade do meu corpo, que hoje me atrapalha, e começa a ser bagagem incómoda ... porque tenho medos, porque os fantasmas começam a assaltar o meu "quintal",  à minha revelia, e me assombram, não as noites ... mas os dias ...
Não convivo, nem aceito as "brancas" que me sincopam a escrita, não convivo com o "engasgamento" mental, a falta de escorrência na expressão do que pretendo transmitir, a falta de fluidez no discurso, as dúvidas e hesitações na ortografia ...
Assusto-me com o desfasamento entre a mão e o cérebro ...

E entendo que só pode ser uma ironia, uma piada de mau gosto, uma injustiça mais, uma maldade, uma violência ... um crime ...
... porque eu não vivo, se deixar de escrever, e ... não se tira o pão, da boca de quem tem fome !...
Não convivo com a falta de paciência para ouvir e ver gente, mas depois, sinto-me mortalmente mal, por não ouvir nem ver gente ... e a solidão enlouquece-me !...

Não consigo caminhar num caminho indefinido, sem objectivos ou metas, calcorrear uma estrada que leva a nenhures, e que, ora corta desertos áridos, sem nortes ou rumos, ora penetra florestas labirínticas e escuras, cujos troncos me sufocam, cujos espinhos me  rasgam, me sangram, me dilaceram ... e cujos trilhos me confundem e esgotam ...

"Os apaixonados envelhecem juntos" - diz o pacote de açúcar, que o empregado acabou de me deixar na mesa ... Eu, que adoço com adoçante ...

Sorri para dentro de mim mesma ...
As lágrimas, que até já correram, afloraram de novo, à medida que o estrangulamento na garganta recrudesce, e que a aflição no peito, que  me tira o ar, me tomou mais e mais ...  e  me  atraiçoa,  aqui,  neste  café  de  todos  os  dias,  às  mesmas  horas,  com  sol  ou  com  chuva ...

Talvez !...
Talvez  seja  só  esta,  a  fórmula  secreta  e  simples  de  se  conseguir  cumprir  o  Destino ... Apaixonadamente !!!...

Anamar

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

" REGRESSAR A CASA "




Não foi uma chegada, não foi uma visita, não foi um fim de semana ... foi simplesmente um "regresso a casa" ...

O Alentejo vestia-se de castanhos, ocres e verde pardo dos sobreiros, das oliveiras e azinheiras.
Os tons mimosos e verdejantes da Primavera tenra, já foram,  os pastos secaram, as flores murcharam.
A charneca não está mais em flor, nesta época do ano.  Pintou-se como um quadro de terra queimada, e a meio do dia, é a boca de uma fornalha, com o sol a pino sobre o montado.
As papoilas, as macelas, os malmequeres, e as flores roxas, que decoravam profusamente a paisagem meses atrás, secaram.
Nos campos, apenas o restolho que ficou, e as plantas resistentes, como a esteva, as giestas e a urze, agora não floridas, persistem e resistem ao braseiro ...

A passarada recolhe-se, para rasar os campos, apenas pela fresca da tarde.
As andorinhas, exibem então, bailados de prima-dona, de felicidade e paz.  Acompanham-me desde menina ...  Estão comigo desde os beirais da casa dos meus avós !
Até as cegonhas já foram.  Os postes de alta tensão estão mais sós, com os ninhos a  desníveis, abandonados até à próxima época de nidificação e acasalamento.
Demandaram África, nas suas deambulações sazonais.

O gado no campo, procura  as sombras. 
As vacas, e os rebanhos de ovelhas, sobretudo, fazem a sesta, e só regressam ao pastoreio, ao fim do dia, e pela fresca da manhã.
Nessas alturas, o Alentejo tem os sons todos da vida.  Os chocalhos ecoam planície fora, perto e longe, as aves chilreiam e enchem os céus de trinados.  As abelhas, os zângãos, as cigarras ensurdecedoras e os grilos, compõem sinfonias e lengas-lengas monótonas e imparáveis ...

A brisa corre então, mansa e abençoada, e resmalha nas folhas da vegetação perene e resistente.
Ao longe, às vezes, ouve-se um sino que não repica ... apenas lança no ar, badaladas dolentes, espaçadas ... sonolentas ...
Nunca se sabe se dá horas, se chama a finados, se lembra melancolicamente, apenas, que o Alentejo ainda vive, estando embora amodorrado ...

Porque o silêncio, aquele silêncio audível que nos trespassa até à alma ...  o cheiro, aquele cheiro adocicado que sobe dos campos  e nos enche até ao âmago ... a cor, aquela uniformidade da cor da terra, em ondulações de amarelos, castanhos e fogo, entranha-se-nos na pele e cola-se ... cola-se para todo o sempre, por debaixo dela !...

A planície, cujo único limite é o céu, que tremeluz nas ondas de calor que se levantam do chão, lá na linha do horizonte, a perder de vista ... essa, é a cama que nos foi destinada !...

E a pulsação da terra, o seu apelo sequioso, entre vida e morte, tem o frémito de um corpo fecundo  de mulher, é o útero de paixões-ímpetos ... mas é sempre força de renascimento e de Vida !...

"Regressar a casa", volver às raízes, pisar o chão, olhar o sem-fim do firmamento ( que o sol alaranja e incendeia quando se põe, e que as estrelas pintam, quando pintalgam o breu das noites, sem luzes que perturbem ) ...beber o silêncio da paz que me invadiu a alma ... deixar que o calor do monte me percorresse as veias, e me aquecesse o coração ... falar com as pedras, e dançar com a brisa da tarde ... foi alguma coisa que me revitalizou, me invadiu, me impregnou, me transcendeu ...

...  e me transportou, numa viagem onírica, até àquela menina das tranças, trigueira e ladina, que há já tanto tempo ficou lá para trás !!!...

Do Alentejo, voltei ... Mas já tenho saudades !!!...

Anamar