terça-feira, 19 de agosto de 2014

" OS QUE APRENDERAM A TRANSFORMAR A NECESSIDADE EM VIRTUDE "




O terceiro artigo de o "Público" sobre as diferentes gerações, conforme prometi.

Anamar


João Queirós conhece bem o “discurso da ‘aventura’ e do ‘cosmopolitismo’ associado à emigração dita qualificada”. Sabe que lá fora há mais oportunidades para um doutorado em Sociologia. Já lhe passou pela cabeça ir, mas nunca tentou. “Não é resistência – não tenho qualquer sentimento patriótico nem preconizo qualquer ideal estóico. Prefiro ficar. E procuro assegurar que fico.”
Entre 2001 e 2011, Portugal perdeu quase meio milhão de jovens. Efeito da redução da natalidade e da emigração, que tantos angaria na chamada geração Y, também conhecida por geração millenium, geração internet, geração ioiô, a dos nascidos entre 1980 e 1994 – ou 99, conforme os estudiosos.
Para muitos, o espaço natural não se esgota no rectângulo ibérico. Não existiam ou eram demasiado pequenos quando Portugal assinou o tratado de adesão à então Comunidade Económica Europeia, a 12 de Junho de 1985. E quantos terão memória da assinatura do Acordo Relativo à Supressão Gradual dos Controlos nas Fronteiras Comuns, sim, Schengen, a 25 de Junho de 1991?
Cresceram num dos melhores momentos económicos da história de Portugal. Na Expo 98, João Queirós tinha 16 anos, olhava em volta e pensava que “as pessoas eram felizes”. Ébrio de fundos comunitários, o país gastava à grande. De repente, numa noite chuvosa, despertou da euforia do crédito e da retórica do bom aluno europeu. Era 4 de Março de 2001. A correnteza barrenta do Douro matou 59 pessoas e deixou a nu a debilidade dos alicerces da prosperidade nacional.
João lembra-se tão bem da ponte de Entre-os-Rios cair, de António Guterres renunciar, do novo primeiro-ministro, Durão Barroso, usar a expressão "Portugal de tanga". Para ele, a existência tem um antes e um depois da queda da ponte. “A partir daí sucedem-se crises cada vez de maior magnitude, achamos cada vez menos que nos vamos safar, vamos perdendo esperança, ganhando cinismo, ficando mais individualistas.” A sequência parece-lhe definidora: “Toda a minha vida adulta é de crise.”
O conceito de geração tem fortes limitações. Pessoas da mesma idade têm percepções diferentes consoante são do género masculino ou feminino, heterossexuais ou homossexuais, da cidade ou do campo, ricos ou pobres, pouco ou muito escolarizados, de esquerda ou de direita. E a juventude nunca foi tão diversa. Os sociólogos nunca tiveram tanta dificuldade em agregar modos de vida. Mantém-se o mainstream, mas multiplicaram-se as combinações possíveis.
Que terá então João Queirós, prestes a defender doutoramento na Universidade do Porto, em comum com Tiago Pinto, residente num dos bairros que ele estuda, com o 6ª ano de escolaridade, e a estacionar carros num restaurante de luxo?
Quando a ponte caiu, o sociólogo José Machado Pais já falava em “encruzilhadas labirínticas”, “trajectórias ioiô”, jovens presos a transitoriedades feitas de estágios, cursos, subempregos, aprendizagens, desempregos, retornos à escola. Especialista em juventude, foi vendo isso agravar-se, sobretudo a partir de 2011, ano em que em Portugal aterraram os representantes da troika – a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional.
A precariedade entranhou-se. Não é só a taxa de desemprego entre menores de 30 anos que ultrapassa os 26%, quase o dobro da global. É o salário que está 23% abaixo do praticado entre trabalhadores por contra de outrem. Presos às transitoriedades, os jovens e os jovens adultos ficam em casa dos pais cada vez até mais tarde, casam-se cada vez mais tarde, têm filhos cada vez mais tarde.
João conta 32 anos e é professor convidado na Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto. Trabalha há 12 anos na sua área sem nunca ter tido um vínculo sólido. Começou como assistente de investigação. Desde então, passou recibos verdes, recebeu bolsas, assinou contratos a termo. Tinha 28 anos quando deixou a casa da mãe e foi morar com a namorada numa casa arrendada. Planeia o que quer investigar ou onde quer morar, mas não vai muito mais longe. “Não sei o que vou fazer profissionalmente para lá de Janeiro de 2015. Posso arriscar até Junho, depois não sei.”  
Tiago tem 19 anos e começou a trabalhar há quatro. Já esteve muitas vezes parado. Já foi ajudante de electricista, empregado de café, telefonista, carregador, trolha, rufia. Agora é vigilante. “Estou a fazer o Verão, depois logo se vê, não desconto nem nada.” Vive com a namorada em casa da família dela e dentro de dias há-de celebrar o primeiro ano de vida da primeira filha de ambos.

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