domingo, 15 de março de 2015

" A PASSAGEM "




"Aqui, estamos de passagem ... " - li hoje. Aliás, uma vez mais, porque é frase feita, e recorrente na escrita.

Reflicto e pergunto-me : Uma passagem é algo que une pontos, locais, estados, momentos...
Assim sendo, se estamos de passagem, estamos  entre o quê e o quê ?
Entre o nada e o nada, certo ?

"Felizes os que acreditam ! Deles será o reino dos céus !"... rezam as Bem-aventuranças.

Pois é, eu não acredito, e como tal, eu apenas enxergarei ( de acordo com melhores opiniões ), de uma forma pobre, triste, redutora ... sem esperança. Apenas terei hipótese de continuar cumprindo o meu degredo, desalentada, amarga, sem esse futuro prometido ... o reino dos céus !

Mas de facto, o que eu vejo é isto ... o nada que somos, antes que aquele espermatozóide se funda com aquele óvulo, naquele dia, naquele instante, quase sempre insuspeito sequer pelos nossos progenitores ... e o nada em que nos tornamos, quando de novo chegar aquele dia, aquele instante, quase sempre insuspeito, felizmente talvez ... mesmo por nós próprios.

No entretanto, na "passagem", lutamos, estrebuchamos, desesperamo-nos, cumprimos desígnios, palmilhando esta coisa que chamam de vida por alguma razão, e não de morte ... vá-se lá saber porquê !
No entretanto, convivemos com a condição mais térrea e humana, mais frágil e indefesa, menos especial e divina, de escolhidos, potenciais candidatos a uma eternidade cinco estrelas ...
No entretanto, assistimos à vil degradação da matéria que nos constitui, à volatilização das centelhas de luz, com espíritos que também eles nos vão abandonando ...
No entretanto, vamo-nos irreconhecendo, perante nós e perante os outros ...
Respiramos ainda, mal nos temos nas pernas ainda, comemos o que nos impingem, bebemos o que entendem, lavam-nos, esfregam-nos, defecamos, não ouvimos, olhamos mas não vemos, já não rimos, emitimos uns esgares de sorriso ... choramos muito ... produzimos sons, às vezes inentendíveis... pouco comunicamos ...
No entretanto, curvamo-nos mais e mais em direcção ao chão, como se ele fosse o nosso destino final, a terra, que de facto nos acolherá.  O chamamento daí emana ...
Deixamos de olhar o azul do céu.  As estrelas apagam-se no firmamento, procura-se a sombra, porque a luz do sol parece perturbar-nos já ...
As emoções não importam, cansam, tornam-se primárias, quase só. Passam pela alegria de ainda ter acordado hoje ... pouco mais. O entorpecimento tolhe a mente e o coração. Como anestesiados, não vão mais além.
É como se houvesse uma preparação ...

E é perturbador, é aterrador, é monstruoso, acreditem !
Conviver-se com o cenário dantesco da degradação e da destruição da condição humana, passo a passo, paulatinamente ... confrontarmo-nos com a impotência face a essa realidade ... percebermos como no tapete rolante todos vamos precedendo os que avançam, e que tudo é uma questão de ordem e de tempo ... é devastador, questiona-nos, levanta-nos dúvidas, causa-nos perplexidades ... assusta-nos além da conta !

E isto, e SÓ isto, é a PASSAGEM !...

Anamar

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