quarta-feira, 11 de março de 2015

" TALVEZ UMA MULHER COMUM ... "




Não há local mais aprazível aqui nas imediações, para um cafézinho, uma boa conversa, um solzinho ... que aqui, neste clube de golfe, sem dúvida destinado a gente privilegiada.
Tudo aqui é perfeitamente enquadrado, meticulosamente organizado, espantosamente desenhado, com aquele toque "rafiné", típico da classe cinco estrelas, da qual o golfe é cartão de visita.

Este espaço de lazer, café/restaurante totalmente panorâmico, foi concebido para que as suas paredes em vidro, nos mergulhem no "green" ondeante, uma verdadeira alcatifa  adivinhadamente macia, que convida a rebolar encosta abaixo ...
O sol de Inverno, claro e particularmente luminoso, envolvente e quente, promete uma Primavera sem retorno.
Olhando para cima, para este azul translúcido, total e sem mácula, não se acredita que possa, num qualquer dia destes, cobrir-se, escurecer e mesmo chover ainda. Afinal só vamos a meio de Março !

O horizonte é amplo, as árvores são esparsas, e estão distribuídas criteriosamente, numa moldura irrepreensível e perfeita.
São pinheiros mansos sobretudo, de copas arredondadas, não agressivas.  Ao fundo, muito lá ao fundo, numa linha quase de contorno, e como que envolta numa neblina  esbatida,  ergue-se  a  Pena, altaneira, imperativa,  com  o  seu  recorte  inconfundível  de  palácio  de  fadas ...

Este lugar é um garante do carregamento das minhas baterias.  É uma fuga ao betão, uma ânsia de zarpar, de levantar ferro, erguer vela e fazer-me, por aí ...
Venho aqui como lazer ... como terapia, também ..

Neste quase silêncio, penso na vida.

Sou da geração de presumíveis mulheres prendadas.  Mulheres cordatas, pouco reivindicativas,  bem "femininas" ... como cansei de escutar a vida inteira.
Mulheres-família,  que correspondessem ao que o inconsciente colectivo, delas esperava.
Nascidas, criadas submissas, programadas para uma saída profissional razoável, complemento do orçamento familiar, casariam, seriam boas esposas, mães, fadas do lar, e depois, dignas nas suas profissões, capazes, desempenhando-as cabal e prestigiadamente.
Filhas de mães maioritariamente domésticas, oriundas muitas delas de uma classe média com alguma estabilidade, cresciam presas a um "cordão umbilical" castrante, até casarem.
Tornavam-se por isso, mulheres acomodadas, ingénuas, pouco experientes, pouco defendidas, também.  Eram figuras complementares dos maridos, os "chefes de família" ...

Lembro que as colegas mais desenvoltas, assumidas, conseguidas, que conheci na faculdade ... as mais bem "equipadas" face ao futuro, eram aquelas que, provindas do Portugal interior, longe da família, se haviam feito à vida, estando a estudar sozinhas na capital.
Entregues a si próprias, em auto-gestão, tiveram que fazer-se mulheres inteiras, seguras, exigentes, esclarecidas, afirmativas ... de "olho aberto" ...

Como eu as invejava !  Eu, a quem a minha mãe cortou as "asas"  à nascença ...

Não fugi ao estereótipo.  Casei cedo. Dezanove anos mal acabados, uma impreparação  total de vida !
E "enquadrei-me" ... como não ?
Era impensável defraudar as expectativas.  Tive que me agigantar, o que pude e do que fui capaz.
Mantive o carril.
Fui professora, porque sempre se achou lá em casa, ser a profissão mais ajustável ás de mãe e doméstica, que obviamente acumulei.
Aprendi a "acostumar-me" ... E nada pior que nos "acostumarmos".
Isso significa alienar sonhos, por de lado projectos, ignorar vontades.  Prescindir até do direito de escolher "veredas", se quisesse ... sem ter que percorrer obrigatoriamente cómodas "auto-estradas" !...
Criei filhas, ali, no reduto da família, sem demasiadas ondas ...
Admito que poderia ter dado certo ... quiçá !  Mas não deu !

Filhas fora de casa, filhas já com vida própria, autonomia  ( elas que tiveram horizontes outros, vontades  outras,  escolhas  reconhecidas,  quereres  legitimados ... direito  até  a  errar ... )...
foi hora  de parar !...

Parar, reavaliar e olhar-me ... enquanto olhava o espelho.  Olhar-me por fora, mas sobretudo por dentro.
Hora de faxina no coração e na mente ...  Uma impossibilidade de continuar ...
E agora ?

Agora ... os cinquenta já haviam dobrado a esquina.  Mas o coração e a mente, haviam parado lá atrás.
A jovem, a rapariga que eu fora, afinal ainda existia, parecia existir  num qualquer lugar pouco identificável  pelos que me rodeavam, como se tivesse reaberto parêntesis fechados apenas temporariamente.

E agora ? - perguntei-me mil vezes.

Agora ? ... Agora estou largada numa encruzilhada, sem bagagem e sem bússola.
Agora ... escancarou-se um portão, tão mas tão grande, que eu precisava transpor, e receava.
Porque lá fora, o mundo, aquele mundo tinha uma linguagem pouco reconhecível por mim, agora que estava senhora dos meus destinos para o bem e para o mal.

Abarrotava de sonhos e esperanças numa vida nova e diferente.   Sentia  as asas crescerem-me de novo, precisava voar, p'ra me sentir viva.
Tinha devaneios  de adolescente ... mas não era suposto !
Ter creres de mulher, ter vontades e sonhos, desafiar limites ( mesmo fora de época ), permitir-me transgressões ainda que infantis ... não era compreendido !
Subverter o figurino "comportado" que se esperava de mim ... não adequado !
Reencontrar um amor, reinventar afectos ... não era também aceitável pelos que me rodeavam !  Não seria muito ortodoxo, não era pacífico ... criava constrangimentos, aos olhos habituados anos e anos a olharem-me de outra forma ...
Como se eu tivesse que criogenar "ad eternum" !  Como se eu devesse dar um nó na alma, no coração e no corpo, "ad eternum" !...
Ninguém entendia a " Primavera " que eu experimentava, ninguém entendia ou tolerava.  Ninguém percebia que quisesse vivê-la ...

E não ousei ousar.
Quedei-me por caminhos rectos, fugindo ao "almariado" de algum mar mais buliçoso que não me valeu a pena navegar.
Fui empratelando os sonhos, à medida que os anos faziam rima sobre mim.

E cheguei ao hoje.
E hoje vivo em parceria com os medos da solidão.  Vivo sentindo o peso da incerteza do amanhã, assente em ombros que já não têm a robustez de antes.
Vivo tropeçando em pedras mais eriçadas.  Vejo pouco colorido através da minha janela.  Os horizontes não são amplos, a perder de vista, como os da minha terra ...
São limitativos, e neles sempre se põe o sol.
Vou vivendo.  Vou estando por aqui sem muita convicção.  Apenas porque é assim...  Apenas porque devo estar ... porque tenho que estar !

Cumpro o desígnio da vida, sem a fé que move as montanhas dos Homens, sem a convicção que empurra diariamente esses Homens adiante, sem a esperança de superação de limites ou metas norteadoras, de objectivos válidos ... sem a força necessária a erguer-me com um sorriso por cada manhã que nasce.
Simplesmente porque a Primavera já foi, e o cansaço da estação do frio, aproxima-se ...

Bom... mas talvez eu seja simplesmente,  mais uma mulher comum !...

Anamar

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